Filarmónica Fraude


Crédito: Aristides Duarte in Nova Guarda

Apesar de só ter editado um LP, um single e dois EP's, a Filarmónica Fraude ficará na história da música portuguesa, como um dos grupos mais inovadores e uma referência obrigatória para qualquer melómano. O grupo (que durou apenas um ano: 1969) foi obra de António Pinho (autor das letras e futuro Banda do Casaco) e Luís Linhares (autor das músicas e dos arranjos).

Pertenceram ao line-up da Filarmónica Fraude, para além de Linhares (piano), Júlio Patrocínio (bateria), João Carvalho (guitarra), José Parracho (baixo), João Brito (vozes) e Antunes da Silva (guitarra).

"O Milhões", "Menino", "Flor de Laranjeira" e "Problema de Escolha" são os temas que fazem parte do primeiro EP da banda. O que tornava diferente a Filarmónica era o facto das sua letras serem de crítica social (muito suave, pois a censura não perdoava) e o facto da sua música ter influências da música popular portuguesa e de alguma Pop inglesa, nomeadamente dos Beatles. Na contracapa do disco estava escrito que "a única fraude que existe prende-se com o nome do conjunto". Realmente, a crítica considera o grupo como a verdadeira "pedrada no charco" da música portuguesa. João Carvalho abandona a banda e já não participará na gravação seguinte.


EP Animais de Estimação

O segundo EP confirmava tudo e trazia ainda o desbravar de novos caminhos para a música, em Portugal. "Canção de Embalar", "Orícia", "Animais de Estimação" e "Devedor à Terra", eram os temas que integravam este segundo EP (para os mais "teenagers" que já nasceram na época digital informa-se que EP são as iniciais das palavras inglesas "Extended Play", que continha 3 ou 4 canções. Havia ainda o LP que se lê Long Play e o "single" que só tinha duas canções).

O LP "Epopeia", em 1998 reeditado em CD(num trabalho não muito cuidado, já que se tratou de uma remasterização feita a partir do vinil e não das fitas originais), foi a sua obra-prima e um dos trabalhos de referência obrigatória na música do século XX, em Portugal. Constituído por 11 temas, dele se destacam "Digo-Dai", "Homenagem Póstuma" e "Só Marinheiros e Escravos se Afundam com a Nau". Hoje este disco é considerado um clássico do Rock progressivo português a par de outros como "Mestre" dos Petrus Castrus ou dos trabalhos da Banda do Casaco. A reedição em CD pertence à colecção Coração Português da Universal Music Portugal.

Após algumas substituições de elementos, Luís Moutinho arranja um contrato com o grupo, para o Casino Estoril, e a banda descaracteriza-se totalmente. O seu som revolucionário nunca mais será o mesmo e a banda termina ingloriamente uma carreira que poderia ter sido bem próspera.

Como curiosidade refira-se que o tema "Menino", na versão da Quinta do Bill, é, nem mais nem menos que a canção tradicional "Quando Eu Era Pequenino", com arranjos da versão gravada pela Filarmónica Fraude.

Aristides Duarte - akapunkrural@megamail.pt

EP Philips 431 922 PE, Portugal, 1969

1. Flor de Laranjeira (Luís Linhares/António Pinho)
2. Problema da escolha (Luís Linhares/António Pinho)
3. Menino (Raul Indipwo-Luís Linhares/Edmundo Bettencourt)
4. O Milhões (Luís Linhares/António Pinho)
Este EP, produzido por João Martins em 1969, é uma autêntica jóia da música portuguesa. Porque rara e preciosa. Ainda tenho o original, comprado na altura da saída. Mas tantas vezes a agulha do gira-discos percorreu aqueles sulcos que o som se perdeu, irremediavelmente. Pois, isso pensava eu, até há alguns meses atrás, quando por um feliz acaso encontrei uma cópia em muito boas condições numa loja especializada em discos de vinyl de Lisboa. Não hesitei sequer - paguei o preço (exorbitante!) que por ele me pediram e depois gastei ainda mais quando mandei fazer a respectiva remasterização. Mas acho que valeu a pena! As músicas aí estão, em toda a sua pureza original. Todo este trabalho (pesquisa, remasterização, edição...) deveria obrigatoriamente ser feito pela editora responsável (no caso parece ser a Polygram Portuguesa). Mas infelizmente esses senhores parecem mais preocupados no ganho fácil obtido em re-edições sucessivas das mesmas coisas, anos e anos a fio, do que trazer ao conhecimento dos ouvintes actuais preciosidades antigas como esta. E depois ainda têm o descaramento de falarem em "direitos de autor"...

Aqui ficam as notas originais impressas no verso da capa:

Caminho sério para renovar a música ligeira portuguesa

Seis jovens, cujas idades variam entre os 17 e os 20 anos. Estudantes. Nomes: António Luís Linhares Corvelo de Sousa, José João Parracho, João José Pinheiro Brito, António Antunes da Silva, Júlio Vital dos Santos Patrocínio e João Manuel Viegas Carvalho. Característica comum: o gosto pela música, a preocupação de fazer diferente.

Não é aventura, nunca foi aventura, essa entrega total à música que os levaria a atingir o ponto julgado indispensável para conquistarem uma posição no meio discófilo nacional.

Foi um trabalho de pesquisa, de criação, que teve como objectivo imediato renovar, sem concessões piegas e ultrapassadas, a música ligeira portuguesa. Tê-lo-iam conseguido estes seis jovens componentes do agrupamento a que deram o nome de Filarmónica Fraude? O público e a crítica têm a palavra. Uma coisa é certa: o trabalho destes seis jovens não nasceu do improviso da ocasião, não é fruto de qualquer leviandade ou brincadeira que a sua juventude poderia desculpar. Há irreverência - isso sim. E, qualidade musical. Há um trabalho de equipa em que se sente a vontade de quebrar barreiras aparentemente instransponíveis. Há a certeza que a única fraude que existe pertence ao nome do conjunto (D.R.)

Um pouco de história

Verdadeiro grupo-de-culto português, que começou por tocar (corria o Verão de 68) nas instalações da Torralta, no Alvor, onde foram descobertos pelo saudoso jornalista Fernando Assis Pacheco e pelo Duo Ouro Negro. O primeiro escreveu uma crónica elogiosa no Diário de Lisboa intitulada "Uma Fraude nas noites brancas do Alvor". Os segundos levaram uma cassete com alguns temas à editora Valentim de Carvalho que lhes faculta a gravação de algumas maquetas das canções. No entanto, o grupo acaba por assinar com a Philips, onde para além do album "Epopeia" grava ainda dois extended-play, em 1969. O 1º EP, que é a estreia do grupo, contém temas originais e adaptações da música popular portuguesa, da autoria de António Pinho e Luís Linhares: "Flor de Laranjeira", "Problema da Escolha", "O Menino" e "O Milhões". A crítica social, a mordacidade e ironia nas letras e a música com influências da pop inglesa (sobretudo Beatles), são imagens de marca que ficam desde logo a assinalar o conjunto. O êxito é imediato e a crítica é unânime em elogiar o trabalho, classificando a Filarmónica Fraude como um «caso muito sério» e «uma pedrada no charco e no marasmo da música portuguesa» ou ainda, como se escrevia na contracapa do disco, «a certeza que a única fraude que existe pertence ao nome do conjunto». Pouco tempo depois, um 2º EP vinha confirmar tudo quanto se dissera a respeito do primeiro: "Canção de Embalar", "Orícia", "Animais de Estimação" e "Devedor à Terra" cimentam a reputação que o grupo granjeara logo no início da carreira. E finalmente o album "Epopeia", cujo alvo principal eram os infortúnios dos descobrimentos e que por isso mesmo trouxe alguns dissabores junto aos censores da época; a começar logo pela capa (uma autêntica originalidade na altura, pelo feitio e modo de abrir), da autoria de Lídia Martinez, que a assinou «Lídia 69». A maqueta da capa não passou na censura, que obrigou ao corte da indicação do ano. A Filarmónica Fraude acaba nos finais de 1970 (sem editarem mais nenhum disco), dando depois lugar à Banda do Casaco.

Em 1998 a Polygram Portuguesa edita o album em cd mas com uma masterização obtida directamente de um disco de vinil original; ou seja, com um som bastante medíocre, pelo facto de não se terem dado ao trabalho de fazer uma recuperação sonora em condições. É pena, até porque a qualidade do trabalho da Filarmónica Fraude é merecedora duma digitalização eficiente, mais que não seja para uma coveniente preservação futura. Esperemos que num futuro próximo tenhamos motivos de nos regozijarmos caso os responsáveis da editora nos consigam presentear com uma edição conjunta de todos os temas gravados pelo grupo. (Crédito: Rato Records Blog; referido por Carlos)


Filarmónica Fraude

Entrevista de Maria Teresa Horta - "Mundo da Canção" nº 3, Fevereiro de 1970 (pág. 4 e 5)

M.T.H. - Porque é que vocês até agora só têm cantado poemas do Pinho ?

Luís Linhares - Talvez por uma questão de método e de trabalho; seria bem mais complicado musicar poemas de um poeta

M.T.H. - Mas o Pinho é um poeta...

António Pinho - Não. Não sou poeta!

O tom da sua voz é natural e simples, não pretende fazer "blague", nem ser modesto. Volto-me para ele com curiosidade.

M.T.H. - Não ? Mas faz poemas... e belos, violentos, espantosamente válidos!

António Pinho - Porém, a verdade é que eu nunca tinha feito poemas nos dias da vida, mas como canto mal, não toco nenhum instrumento e queria colaborar de qualquer maneira na "Filarmónica"...

Luís Linhares - Gostamos dos poemas dele, estão dentro da linha que adoptámos para a "Filarmónica Fraude".

M.T.H. - E como é que trabalham. Nasce primeiro o poema ou a música?

António Pinho - Quase sempre eu faço primeiro o poema que depois trabalhamos em conjunto. Quando a música já está feita é bastante mais difícil.

M.T.H. - Já alguma vez eles lhe recusaram um poema?

António Pinho - Já. Mas eles, não ele: o Luís Linhares.

Luís Linhares - Ele também já me recusou muitas músicas!

M.T.H. - E como é que você, Pinho, encara a recusa de um poema?

António Pinho - Nas calmas, não me melindro.

M.T.H. - E você, Linhares, como reage quando o Pinho recusa uma música?

Luís Linhares - Não há problemas, ele está no seu direito. Sempre trabalhámos assim desde princípio.

M.T.H. - Pinho, você faz poemas sem ser para a "Filarmónica Fraude"?

António Pinho - Nunca faço poesia que não seja para ser cantada...

Hesita e acaba por se rir e continua:

António Pinho - Não é verdade.. faço poesia "romântica" para oferecer à minha moça. A poesia que faço para ser cantada é bem diferente, é mais, digamos: colectiva.

M.T.H. - As vossas canções são sempre canções essencialmente intervenientes, de crítica social...

Luís Linhares - Deve ser mais ou menos obra do acaso...

M.T.H. - Não acredito! O vosso "long-play" é então todo ele obra do acaso?

António Pinho - Não. Há realmente em todo ele uma crítica clara e objectiva... pelo menos pretendeu sê-lo.

Luís Linhares - Queria eu dizer que nós não pretendemos, nõ temos intenções de levar as pessoas à revolução... como já se tem insinuado.

António Pinho - Nós apenas contamos... dizemos simplesmente aquilo que existe à nossa roda... apenas falamos domundo que é o nosso.

M.T.H. - Mas fazem-no criticando violentamente usos e costumes, entre tantas outras coisas... teremos como exemplo: "A Flor de Larajeira", "Só Marinheiros e Escravos se Afundam com a Nau" e "Por Vós (Desgostoso, Carrancudo e Magro)".

Linhares e Pinho sorriem e olham-se entre coniventes e astuciosos.

  António Pinho - às vezes sai mais violento do que pretendemos...

M.T.H. - E o que é que vocês pretenderam fazer neste vosso "long-play"?

António Pinho - Pretendemos fazer o retrato de um país: o retrato de um Portugal actual que, no fim de contas, é o Portugal de 1500 ou 1600.

Luís Linhares - Foi esse realmente o tema geral: repare que todo o disco obedece a uma continuidade.

M.T.H. - Temática?

Luís Linhares - Claro, isso é evidente, mas também há uma "continuidade" musical.

M.T.H. - Algum de vocês sabe música?

Luís Linhares - Eu. Comecei a aprender música aos 5 anos.

M.T.H. - Pensa que isso o tem influenciado?

Luís Linhares - Não sei, é natural que assim seja, mas você compreende, não sei o que faria se não soubesse música, pois sempre me recordo com esse conhecimento. No entanto, a música presentemente é tão livre, que o saber-se música até pode ser prejudicial; prejudicial na medida em que pode ser uma prisão.

M.T.H. - Concorda que haja com vocês uma nítida ligação com...

António Pinho - Os Beatles? Claro que há, as ligações são nítidas! Como ouvintes somos aqueles frenéticos pelos Beatles, logo é absolutamente natural que haja mesmo influências. Porém não copio os Beatles... como não copio Bela Bartok.

M.T.H. - Ouve Bela Bartok?

Luís Linhares - Oiço e digo-lhe até que teve grande importância nalgumas composições deste último disco.

M.T.H. - E você, Pinho, lê?

António Pinho - Eu? Olhe, para este nosso "long-play" fomos para Tomar,onde ficámos 8 dias a conversar e a ler. Depois, quando voltámos, era como se tivéssemos prontas as canções dentro de nós: quando queríamos, elas saíam livremente sem o menor esforço.

M.T.H. - E o que leram?

António Pinho - Oliveira Martins, Fernando Pessoa...

M.T.H. - Já leram Alexandre O'Neill?

António Pinho - Não.

M.T.H. - As pessoas dizem haver nítida influência da sua poesia nas vossas canções.

António Pinho - As pessoas aqui dizem sempre qualquer coisa... Adoro que nos analisem!

M.T.H. - Há em vocês intenção propositada de escandalizar as pessoas, o burguês?

Luís Linhares - Escandalizados ficamos nós quando as pessoas dizem que se escandalizaram!

M.T.H. - São pela chamada "música de protesto"?

Luís Linhares - Não, e somos contra tudo o que seja só protesto, protesto por protesto. Repare que hoje, aqui, há música de protesto que é absolutamente ridícula.

M.T.H. - Não são então de protesto as vossas canções?

Luís Linhares - Não!

António Pinho - São mais canções de sátira, de crítica , retratos de uma circunstância.

A "Filarmónica Fraude" é, realmente e muito especialmente, um olhar arguto e lúcido sobre uma circunstânca... sátira e crítica de costumes. A reportagem de um país através dos seus homens, das suas raízes, dos seus hábitos, dos seus mitos e das suas palavras.

Nota - a entrevista inclui ainda um pequeno parágrafo introdutório, apenas parcialmente legível no exemplar de que dispomos, onde Maria Teresa Horta caracteriza a "Filarmónica Fraude" como "o caso mais sério da nossa música de hoje".


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