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Como Escrever Histórias em Quadrinhos - Parte I

Por Alan Moore

Outra idéia que tive, ao mesmo tempo, envolveu o modo de trabalhar dos outdoors Burma Shave, cuidadosamente espaçados e rimados, usados para percorrer ao longo das estradas da América numa seqüência de letreiros rimados de tal maneira que a última linha da rima, ...Burma Shave, era, na verdade, mais visível na placa em si que dentro do espaços das letras. Isto efetivamente aconteceu nas últimas duas páginas do n.º 26, mesmo não tendo nenhuma idéia ao realmente pensar na seqüência sobre a forma como ela se relacionaria ou qual parte dela participaria do conjunto da história. Eu mantive a idéia pendente até ter uma abertura onde pudesse inseri-la, e assim, quando tive de fazer algo drástico com o personagem Matt Cable, eu o peguei e joguei numa cena de desastre de carro. O fato é que tive de manter as seqüências guardadas na geladeira até ter uma idéia para as histórias que as completariam. Como eu disse antes, ninguém precisa começar por uma idéia, mas, em algum ponto ao longo do processo, uma idéia de verdade é necessária, admitindo-se que este trabalho deva ser de algum impacto.

Nós assumiremos que, a partir de agora, temos uma idéia trabalhável, algo que gostaríamos de dizer e sentir que podemos dizer com convicção. Antes de encaminharmos o problema, deveríamos perceber que, em qualquer ato de comunicação, existem ao menos dois participantes. Em termos de criatividade, estes participantes são o artista e a sua audiência. Se você está prestes a despender um monte de tempo preparando a sua mensagem, talvez seja vantajoso ao menos gastar um pouco mais numa rápida consideração sobre a pessoa para a qual a mensagem se dirige. Obviamente, uma vez que estamos falando sobre audiência em massa, de milhares de indivíduos, não há como o artista conseguir entender os gostos e aversões de cada um deles. A resposta convencional ao problema, ao menos como ficou evidente pelo comportamento de muitas das principais companhias de comics, é tentar não ofender ninguém.

Eu tive ao menos um editor do ramo dizendo que não há sentido em tirar da alienação ao menos um leitor que seja, sendo que o melhor a fazer é "suavizar" os diálogos ou as cenas em questão até que não haja mais nada que possa ser criticado pelo mais sensível membro da audiência. Levando esse raciocínio ao seu extremo, isso sugere que um leitor hipotético ao qual o artista deve se dirigir como sua história é um afrescalhado moralista extremamente afetado que tem um piripaque é primeira sugestão de algo mais carnal que um beijinho de boa-noite sobre a testa. Isso não apenas reforça a idéia de que os quadrinhos são, de alguma maneira, ofensivos por sua própria natureza, e que só serão tolerados enquanto se mantiverem dentro de suas coleiras - aliás, muito bem apertadas, diga-se de passagem - como também falham por não considerarem o enorme número de leitores em potencial não dispostos a perderem seu tempo com papinha-de-nenên literária.

Há algo estranho em ser ofensivamente inofensivo, e, uma vez que não estou sugerindo em nenhum momento que todos os quadrinhos devam ser destinados a depravados cínicos recém-saídos da adolescência, ao menos se deveria perceber que a audiência potencial além desses caras é, de longe, muito variada e grande demais para se aplicar quaisquer critérios restritivos baseados em quadros hipotéticos completamente não-confiáveis de um imaginário "leitor-padrão". O conceito de "leitor-padrão" é completamente retrógrado, ao tentar criar um leitor que não existe. Eu conheço muito poucas pessoas que se acham "leitores-padrão de quadrinhos", e menos pessoas ainda que demonstrem ser realmente convencionais quando examinadas mais de perto. Um meio de comunicação tão pequeno como este tem realmente um padrão significativo que possa ser definido a partir de seu público?

Na minha opinião, a melhor maneira de lidar com o problema é deixar o material encontrar seu próprio nível e sua própria audiência. Mas, uma vez que ao não definirmos nossas hipóteses de trabalho acabamos produzindo leitores imaginários, é óbvio que temos que achar algum meio de compreender a parte que o leitor ocupa no processo criativo. Uma vez mais, eu imagino que fique menos problemático tomar o problema pelo seu outro extremo. Ao invés de pensar sobre o que poderia afetar o leitor negativamente para então expurgar qualquer traço disso no trabalho, por que não pensar sobre coisas que provavelmente afetam o leitor positivamente? Novamente, temos aqui o problema de como definir o que melhor funciona para uma extensa faixa de pessoas, mas, ao menos, neste exemplo, há uma série de modelos úteis para basear nosso pensamento. Um deles é a banal mas sempre criativa piada.

Piadas não são, em geral, dirigidas a um público específico; elas apenas acontecem! Estranhamente, o critério do que seja uma boa piada não parece ser altamente contestado, como quando falamos sobre filmes, livros ou quadrinhos. Algumas pessoas gargalham alto, a diversão de alguns é um pouco mais contida, um ou dois não riem mesmo. Seja qual for a reação, a piada serviu a seus propósitos e afetou várias pessoas diferentes com o melhor de sua capacidade em relação aos sensos de humor de cada um. A pessoa que chega a princípio com a piada não faz idéia da pessoa que eventualmente vai escutá-la... ela apenas acha a piada engraçada. Se ela o faz rir, há uma ótima chance dela fazer uma porção de pessoas rirem também. Eu até arriscaria dizer que muitos dos escritores de quadros humorísticos dos programas de TV se contentam em confiar em sua própria intuição sobre o que é engraçado, mesmo que tenham assistido entrevistas com comediantes como Max Wall, parecendo que há um esforço muito grande no pensar sobre o que exatamente faz as pessoas rirem. Há, seguramente, alguns princípios óbvios de humor que são quase certeza de provocar risadas como resposta, não importando qual a disposição ou a situação da pessoa que ouve a piada possa ter. Compreender essas reações humanas imediatas é uma ferramenta de humor criativo muito mais útil que qualquer consideração sobre um "público-padrão" possa ser.

Pensando sobre um processo geral básico que afete um amplo espectro de seres humanos muito melhor que uma noção ou idéia específica que não afetaria sequer um único tipo de leitor hipotético, será possível chegar a uma compreensão de um dos mecanismos fundamentais das reações humanas. É possível olhar bem de perto para nossas próprias reações e respostas e fazer algumas deduções felizes sobre as respostas básica de sua leitura. Se você quiser escrever uma história de horror, pense primeiro no tipo de coisa que horroriza você. Analise seus próprios medos a fundo o suficiente e poderá ser capaz de chegar a algumas conclusões sobre a matéria-prima dos medos e das ansiedades humanas. Seja implacável ao fazê-los, e submeta a si mesmo num enorme sofrimento emocional se for necessário para ter respondida essa questão: o que me deixa horrorizado? Imagens de crianças morrendo de fome na África me horrorizam. Por que isso me deixa horrorizado? Isso me horroriza porque não consigo ficar pensando em crianças minúsculas nascendo num mundo de fome, miséria e horror sem nunca conhecer nada além de dor e medo, e não saber nunca que poderia possivelmente haver algo mais do que precisar de comida tão desesperadamente quanto um homem sufocado precisa de ar e nunca ouvindo nada além de choro, lamentações e desespero. Sim, muito bem, mas POR QUE não consigo pensar nisso? Não consigo ficar pensando nisso porque gosto de sentir um mundo como tendo alguma forma de justiça e de ordem sem os quais muito da existência pareceria sem sentido, e eu penso que para essas crianças não há a menor possibilidade delas sentirem o mundo nesses termos. Também sei que, se estivesse naquela mesma situação, também não seria capaz de ver qualquer situação além de fome e miséria juntas. Então, isso significa que não haveria nenhuma ordem, nenhuma razão para a existência? É isso que me faz cagar nas calças toda vez que vejo aquelas titicas de mosca agonizando no noticiário do horário nobre. É. Provavelmente é isso! O que me assusta mesmo provavelmente não é o que está acontecendo com eles, mas o que isso implica para mim.

Aquilo não é uma nobre causa, incrivelmente fácil de ser encarada, mas é o tipo de trabalho sujo que você tem que encarar para ter alguma compreensão válida do material no qual você está trabalhando. Este material são pensamentos humanos, sentimentos humanos e idéias humanas. Tudo no nosso mundo, desde a estrutura familiar até a bomba de nêutrons, tem sua origem nesta área, e qualquer um que pretenda fazer uma bagunça com a consciência de massa para uma missão vital de estar ciente do material está lidando com e como isso se comporta em certas circunstâncias. Para este fim, se considerarmos uma pessoa que eventualmente for ler sua história em quadrinhos, o denominador comum pelo qual você vai atrás não é o minúsculo denominador comum da receptividade do público, e sim o denominador comum da humanidade básica. Se você está lendo isso, há uma boa chance de que você seja um ser humano. Há também uma boa chance de que, não importa o quão único e especial você seja ou pense que é, existam certos mecanismos básico que você compartilha com membros conservadores do parlamento inglês, mineiros de Yorkshire, lésbicas radicais e policiais. Se você puder identificar e usar estes mecanismos para sua própria satisfação, então você terá muito mais base para produzir uma arte mais proveitosa que se gastasse tempo alucinando um consumidor-padrão imaginário e tentando desesperadamente marretar seu trabalho numa forma que agrade seus altamente hipotéticos gostos e critérios.

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