|
|
TEXTOS SELECIONADOS
Como Escrever Histórias em Quadrinhos
- Parte III
Por Alan Moore
Nessa história, a idéia era examinar mundos de sonhos de
escapismo e fantasias, incluindo os idealizados tempos de felicidade no
passado e os aguardados momentos no futuro onde finalmente alcançamos
nossos objetivos, quaisquer que sejam eles. Queria captar o quão
útil essas idéias realmente são e o quão larga
é a lacuna entre a fantasia e a realidade. Foi uma história,
se você preferir, para pessoas que conheci que possuiam fixação
sobre algum momento no futuro onde elas podem finalmente ser "felizes".
Pessoas que dizem, se eu apenas tivesse entrado na faculdade e terminasse
ela mais cedo, me estabilizado, amadurecido para o mundo, pego aquele
emprego que recusei..., ou àquelas que dizem quando a hipoteca
for paga, então poderei me divertir. Quando eu for promovido e
ganhar mais dinheiro, então terei dias melhores. Quando os filhos
estiverem crescidos, finalmente poderei ter meu romance publicado...,
pessoas que são escravas de suas próprias percepções
de passado e de futuro, incapazes de experimentar apropriadamente o presente
antes que ele acabe.
O enredo que escolhi foi pegar essa idéia que envolvia
a mente do Super--homem ser escravizada por um parasita telepático
que alimenta uma ilusão do desejo de seu coração:
um planeta Kripton que nunca explodiu. Isso faz parte do plano
de Mongul, um inimigo alienígena do Super-homem,
que o quer fora do caminho para que possa dominar o universo ou o quer
seja que esses tipos tirano desejem. A história acontece durante
o aniversário do Super-homem, na Fortaleza da Solidão,
com seqüências simultâneas de dentro da mente do Super-homem,
onde ele imagina a si mesmo como alguém que ele poderia ter sido
em Kripton. No decorrer da história, vemos que isso eventualmente
não seria tão feliz quanto parecia ser, e finalmente o Super-homem
abandona a fantasia. Ao mesmo tempo, ele vê sua inútil nostalgia
por um planeta destruído como realmente é, e aprende algo
sobre si mesmo dessa experiência.
Ok... então o problema é como apresentar esse enredo
e sua idéia organizada dentro das restrições que
são impostas pelo espaço ocupado pela edição,
pelo mercado para o qual ela é direcionada e assim por diante.
A restrição mais concreta e imediata é que a revista
tem 40 páginas. Isso significa que devo ajustar minha história
precisamente à esse número de páginas sem que ela
pareça comprimida ou preenchida com ar. Assim, meu primeiro passo
é usualmente pegar umas folhas de papel e escrever os números
de um a quarenta no lado esquerdo do rodapé. Então começo
a esboçar as cenas que já tenho em mente e tentar desenvolver
quantas páginas elas irão ocupar.
Eu já desenvolvi aquilo que quero apresentar como um contraste
entre o mundo de Kripton dos sonhos do Super-homem e a realidade
externa de sua situação, paralisado e imóvel na Fortaleza
da Solidão com um fungo alienígena aderido ao seu peito,
alimentando-se de sua bio-aura. Para que isso funcione, necessito de algo
interessante que se desenrole na Fortaleza da Solidão enquanto
o Super-homem dorme, e que eu possa colocar entre uma envolvente
cena do mundo dos sonhos e uma cena igualmente engajada que se desenvolve
simultaneamente no "mundo real". Já que era o aniversário
do Super, pareceu-me lógico que alguns de seus amigos super-humanos
o visitasse (no caso, Mulher-maravilha, Batman e Robin) e providenciar
algum conflito incidental interessante com Mongul, que está
avaliando sua obra.
O tosco esquema poderia funcionar mais ou menos assim: Eles chegam e
deixamos que os personagens aproximem-se por alguns breves momentos e
mostramos como eles reagem uns aos outros. Com o diálogo deles,
deixamos o leitor saber que é aniversário do Super-homem.
Estabelecemos que tanto a Mulher-maravilha quanto a dupla dinâmica
trazem presentes. A Mulher-maravilha traz um enorme embrulho que
ela se recusa em revelar seu conteúdo, enquanto que Batman
e Robin têm uma rosa especial batizada de "Kripton",
criada para homenagear a ocasião. Ao entrar na Fortaleza,
eles encontram o Super com uma estranha massa de rosas que aparentemente
cresce em seu peito. Ele encontra-se imóvel e totalmente em coma.
Enquanto tentam imaginar o que ocorreu, Mongul anuncia sua presença
e revela o seu plano em detalhes. A Mulher-maravilha tenta cuidar
dele, mas ela é atingida por um brutal ataque que a arremessa através
da sala de troféus da Fortaleza da Solidão e da parede
da sala de armas, onde o armamento alienígena alí encontrado
se mostra inútil contra Mongul. Enquanto isso, Batman
está friamente tentando reviver o Super-homem apenas com
uma esperança real de salvar a situação. Mais como
um resultado do crescente desencanto do Super com o mundo de fantasia
no qual se encontra do que pelos esforços do Batman, a criatura
solta-se e agarra-se imediatamente ao Batman. Neste ponto, livre
da influência da criatura, o Super-homem desperta. A fantasia
que ele havia vivido foi demais para ele e as duas linhas narrativas fundem-se
em uma só, e os eventos começam a consolidar o clímax
da edição.
Ok... Agora temos que trabalhar o que sobrou desenvolvendo um esquema
similar de eventos dentro da cabeça do Super-homem: abrimos
com Kriptonópolis, onde estabelecemos que o Super-homem
está vivendo como Kal-El, que tem uma esposa e dois filhos
e trabalha longas e cansativas horas como um arqueólogo. Aprendemos
que Kripton parece ser uma sociedade em declínio. O pai
de Kal-El, Jor-El, foi menosprezado pela comunidade científica
desde que suas previsões em relação ao destino de
Kripton provaram ser infundadas e, com a morte de sua esposa Lara,
ele tornou-se um velho frustado e amargurado, que flerta com grupos políticos
extremistas numa tentativa de deter o declínio que ele observa
no padrão de vida kriptoniano. Isso o faz entrar em conflito com
seu filho, que é mais liberal, deixando-os mais afastados. Vemos
eventos virem à tona quando descobrimos que a sobrinha de Kal-El,
Kara, foi atacada e ferida por membros armados de um grupo que
apoia a abolição da Zona Fantasma e que nutrem um
rancor contra qualquer parente, mesmo que remoto, daquele que é
o inventor do aparelho que abre passagem para a Zona Fantasma: Jor-El.
Alarmado com esses acontecimentos, vemos Kal-El e sua família
tentando sair de Kriptonópolis em meio a um cenário
de manifestações iluminadas por tochas, tumultos e demonstrações
públicas, enquanto Kripton começa a se dirigir cada
vez mais rápido para o colapso social. Finalmente, Kal não
pode mais aceitar os termos de sua fantasia, e nem de longe está
preparado para pagar o preço necessário para sustentá-la.
Ele liberta-se da ilusão e agora encontra Batman prisioneiro
do parasita, e as duas linhas narrativas tornam-se uma só.
O passo seguinte foi integrar esta seqüências num todo coerente,
e elas foram conduzidas em paralelo na primeira metade das 40 páginas
do livro. Isso significa que tenho de alocar algumas páginas para
a fantasia do Super-homem e algumas páginas para as cenas
dentro da Fortaleza, com Batman e Companhia, decidindo grosseiramente
o que transcorre em cada página, sem deixar de fazer de cada página
esboçada uma cena completa em si. Eu sabia que tudo isso deveria
partir do início da revista, cobrindo as primeiras 25 páginas
ou algo assim. Isso significava que eu deveria intercalar pontos de junção
bem cronometrados entre as duas linhas narrativas, tentando conduzí-las
até o final e fazer isso de maneira grosseira, tudo ao mesmo tempo.
Para estabelecer um bom início, eu tinha uma escolha imediata:
se eu deveria iniciar com a chegada dos heróis visitantes ou jogar
o leitor diretamente na ilusão do Super-homem, sem explicações.
Pareceu-me mais adequado que essa última direção
iria surpreender e intrigar o leitor. Escolhi começar com uma cena
com a Kripton ilusória do Super-homem, através
de imagens induzidas pelo parasita. Com sorte, o efeito sobre o leitor
poderia ter sido algo como Hã? Onde estamos? Em Kripton? Mas
Kripton explodiu. Essa história ocorreu no passado? Não!
Há Kal-El, e ele apresenta a mesma idade que ele tem agora, mas
parece um pouco diferente. Ele parece comum, e ele usa óculos e
tem um trabalho comum e uma esposa e dois filhos. O que está acontecendo
aqui? Se essa primeira página for suficientemente intrigante,
então você começou a percorrer um longo caminho adiante
para fisgar o leitor.
VOLTAR
------------- 4
DE 5
|
|