VELHO REI
 
Houve, em tempos que já vão longe, um rei poderoso, senhor de muitos 
povos e de muitas léguas de terras. Ainda que viajasse sem cessar por 
muitos e muitos anos a fio, não conseguiria ele correr todo os seus 
domínios. E todos os povos o temiam, porque era conhecida de todo 
mundo a fama de suas riquezas.

De mês em mês, chegavam ao seu palácio os emissários dos súditos, 
trazendo-lhe, com a homenagem deles, os presentes riquíssimos: marfim e 
pérolas, ouro e diamantes, sedas e rebanhos.

E o seus celeiros estavam tão abundantemente providos de grãos, que ele 
poderia, numa época de fome geral, abrindo-os a todos os seus vassalos, 
que não tinham conta, alimentá-los fartamente durante todo um ano.

Esse poder sem limites e essa riqueza sem termo, haviam embriagado a 
alma do velho rei. Já não se supunha homem, mas Deus. Tanta gente vinha 
a seus pés, adorando-o, que o seu coração habituara-se a desprezar a 
humanidade, imaginado que ela só fora feita para o servir e temer. Só 
se lembrava dos súditos para os oprimir. Aumentava os impostos e 
alargava as prisões. E sua mão direita, que tanta gente podia fazer 
feliz, distribuindo esmolas e bênçãos, somente servia para assinar 
sentenças de morte. Condenava à pena última cem homens sem ler ao menos 
seus nomes.
E, se os lia, esquecia-os daí a um minuto, para só pensar a febre das 
festas e de loucuras, em que empregava as noites e os dias, e em que 
perdia a saúde e a alma.

E sucediam-se as festas. Do escurecer ao alvorecer, seu palácio, imenso 
como uma cidade, suntuoso como um templo, resplandecente de luzes como 
um céu estrelado, ecoava com o barulho das danças, da música e  do 
tinir dos copos.

Um dia, no esplêndido terraço em que costumava dormir a sesta, o velho 
rei tinha diante de si uma lista de acusados. Não sabia nem queria saber 
quem eram, se eram inocentes ou criminosos, se tinham cometido alguma 
falta, ou se eram apenas homens ricos, cuja fortuna os seus ministros 
cobiçavam. E preparava-se para, com indiferença, assinar a lista, quando 
se deteve a olhar um  momento o filho mais moço, que brincava junto 
dele. Era um principezinho louro e branco, de olhos azuis e inocentes 
como os de um anjo. Ajoelhado sobre o mosaico precioso, que ladrilhava o 
terraço, estava inclinado para um aquário, e divertia-se vendo dentro 
dele os peixes dourados que nadavam. O velho rei, com o sorriso que lhe 
iluminava as barbas, ficou mirando com amor a criança, tão bela e tão 
casta, filha do seu sangue, e da sua alma. E tinha, esquecida na mão, a 
pena fatal, de cujo bico pendia a vida de tantos homens...

De repente, o principezinho teve uma exclamação aflita. O rei viu 
curvar-se mais sobre o aquário, e manter na água as mãozinhas ansiosas. 
E a criança veio para ele, segurando com as pontas dos dedos alguma 
coisa que se não via, de tão pequena que era.
- Olha, Pai! Salvei-a! ia afogar-se...salvei-a!

O velho rei curvou-se para ver o que o filho trazia na mão. Era uma 
mosca feia, negra, pequenina, miserável, nojenta. Tinha as asas molhadas 
e não podia voar. O principezinho colocou-a na palma da mão, 
microscópica, e virou-se para o lado do sol. Daí a pouco a mosca 
reanimou-se e voou. A criança batia palmas:
- Não fiz bem, Pai? Não é um crime deixar morrer uma criatura, qualquer 
por falta de piedade, Pai? Disseram-me que há homens que se matam uns 
aos outros...Pai? Como é que se pode ter a maldade de matar um homem? 

E o principezinho fixava no velho rei os seus olhos azuis e inocentes 
como os de um anjo.

Nessa tarde o velho rei não assinou nenhuma sentença de morte. 


(Olavo Bilac)
Enviado por Regina Suppi - Visitante de Fonte para reflexão


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