"ERA UMA VEZ um homem que nasceu numa azinhaga e se fez serralheiro, jornalista, escritor e cavaleiro. Era uma vez a gente que o amou e odiou. Era uma vez um homem que tinha um sonho e não sabia. Era uma vez uma mulher que o fez sorrir. Era uma vez um homem que escreveu um livro e o ouviu cantado em ópera. Era uma vez Blimundo. Era uma vez, Saramago" (Luísa Jacobetty, in O Independente, 17.5.91). Era uma vez um homem que José Sousa poderia ser, diz-se, se, por sua iniciativa, o oficial do registo civil não tivesse, ao invés, optado por grafar a alcunha de família, apelidada dos Saramagos. Era uma vez José Saramago em 16.11.1922 (Azinhaga, Golegã). Era uma vez um Prémio Nobel em 8.10.1998.
        Depois de, em 1947, encetar uma primeira incursão pelos caminhos da Literatura, estreando-se como romancista com Terra do Pecado (título que ao editor pareceu mais sugestivo do que o original A Viúva), obra, ainda subsidiária da sombra tutelar de Eça de Queirós, não só pela sua linearidade discursiva mas também pela própria temática, dezanove anos decorrerão até que, em 1966, regressa à cena literária, desta vez no papel do poeta que escreve Os Poemas Possíveis, logo seguidos, em 1970, de Provavelmente Alegria.
        Antes de enviesadamente retomar a produção-experimentação poética com O Ano de 1993 (1975) e com a participação na obra colectiva Poética dos Cinco Sentidos - O Ouvido (1979) (prosa poética sobre uma das seis tapeçarias da ""Dame à La Licorne", expostas no Museu Cluny, em Paris), percorrerá os caminhos da crónica, atestados em títulos como Deste Mundo e do Outro, 1971 (resultado da actividade levada a cabo no jornal A Capital 1968-69); A Bagagem do Viajante, 1973 (textos pela primeira vez publicados em 1969 também em A Capital, e entre 1971-72 no Jornal do Fundão); Os Apontamentos, 1976 (compilação de crónicas políticas inicialmente publicadas no Diário de Lisboa entre 1972-73, algumas das quais dadas à estampa no ano de 1974 em As Opiniões que o DL teve, e no Diário de Notícias em 1975).
        A estes títulos acrescentará, em 1981, a narrativa de uma sua Viagem a Portugal, "história de viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto, encontro nem sempre pacífico de subjectividade e objectividade" (Prefácio).
        Apesar de também não resistir a explorar os meandros do conto (Objecto Quase,1978, O Conto da Ilha Desconhecida,1998), do teatro (A Noite, 1979; Que Farei com Este Livro?, 1980; A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987; In Nomine Dei, 1993) e do diário (Cadernos de Lanzarote I-V, 1994-1998), José Saramago ficará todavia, plena e indelevelmente vinculado à produção romanesca que, em 1977, retoma com Manual de Pintura e Caligrafia, peculiarmente distanciado da sua primeira escrita-tentativa de 47, pelo que de nele é possível descortinar em termos da presença de embriões temáticos e formais de posteriores obras do autor. Misto de romance, manual, ensaio e, por que não? [projecto de] auto-biografia, esta obra ousadamente arrepia o caminho, em última instância, para a exposição da problemática sobre a representação do real e sobre o modo como se edifica a obra de arte literária: "Escrever não é outra tentativa de destruição mas antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços" (pp. 57-8).
        O progressivo abandono de um canónico registo sintáctico, travestido por uma linguagem e um ritmo próprios da narração oral, acompanha o desvendamento na própria tessitura da narrativa do modo como se constrói o romance. A estas características aliam-se preocupações de jaez ideológico, notórias já quer nas crónicas quer em alguns poemas e em Levantado do Chão (1980) ainda presente numa linha de continuidade, temática que não formal, do Neo-Realismo precedente.
        No cenário do grande mar do latifúndio dos senhores sem rosto, João Mau-Tempo, na impossibilidade de falar de todos os anónimos heróis, assumir-se-á como o representante colectivo de toda uma classe oprimida pelos latifundiários alentejanos; pela igreja, na pessoa do padre Agamedes; e pelo Estado, através da "guarda criada e sustentada para bater no povo"(p. 73). Nesta personagem se cumpre a perseverança dos trabalhadores na sua luta, nela se evidencia a progressiva tomada de consciência de que é necessário passar de um estado de submissão passiva a uma atitude ostensivamente tornada rebelião activa através de greves pelo direito a um melhor salário e a melhores condições de trabalho, culminando na ocupação das herdades abandonadas pelos Norbertos e pelos Bertos que, assustados com o ventos da mudança, haviam debandado sabe-se lá para onde.
        Não é, todavia, possível abordar a obra saramaguiana sem que ao exposto se aduza uma crescente preocupação com a recriação da História, laica e religiosa. O característico modo como se entretecem elementos históricos e elementos ficcionais é passível de ser constatado na obra-prima intitulada O Memorial do Convento (1982) onde, propositadamente, numa atitude não inócua de ilações ideológicas, se relegam para segundo plano as Reais pessoas a quem a História oficial concedeu honras de primeiro plano, substituindo-as pelos reais heróis esquecidos por todos os que, em diferentes espaços e tempos, foram investidos do poder de fazer crónica do passado.
        Uma mais radical e irónica atitude face às legadas verdades históricas surge consubstanciada em História do Cerco de Lisboa (1987), onde o protagonista Raimundo Silva "com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome de toda a verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não [...], os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa" (p.50), desse modo entrando em conflito com a atitude magistral da História, mas desse modo, também, pelas opções que vai tomando ao escrever a sua História do Cerco, ficcionalmente ilustrando o carácter viciado e selectivo da tradição historiográfica.
        No caso concreto do Memorial, se D. João V foi efectivamente o responsável pelo levantamento do monumental convento de Mafra, a verdade é que foram pessoas singularmente comuns, "que não fizeram filho à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz" (p. 257), que possibilitaram a sua concretização.
        O monarca não é, pois, neste universo narrativo o credor remoto da admiração e respeito do narrador, são-no, pelo contrário, todas as outras figuras marginais à nossa História oficial: as místicas Blimundas detentoras de extraordinários poderes: as Sebastianas Marias de Jesus, degredadas para Angola em nome de um qualquer ideal religioso; os Baltasares Sete-Sóis, manetas em nome de uma qualquer guerra; os Manuel Milhos, contadores de histórias de final sucessivamente adiado, como se dessa forma se esquecesse a miséria da vida e se adiasse a própria morte; os Francisco Marques que não conseguindo adiar a morte acabam por morrer debaixo de uma qualquer pedra destinada à construção do convento, como essa que se foi buscar a Pêro Pinheiro e a cujo trajecto o diabo assiste "pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno" (p. 259)
        Do diálogo entre diversas fontes, as oficiais e as oficiosas, Saramago constrói esse outro diálogo, entre História e ficção, porque, afinal, como afirma no final do primeiro capítulo de Levantado do Chão, tudo [isto] pode ser contado de outra maneira". Nesta outra maneira, o poder do homem supera hereticamente o poder divino que, embrionariamente, nesta como em outras obras, surge já matizado pelos elementos disfóricos bem patentes no Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), (H)história, de todas a mais polémica, bem mais antiga de outras opressões e perseguições. Em Memorial do Convento, o rei e o seu convento são destronados do primeiro plano, aparecendo à boca de cena os amores de Baltasar e de Blimunda; a feérica Santíssima Trindade que com Bartolomeu Lourenço formam; a famélica "tropa de vagabundos" que também fizeram História mas cujo valor foi silenciado; a turba de trabalhadores que dão cumprimento ao voto real ou, ainda, os "tições negros" dos que caíram nas redes do Santo Ofício.
        Será, pois, a densidade de carácter destas e de outras personagens deste e de outros 'memoriais', e, nalguns casos, a verosimilhança, que nos impele a aceitar o mundo ficcional como uma hipótese possível, pelo menos durante o tempo que dura a leitura, mesmo sendo essa hipótese tão remota como haver uma Joana Carda que trace um risco no chão com uma vara de negrilho, desse modo provocando a separação da Península que, doravante, será jangada andando à deriva (A Jangada de Pedra (1986); ou ter desembarcado em Portugal, vindo do Brasil, um Ricardo Reis (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984); ou ter ainda, acontecido uma vaga de cegueira (Ensaio sobre a Cegueira, 1995).
        Apesar de a subversão das verdades oficiais, ou da lei das probabalidades nem sempre ser levada a cabo de forma explícita, os efeitos que se pretende extrair acabam por ser coincidentes, na medida em que, em qualquer dos casos, Saramago faz jus à citação Do [seu] Livro dos Conselhos, epígrafe de História do Cerco de Lisboa: "Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes".
        Não se resignou, por exemplo, a personagem do seu último livro, Todos os Nomes (1997), romance que oscila entre uma trama policial e um enredo de amor, mas, essencialmente, romance-pastiche, de amarga paródia branca, em que os típicos códigos de género são enviesadamente relativizados. O mistério que se adensa na medida proporcional ao envolvimento afectivo e à aquisição de humana audácia de José, não envolve um crime, um rapto, ou um assalto; muito menos o 'investigador-detective' usa gabardina à Colombo, bigode à Poirot ou cachimbo e boné à Sherlock Holmes. De alguma forma fazendo lembrar a história de amor sem palavras de amor de Baltasar e Blimunda, bem diferente do piegas e estereotipado relacionamento de Raimundo Silva e Maria Sara a curiosidade de José transforma-se na procura de um objecto de amor de quem se descortina a biografia, se ouve a voz, mas nunca se vê o rosto. O idílio foi de amor sem que dele se falasse, foi de ausência ou de ausentes, não teve nunca em cena os principais actores, não poderia tê-los sob pena de incorrer em banalizações, de quebrar o interminável fio de suspense que permanece para lá das linhas finais onde continua por dilucidar, por exemplo, a figura emblemática do Conservador.
        Se no "era uma vez" de Todos os Nomes destacamos a saramaguiana apetência pela subversão, da mais diversa índole, relembre-se, cumpre, contudo, registar um aspecto em que a fuga ao canonicamente aceite como mais correcto e, consequentemente (diz-se!), mais literário, aparece suavizado. Referimo-nos ao facto de este romance parecer surgir na linha tentativa, já embrionariamente presente em Ensaio sobre a Cegueira, de simplificar a complexa orquestração das tramas narrativas de anteriores romances, sem, contudo, deixar de pôr em prática essa saborosamente tortuosa técnica narrativa, reflexo de um fervilhar de sentidos na sua incapacidade de permanecerem quietos.
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA
ARNAUT, Ana Paula - Memorial do Convento: história, ficção e ideologia.
      Coimbra: Fora do Texto, 1996
BERRINI, Beatriz - Saramago: O Romance.
      Lisboa: Caminho 1998
COSTA, Horácio - José Saramago: O Período Formativo.
      Lisboa: Caminho, 1997
PAULA, Adriana Alves de - História e Ficção. Um diálogo.
      Lisboa: Fim de Século Editores, 1994
REIS, Carlos - "José Saramago", in Machado, Álvaro M. (org.). Dicionário de Literatura Portuguesa
      Lisboa: Presença, 1996
Silva, Teresa Cristina Cerdeira da Silva - Entre a História e a Ficção: Uma Saga de Portugueses.
      Lisboa: D. Quixote, 1989