Meu nome é Derek, ou seja, como mamãe me chamava; de fato, não é um grande nome, exceto que é o meu próprio. Gostaria pois de dizer que fui convidado a tecer os comentários para o álbum «Yellow Submarine».

Derek Taylor, ex-divulgador junto à imprensa para os Beatles; êle o foi depois nos Estados Unidos; hoje, ao tempo destas notas, é o seu homem de imprensa para a América. Dêsse modo, quando foi convidado a escrever algumas notas para «Yellow Submarine», concluiu que não só não tinha nada de nôvo que dizer sôbre os Beatles - de quem também é ardoroso fã - como o fato de ser muito bem pago por êles não o deixava inteiramente livre para usar de raciocínio crítico imparcial.

De qualquer forma, seu desejo mesmo era que o público que se deliciou com «Yellow Submarine» também fosse prestigiado com este magnífico álbum.

Dêsse modo, aqui temos: não comprado, não influenciado, sem retoques, desvinculado, puro e um tanto auspicioso, o comentário dêste álbum Apple/EMI, dos Beatles, por Tony Palmer, do «London Observer» - jornalista e cineasta de nomeada.

O "ÔLHO-DE-BOI" DOS BEATLES

Se ainda resta dúvida sôbre serem Lennon e McCartney os expoentes máximos da criação musical desde Schubert, o lançamento dêste álbum vem significar uma varrida nos últimos vestígios de vaidade cultural e preconceito burguês com um dilúvio de composições que apenas os incultos deixarão de apreciar, e só os surdos dêle não se aperceberão.
Traz o simples título de THE BEATLES (BTX 1005/6), num envoltório singelamente branco, cujo adôrno são os nomes das canções... e aquelas quatro faces, que para alguns representam a ameaça da juventude de cabelos longos; para outros, a luta desesperada e aparentemente sem fim contra aqueles cínicos - os chamados "superiores".
Nos olhos dos Beatles, bem como em suas criações, vislumbra-se, como num espelho, o frágil e fragmentário da sociedade que os patrocina, representa, interpreta, faz-lhes exigências, e os pune quando fazem o que os outros consideram errado.
Paul, sempre esperançoso e pensativo; Ringo, sempre o filhinho da mamãe; George, o "terror local", hoje "o bom rapaz"; John, ensimesmado, tristonho, mas possuidor de uma inteligência lúcida, não turbada pelo que a moralidade organizada lhe lança à conta. São êles os nossos legítimos heróis, e melhores do que merecemos.
Não é como se os Beatles visassem a tal louvor. A qualidade superior das 30 novas canções das alegrias simples da vida dêles. O lirismo de seus versos transborda em fulgurantes lampejos, e tal é o seu magnetismo, que é impossível resistir-lhes. Quase todas as faixas se conduzem num crescendo; vividas, descuidadas, indiferentes, leves. O tema varia, desde porcos ("Você viu os mais rotundos leitões/ Em camisas brancas e engomadas") até o teor daquele fim de sábado à tarde ("Êle desistiu da caçada ao tigre com seu fuzil para elefante/Para o caso de acidente, sempre levava a mamãe"); desde ("Porque não o fazemos na estrada") até os ("Fungos comestíveis de Savoy").
A habilidade na orquestração desenvolve-se com precisão calculada. A orquestra inteira, metais, violino, carrilhão, saxofone, órgão, piano, cravo, todo tipo de percussão, flauta, efeitos sonoros; tudo com equilíbrio e, daí, com habilidade. Suprimiram-se, ou melhor, ignoraram-se dispositivos eletrônicos em favor da musicalidade. Referências ou cotações, desde Elvis Presley, Donovan, The Beach Boys e outros, são tecidas dentro duma aura que os tornou os "tapeceiros persas" da música popular. Está tudo aqui, apenas apure o ouvido. Lennon canta "Contei-lhes dos campos de morango" e "Falei-lhes do tôlo lá na colina" - o que resta?
Os Beatles são antes habilidosos do que virtuosos instrumentistas. Sua execução conjunta, porém, é intuitiva e admirável. Êles dobram e retorcem ritmos e frases musicais, com aquela unânime liberdade que dão às suas aventuras harmônicas; o frenesi da expectativa e do imprevisível. As vozes - e a de Lennon em particular - são mais um instrumento: lamentoso, estridente, zombeteiro, choroso.
Há uma tranqüila determinação de escaparem da falsa intelectualização que usualmente os cerca e à sua música. A letra é quase sempre deliberadamente simples - assim é a composição Aniversário, que encerra versos como "Feliz aniversário pra você"; outra em que é repetido "Boa-noite"; ainda outra expressa: "Estou tão cansado, não consegui pregar o ôlho".
A música é, igualmente, despojada de tudo, exceto da mais pura harmonia e ritmo - de sorte que aquilo que resta é um prolífico jôrro de melodia, criação musical de inequívoca clareza e beleza.
A ironia e a mordacidade que têm emprestado à sua música uma dificuldade e um limite, ainda está borbulhante - "Lady Madonna tentando viver dentro de suas posses - sim/Olhando através de óculos de cebola". A severidade de imaginação é ainda um tanto mais dura: "A águia bica meu olho/O verme que corrói meu osso". "Nuvens negras, negros pássaros; asas partidas, lagartos, destruição". E a mais grotesca, uma extraordinária faixa que se chama apenas Revolução 9 e encerra efeitos de som, murmúrios ouvidos ao acaso, formalismo retrógrado, sons discordantes de lembranças subconscientes de uma civilização que se debate. Cruel, paranóica, inflamada, agonizante, sem esperança, é-lhe dada forma por meio de uma voz anônima de bingo, que segue apenas repetindo: "Número nove, número nove, número nove", até que você sente vontade de gritar. A melancolia acumulada reflete-se inteiramente em suas maneiras, como um véu purpúreo de real otimismo - fulgurante, inacessível, afetuoso.
Por fim, tudo o que você tem a fazer é levantar-se e aplaudir. Qualquer que seja a medida do seu gôsto da música popular, você o satisfará aqui. Se julga que música popular é Engelbert Humperdinck, creia, os Beatles foram um pouco mais além - sem sentimentalismos, mas apaixonadamente. Se pensa que o popular é rock'n'roll, saiba que êles o aprimoraram ainda - nas praias distantes da imaginação, ainda não palmilhadas por outros.
Êste álbum lhes consumiu cinco meses para o preparo, e, para o caso de você achar que foi muito lento, saiba que desde sua conclusão até a data destas linhas compuseram outras 15 canções. Nem mesmo Schubert trabalhou nesse ritmo.


Referência das Citações
Volta a "Yellow Submarine"
Volta a Notas de Capa