Dêsse modo, aqui temos: não comprado, não influenciado, sem retoques,
desvinculado, puro e um tanto auspicioso, o comentário dêste álbum
Apple/EMI, dos Beatles, por Tony Palmer, do «London Observer» - jornalista
e cineasta de nomeada.
O "ÔLHO-DE-BOI" DOS BEATLES
Se ainda resta dúvida sôbre serem Lennon e McCartney os expoentes máximos
da criação musical desde Schubert, o lançamento dêste álbum vem significar
uma varrida nos últimos vestígios de vaidade cultural e preconceito burguês
com um dilúvio de composições que apenas os incultos deixarão de apreciar, e só
os surdos dêle não se aperceberão.
Traz o simples título de THE BEATLES (BTX 1005/6), num envoltório
singelamente branco, cujo adôrno são os nomes das canções... e aquelas
quatro faces, que para alguns representam a ameaça da juventude de cabelos
longos; para outros, a luta desesperada e aparentemente sem fim contra
aqueles cínicos - os chamados "superiores".
Nos olhos dos Beatles, bem como em suas criações, vislumbra-se, como num
espelho, o frágil e fragmentário da sociedade que os patrocina, representa,
interpreta, faz-lhes exigências, e os pune quando fazem o que os outros
consideram errado.
Paul, sempre esperançoso e pensativo; Ringo, sempre o filhinho da mamãe;
George, o "terror local", hoje "o bom rapaz"; John, ensimesmado, tristonho,
mas possuidor de uma inteligência lúcida, não turbada pelo que a moralidade
organizada lhe lança à conta. São êles os nossos legítimos heróis, e melhores
do que merecemos.
Não é como se os Beatles visassem a tal louvor. A qualidade superior
das 30 novas canções das alegrias simples da vida dêles. O lirismo de seus
versos transborda em fulgurantes lampejos, e tal é o seu magnetismo, que
é impossível resistir-lhes. Quase todas as faixas se conduzem num crescendo;
vividas, descuidadas, indiferentes, leves. O tema varia, desde porcos
("Você viu os mais rotundos leitões/ Em camisas brancas e engomadas")
até o teor daquele fim de sábado à tarde ("Êle desistiu da caçada ao tigre
com seu fuzil para elefante/Para o caso de acidente, sempre levava a mamãe");
desde ("Porque não o fazemos na estrada") até os ("Fungos comestíveis de
Savoy").
A habilidade na orquestração desenvolve-se com precisão calculada.
A orquestra inteira, metais, violino, carrilhão, saxofone, órgão, piano,
cravo, todo tipo de percussão, flauta, efeitos sonoros; tudo com equilíbrio
e, daí, com habilidade. Suprimiram-se, ou melhor, ignoraram-se dispositivos
eletrônicos em favor da musicalidade. Referências ou cotações, desde
Elvis Presley, Donovan, The Beach Boys e outros, são tecidas dentro duma
aura que os tornou os "tapeceiros persas" da música popular. Está tudo
aqui, apenas apure o ouvido. Lennon canta "Contei-lhes dos campos de morango"
e "Falei-lhes do tôlo lá na colina" - o que resta?
Os Beatles são antes habilidosos do que virtuosos instrumentistas.
Sua execução conjunta, porém, é intuitiva e admirável. Êles dobram
e retorcem ritmos e frases musicais, com aquela unânime liberdade que dão
às suas aventuras harmônicas; o frenesi da expectativa e do imprevisível.
As vozes - e a de Lennon em particular - são mais um instrumento: lamentoso,
estridente, zombeteiro, choroso.
Há uma tranqüila determinação de escaparem da falsa intelectualização
que usualmente os cerca e à sua música. A letra é quase sempre deliberadamente
simples - assim é a composição Aniversário, que encerra versos como
"Feliz aniversário pra você"; outra em que é repetido "Boa-noite"; ainda
outra expressa: "Estou tão cansado, não consegui pregar o ôlho".
A música é, igualmente, despojada de tudo, exceto da mais pura harmonia
e ritmo - de sorte que aquilo que resta é um prolífico jôrro de melodia,
criação musical de inequívoca clareza e beleza.
A ironia e a mordacidade que têm emprestado à sua música uma dificuldade
e um limite, ainda está borbulhante - "Lady Madonna tentando viver dentro
de suas posses - sim/Olhando através de óculos de cebola". A severidade
de imaginação é ainda um tanto mais dura: "A águia bica meu olho/O verme
que corrói meu osso". "Nuvens negras, negros pássaros; asas partidas, lagartos,
destruição". E a mais grotesca, uma extraordinária faixa que se chama
apenas Revolução 9 e encerra efeitos de som, murmúrios ouvidos ao
acaso, formalismo retrógrado, sons discordantes de lembranças subconscientes
de uma civilização que se debate. Cruel, paranóica, inflamada, agonizante,
sem esperança, é-lhe dada forma por meio de uma voz anônima de bingo, que
segue apenas repetindo: "Número nove, número nove, número nove", até que
você sente vontade de gritar. A melancolia acumulada reflete-se inteiramente
em suas maneiras, como um véu purpúreo de real otimismo - fulgurante,
inacessível, afetuoso.
Por fim, tudo o que você tem a fazer é levantar-se e aplaudir. Qualquer
que seja a medida do seu gôsto da música popular, você o satisfará aqui.
Se julga que música popular é Engelbert Humperdinck, creia, os Beatles
foram um pouco mais além - sem sentimentalismos, mas apaixonadamente. Se
pensa que o popular é rock'n'roll, saiba que êles o aprimoraram ainda
- nas praias distantes da imaginação, ainda não palmilhadas por outros.
Êste álbum lhes consumiu cinco meses para o preparo, e, para o caso de
você achar que foi muito lento, saiba que desde sua conclusão até a
data destas linhas compuseram outras 15 canções. Nem mesmo Schubert
trabalhou nesse ritmo.
Referência das Citações
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