Hans e o gato pardacento
(ou uma árvore sob uma bananeira
cinzenta coberta de rochedos misteriosos povoados por grandes feras aladas
retorcidas clamando por tempos longínquos de pensadores e
pensados sem lei e sem ego perdidos num mar obnubilado pela
heresia)

Um estilhaço de vidro irrompeu irascível
pelo passeio de uma rua deserta de Berlim leste, no bairro de Kreutzberg.
Seguindo a sua intuição inteligível, Hans desceu as
escadas do seu veículo motorizado, dotados de grossos pneus grossos,
para viagens em terrenos alagadiços, e indagou perguntando a todos
os presentes o que havia acontecido. Como os presentes se encontravam ali
em número nulo, resolveu prosseguir o seu caminho, rumo ao centro
da cidade, rumo a zonas mais coloridas, onde mesmo sem sol a luz do dia
pode brilhar. Anos mais tarde, lembrando-se deste episódio, Hans
veio a saber que o estilhaço provinha
de um copo que um gato pouco inspirado arremessara
contra um rato que saltara da sua varanda.
Naquele instante perdido no tempo intemporal
da sua mente porém, Hans não se lembrou que anos mais tarde
se viria a lembrar daquele evento sem importância. No caminho da
luz, não do estádio, mas de uma luz mais profunda, veio-lhe
à memória que aprendera anos antes que a pólvora fora
descoberta, inventada ou plagiada, por um obscuro povo do oriente, de feições
amarelas e de olhos recurvados de uma forma algo invulgar, oblonga ou triangular,
não muito se lembrava bem. O antigo muro que ainda se insinuava
com cores revolucionárias, de gritos solidários de liberdade
e de vontades oprimidas, revelavam-lhe um outro lado da sua mente que não
lhe mentia: o muro fora inventado anos antes para poder ser vendido mais
tarde. Eis que a verdade se lhe oferecia assim de mãos dadas.
De repente reparou
num clarão que se intensificava no horizonte e atirava para o alto
uma esplêndida coluna de fumo. "Uma explosão atómica!",
pensou Hans maravilhado, mas enganou-se. Era só um alemão
que, possuído pela filosofia de Descartes, iniciara toda a investigação
da verdade a partir do
zero e tinha naquele
momento chegado à fase da pólvora. Desiludido, Hans continuou
a andar ao longo do muro, angustiado pelo hediondo vandalismo que se destacava
nessa bela construção. "Eis a ruína da tolerância.
Sim, é isto o símbolo do desrespeito por quem tem uma vontade
própria, uma ideia diferente, uma cultura a defender. Não
terá o direito, um proprietário de ovelhas, a erguer uma
cerca para se defender dos lobos? Se isso é justo, será errado
estender a cerca a um povo inteiro? Ó injustiça. Estes
grafitties horríveis
nunca conseguirão manchar o teu nobre ideal, ó Pai do Povo,
mesmo que não os vendam mais tarde", disse para si mesmo de modo
convicto, e como resposta alguma coisa se arrastou nas sombras. Hans procurou
a origem do ruído, que se assemelhava muito ao arrastar das bilhas
do homem do gás,
e encontrou um homem fardado e sorridente. Reconheceu-o perfeitamente:
não era o homem do gás. Era o José. O José
Estaline. "Um espectro assombra a Europa..."
Hans ainda pensou
perguntar ao lídimo pai dos povos o que estaria ali a fazer e se
seria um espectro dos tempos passados. Mas os tempos passados ainda não
tinham passado e repetiam-se perante os seus olhos ternos, ingénuos,
assustados com o mistério insondável do mundo comunista.
Lançou-lhe um olhar perscrutante, ao qual José respondeu
com um sorriso afável, maledicente, como que perguntando ao pobre
Hans se tinha alguma dúvida sobre a sua divindade e omnisciência.
Hans, um pouco intimidado, respondeu a si mesmo que nenhuma dúvida
tinha, para além da de Descartes. José, placidamente sorrindo,
pediu a Molotov que lhe trouxesse uma pilha de livros de Descartes. Molotov
trouxe-lhe não só os livros, como o autor agrilhoado. Ordenou
que René fosse enviado para um Gulag, por traição
ao povo universal, e regozijou-se pisando os livros daquele que um dia
pisou os de outrem.
O pai voltou o olhar
na direcção de o que parecia ser um buraco. Levantou o braço,
apontou-o ao buraco e fitou Hans. Este percebeu que José lhe ordenava
que para lá se dirigisse . Hans hesitou, mas não se poderia
furtar a cumprir um desejo divinamente formulado por José. Anuiu
timida e ternamente. Caminharam lado a lado. Hans compreendeu então
que aquilo não era um buraco: era uma estação de metro.
Desceram as escadas. José dirigiu-se à bilheteira. De súbito,
Molotov apareceu junto a ele e exigiu três bilhetes para a praça
do Reichsstag. Molotov não pagou dizendo que não havia marcos
na união soviética e que portanto não tinha a obrigação
de pagar. Entraram no metro. Hans recordava, então, o pai dos povos
pisando os livros de René. Ousou mostrar-lhe os dois livros que
trazia consigo, numa sacola vermelha. José deitou-lhe um olhar complacente
e recomendou-lhe que os colocasse no soalho imundo. Hans estava incrédulo
e mais incrédulo ficou quando José pisou com alegria e algazarra
aquelas duas grandes obras dos mestres Marx e Lenine. José não
conseguia parar de troçar de Hans devido às leituras ingénuas
que praticava. O combóio começou a subir até que chegou
à superfície. Uma
multidão
aguardava-os. Hans não compreendia. Quando voltou a olhar para José,
este já envergava uma armadura metálica dourada e empunhava
um longo gládio. Espantado, Hans não reparou que a outra
mão de José segurava uma luva branca, e que esta viajava
agora, a toda velocidade em direcção à cara
de Hans. Foi estatelado
no piso de terra batida, atordoado, que Hans ouviu ao longe a voz do Imperador
Cómodo a dar as boas vindas aos gladiadores.
O rugido ensurdecedor
da multidão sedenta de sangue ressoou por muitos quilómetros
ao redor de Emérita Augusta, calorosamente recebendo o adorado emperador.
Os gladiadores José e Hans curvaram-se perante a magestade de tão
poderoso ser, que logo os advertiu que jogassem bem, pois o vencedor lutaria
com ele. José Estaline, não mão esquerda, empunhava
agora um órgão de Estaline. Hans foi remetido para uma forma
de gladiador mais clássica, com o tridente e a rede. Cómodo
apitou, com os seus calções negros e começou o jogo.
Hans não tinha muita experiência. Estaline tinha. Começou
por disparar o seu órgão. Notas dissonantes extraídas
de um bailador de Stravínsqui ecoaram pelos seus, como que alcançando
o infinito, mas não atingiram Hans. Estaline, irritado com a arbitragem,
mandou chamar Molotov e ordenou-lhe que enviasse Cómodo para o mesmo
Gulag de Descartes. Hans aproveitou para se render, depondo as armas. A
multidão exultante com este nobre gesto clamou por clemência,
de dedo apontado para cima. O homem do povo, só pelo povo, acedeu.
Não podia
acreditar na situação, o pobre Hans, que só mais tarde
recordaria o pedaço de vidro que seria a chave para a compreensão
total da história, e pelo sim pelo não decidiu afastar-se.
Enquanto José fazia um discurso para a multidão enaltecendo
as superiores virtudes do trabalho e da honestidade social, Hans desceu
pelo buraco das feras e caiu sobre um elefante de tamanho superior ao razoável.
"Pela Utopia, como são diferentes os proboscídeos nesta terra!",
pensou enquanto observava a sua enorme estrutura de madeira, cheia de arestas,
com quatro patas em estilo coríntio e uma cabeça de cavalo.
Era um elefante filósofo e citava máximas. Hans tocou-lhe.
"Eu nem sei que nada sei", disse uma voz, e toda a estrutura começou
a tremer. Era o sinal. Da barriga abriram-se duas portas e sairam de lá,
empunhando espadas, Ulisses e Diomedes, seguidos do exército grego,
para devastar de tudo em volta, onde era afinal a mítica cidade
de Tróia (bem disfarçada de anfiteatro futurista). Hans achou
prudente esconder-se atrás de um barril mas enganou-se e foi parar
ao cimo de uma torre próxima do porto. De lá viu Eneias embarcar
em direcção a Cartago para fundar um novo reino e decidiu
esconder-se num dos seus barcos para escapar. Cheirava a peixe e ainda
estava longe o tempo em que os proletários conquistariam a felicidade
tomando os meios de produção e a justiça construindo
uma comunidade de iguais, mas era melhor que nada.
Foi então,
que Eneias reparou no pobre Hans. Cheio de humanidade, dirigiu-lhe a palavra
e perguntou-lhe se tinha fome. Hans anuiu, ainda atordoado com a bondade
de Eneias. Este, graciosa e gentilmente ofereceu-lhe uma bola de Berlim.
Hans rejubilou e devorou-a sofregamente. Eneias, cheio de compaixão,
ofereceu-lhe outra. Hans aceitou prontamente. À décima bola
de Berlim, Hans começou a hesitar. Eneneias estendia-lhe outra bola
com um sorriso terno. Cinco bolas depois, Hans viu-se forçado a
recusar, gentilmente. Eneias insistiu. A voz de António Marx sussurou-lhe
ao ouvido: "Não desperdices! Não desperdices!". Hans comeu
a décima sexta bola. Disse a Eneias que não podia mais. Nesse
instante, a face de Eneias alterou-se, escureceu como o céu que
se cobre de núvens negras, ameaçadoras: "Não quero
saber se podes ou não podes ! Tu vais continuar a comer !". As lâminas
frias dos gládios de cem legionários refrescaram as costas
e o ventre de Hans, que, intimidado, prosseguiu comendo até à
vigésima quinta bola. Aí, Eneias mandou dispersar a sua legião.
Pediu então a Aníbal, que atirasse Hans borda fora, uma vez
que já se encontrava suficentemente pesado para ir ao fundo. Aníbal
deu um valente pontapé em Hans, que voou até ao mar.
Hans sentiu-se afundar.
Achou muito curioso estar a afundar-se e nem se deu conta que não
conseguia respirar debaixo de água, como viria a reconhecer momentos
depois. Quando menos esperava, um náutilo aproximou-se, cada vez
maior, cada vez mais próximo. Era enorme. Era cinzento. Era cinzento
metalizado. Certamente não seria um náutilo qualquer. Não
de facto não o era. Era um submarino em forma de um náutilo
que, subitamente, abriu a sua boca gigantesca e engoliu Hans. A boca fechou-se.
A água sumiu. Hans estava só numa enorme sala escura. Foi
então que a claridade repentina quase o cegou. Um vulto aproximou-se.
Era o Capitão Nemo: "Bem vindo meu pequeno. Vou levá-lo até
à base subaquática de Hitler". Hans
suspirou de alívio.
O fürher
estava de costas, pensativo, contemplando o aquário natural que
a natureza das profundezas do mar lhe colocava à frente dos olhos.
A uma palavra do capitão Nemo, virou-se e Hans sentiu na pele a
emoção de ver com os seus próprios olhos, e não
com os olhos de uma qualquer vetusta máquina de filmar a preto e
branco, os olhos do grande líder, o comandante. Estava diferente.
Rapara o bigode e perdera alguma da sua personalidade. Mas foi cordial
e acolheu com amizade o visitante. Saudou-o de braço esticado e
ordenou-lhe que se dirigisse à sala ao lado. Explicou que se tratava
de uma biblioteca e aconselhou Hans a ler todos os livros que lá
estavam. Na manhã seguinte teria exame de segunda época,
sobre a matéria exposta nesses códices. Hans entrou, humildemente.
A porta fechou-se atrás de si. Nas três paredes da sala sem
janelas, havia três estantes, repletas de livros. Aproximou-se. Leu
o primeiro título: "Mein kampf", von Adolf Hitler. O segundo: "Mein
kampf", von Adolf H!
itler. O décimo
sétimo: "Mein kampf", von Adolf Hitler. O nonagésimo nono:
"Mein kampf", von Adolf Hitler. E por aí fora, todos com capas de
cores diferentes, umas com o retrato do ídolo, outras sem ele. Hans
achou que a tarefa de ler apenas um livro não seria assim tão
difícil e começou a lê-lo, sofregamente, absorvendo
cada palavra, cada vírgula, cada curva de cada letra com ardor.
Só a meio da noite reparou que estava acompanhado. Noutra cadeira
da mesa, com orelhas de burro, estava sentado um aparentemente mau aluno
chamado Mao.
Mao comunicou a Hans
que preferiria um nariz de porco em vez de umas orelhas de burro. Sentia
que tinha mais vocação para porco. Esta coisa de não
compreender bem o "Mein Kampf" era apenas um efeito secundário da
revolução cultural, que o impedia de compreender o que quer
que fosse para além do livrinho vermelho. Não: ele tinha
ficado burro, mas não era um burro. Mas porco, sentia que sim.
Hans sentiu asco
pela aquela figura grotesca, de abanos compridos, acompanhado de um incontrolável
desejo de a abraçar e, sinceramente, felicitá-la pelos seus
feitos heróicos em prol de toda a humanidade. Dirigiu-se a Mao de
braços abertos, sorriso rasgado ... mas, eis que Mao começa
a bater as orelhas e a voar. "Vou enganar todos os pássaros como
te enganei ! Vou exterminá-los a todos !" e saiu da sala. Encolheu
os ombros e continuou a ler. Hans voltaria a lembrar com curiosidade este
momento, mas não fazia a mínima ideia porquê. De manhãzinha,
Hans acordou ao som da voz do Capitão Nemo, que lhe ordenava que
levantasse para o exame. Nemo ostentava, agora, uma suástica negra
no seu braço direito. Bateu as botas e entraram dois soldados que
pegaram em Hans e o levaram.
Viu-se sentado numa
sala escura, cheia de cadeiras com apoios laterais para escrever. Curiosamente
todas as cadeiras estavam vazias. Não ... mentira: lá estava
Mao sentado num dos cantos da sala. E nas cadeiras a seu lado, minúsculos
passarinhos aguardavam de caneta em punho o início do exame. Hans
transpirava. Não
estava confiante num bom resultado. Ignorava se havia assimilado com a
clareza necessária, a essência do saber do führer. Uma
campainha tocou. Folhas de papel voaram até aos examinandos. Folhas
brancas. De seguida, silêncio. Hans vez um esforço por escutar
algo. Nada. Nem um som. Até que Hans detecta um estranho som: sim
... é o som de pés calçados unicamente com uma meia
a roçarem o soalho castanho e encerado. Hans volta-se e dá
de caras com uma temível figura mítica : Gustav Kresp. "Não
pense que vai copiar ! Apesar do exame ainda não ter sido distribuído,
eu
estou aqui atento
! A mim não me engana você ! Eu sou muito esperto ! A mim
não me enganam !". Hans tremia. E começou a tremer ainda
mais quando Kresp anunciou a primeira questão: "uma especificação
formal das pré-condições do Mein Kampf". Hans sentia
o odor a fracasso inundando a sala.
O exame decorreu
com Kresp sempre atento, de olhos bem abertos sondando a sala e espremendo
os passarinhos, que mal podiam com as canetas. Neste interim, Hans nada
conseguiu escrever. Um vazio inesperado preenchera-lhe o intelecto um pouco
cansado. Os exames foram corrigidos à frente dos alunos, por Mussolini,
que arranjara um tacho como assistente da cadeira de "Mein Kampf III".
Hans foi reprovado e obrigado a submeter-se a um exame oral com o próprio
fürher, o responsável pela cadeira. Foi levado à sua
presença, escoltado por três soldados barrigudos com sotaque
do sudoeste da Baviera, que discutiam se Rovaniemi deveria ou não
ser completamente queimada, porquê e porque não. O distinto
fürher aguardava o aluno já com o seu bigode no sítio.
Agora, com um ar mais ameaçador, o fürher inspirava a Hans
uma sensação de descontracção inaudita. Ele
faria tudo o que aquele grande homem lhe dissesse. Começou por perguntar-lhe
o nome do livro e porque o chamara assim. Hans respondeu que a grande luta
dos superiores povos germânicos era o mais elevado dos ideais pelos
quais um homem digno desse nome poderia aspirar a lutar. E acrescentou
que os ideais, as ideias, ou arquétipos tinham sido já descritos
por Platão. O fürher ofendido com a resposta mandou chamar
Platão e pediu-lhe satisfações, sentindo-se injustiçado
por uma profunda, austera e ancestral manobra de plágio que lhe
havia sido instaurada, como processo disciplinar, por aquele discípulo
de um manipulador de opiniões chamado Sócrates. Queria ser
como ele, para poder fazer bons comícios, que apelassem às
massas.
...continua
Nils
Holgerson (contacte-me)
Jigglypuff
(não me diga nada)
Si
Tchou Peq (faça como achar melhor)

O Führer
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