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canto do
conto
por Luís
Gustavo
Entre
três paredes
O retrato de minha mãe
continua na parede principal, impecavelmente limpo, como sempre. Ela está
linda na foto em preto-e-branco. Jovem, na época em que conheceu meu pai,
alguns anos antes de se casarem. Ah, como ela falava com saudosismo
daquela década de cinqüenta. Deus a tenha. Deus tenha meu paizinho também.
Homem trabalhador, honesto. Grande pai. Sinto um aperto no peito quando
penso nos desgostos que lhe dei. Bem, mas isso já é passado. Descansem
em paz, como se diz. Abaixo da foto de mamãe, uma mesinha de madeira
antiga, coberta com uma toalhinha branca de renda bordada por mim mesmo.
Um vasinho de flores já murchas está sobre a mesa. Parafusada na outra
parede, minha estante de livros. Devo ter uns vinte livros, eu acho. Li
todos umas duas vezes. Gosto muito de ler, o livro faz companhia pra gente,
não deixa a gente sozinho. Minha cama está encostada na parede ao lado.
É bem simples: um colchão fino, lençóis surrados. Mas é a minha cama,
entende? Foi nela que dormi nos últimos trinta anos. Amanhã já estarei
em outros lençóis, em outro colchão. Vou sentir saudade da minha
caminha. O toalete é logo ali. Limpinho, como sempre fiz questão que
fosse. Eu sou muito limpinho com tudo. Não é por que estou nesse lugar
imundo que tenho que ser sujo, não é mesmo? Você que agora está lendo
essa cartinha que rabisco na parede, faz um favor: cuida bem da minha cela,
porque às vezes um dia eu volto e vou querer ver tudo em ordem, viu?!
Luís
Gustavo, novembro de 2003
Estação
sonho
Perdeu a estação de novo. Já é rotina. Ele não liga. Ela
estava no mesmo vagão e isso bastava. Contemplou seu vestido de flores
verdes por todo o tempo em que estiveram no mesmo vagão do metrô.
Suspirava de pé, lembrando dela do outro lado do vagão, sentada entre
duas pessoas, lendo uma revista de decoração e arquitetura. Como seria
sua casa? Pequena, paredes brancas, garagem sem portão, portas e janelas
azuis de metal. Mobília simples, quatro cômodos, tudo de madeira,
cozinha branca com fogão de quatro bocas branco e geladeira branca.
Mesinha quadrada na sala, sofás azuis e uma TV de 20 polegadas sobre um
pequeno móvel marfim. Sem videocassete. Nem DVD. Em seu quarto, cama de
solteiro com colcha de crochê bege e um criado mudo discreto no canto,
perto do guarda-roupa modesto. Banheiro normal, exceto pelo vaso de girassóis.
Sem quintal, mas com uma pequena área de serviço, com máquina lava-roupas
e afins. Dormindo no sofá azul da sala, um pequeno cachorro. Um cachorro
pequeno como todo o resto. Ela também era pequenina, ele sorriu ao se
lembrar. Pena não ter prestado atenção à estação na qual ela saltou,
pois poderia imaginar o endereço de sua casinha. E seu nome? Qual seria
seu nome? Perdeu a estação de novo.
Luís
Gustavo, São Paulo, abril de 2004
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