A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS
DE IMUNIDADE TRIBUTÁRIA -
CONTEÚDO E ALCANCE
IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS - CONTEÚDO PRINCIPIOLÓGICO
I - O PRINCÍPIO E A NORMA IMUNIZANTE


Os princípios, como alicerce do sistema jurídico, a ele conferem estrutura e coesão. São “norma jurídica qualificada” , porque tendo âmbito de validade maior, orientam a atuação de outras normas, e assumem função axiológica mais expressiva dentro do ordenamento jurídico.

Ao contemplar hipóteses normativas de vedação absoluta à atividade tributária do Estado, quis a Constituição garantir a efetividade de múltiplos valores consagrados pela sociedade sob a forma de princípios; a valoração desses princípios - que se irradiam no mundo da realidade, em situações concretas – assume grau de relevância tal, a ponto de suplantar o próprio valor que decorre da necessidade do Estado de obter de receitas por meio da tributação. Assim, entre nós também veda-se a taxação de situações e pessoas que encerrem a noção de um valor que, constitucionalmente, pretendeu-se salvaguardar.

Da tricotomia fato – valor – norma, decorre que o fato precede a normatização de uma conduta. O fato jurídico guarda distinção para com os demais em função da valoração que o Direito lhe atribui. Os princípios consagrados por um sistema jurídico podem ou não ser positivados: são a base axiológica que conduz a interpretação das regras ali inscritas.

A partir da polêmica que se estabeleceu entre doutrinadores que reivindicavam às imunidades interpretação extensiva – invocando a injustificável interpretação amesquinhadora do princípio fundamental da norma imunizante – e aqueles que as subordinassem à uma exegese restritiva – imputando-lhes, com questionável e duvidoso acerto, o método aplicável às isenções – tem prevalecido, nos tribunais, o entendimento de que tais comandos devem conduzir a uma exegese mais ampla de seus dispositivos.

A intenção deste breve estudo é a de indagar até que ponto deve-se ir nessa amplitude hermenêutica que se entende aplicável às imunidades. No tocante à interpretação ampliativa, questiona-se aqui se é possível determinar-se um momento - na sucessão de situações que se relacionam ao princípio a ser resguardado – a partir do qual já não se possa reclamar a vedação constitucional à tributação; onde o valor a ser preservado seja já tão tênue de forma a não mais encontrar guarida na norma imunizante.

Por um lado, a postura “fiscalista” que conduz a uma interpretação restritiva das imunidades, motivada por sua excepcionalidade em face da universalidade da tributação, da norma imunizante há que ser relegada. Imunidades tributárias são comandos constitucionais que encerram valores e princípios a serem tutelados, merecendo uma interpretação teleológica. De outro lado, entretanto, a exegese ampliativa não deve ser absoluta, pois as imunidades tributárias são regras, não se devendo perder de vista também o seu conteúdo ontológico.

Tome-se como exemplo, para início do tema, o teor da norma imunizante descrita no artigo 150, VI, d. Quis ali a Constituição brasileira tão-só reafirmar e reforçar o princípio da liberdade de expressão, criando a regra que veda a tributação de livro. Mas princípios e regras não se confundem.

Segundo Eurico Marcos Diniz de Santi , os princípios justificam as regras, mas não são as próprias regras. No exemplo acima, o princípio da "liberdade de expressão" justifica a imunidade do livro, mas não é regra. Se fosse, a regra imunizante seria desnecessária, concluindo que, nessa circunstâncias, seriam inócuas também todas as demais regras. Bastariam apenas os princípios.

Na linha de pensamento do autor, são indubitavelmente valores e princípios que informam a imunidade constitucional; entretanto, a hipótese normativa que determina a vedação constitucional ao poder de tributar – ainda que encerre valores, por ser regra positiva dentro de um sistema rígido – "não permite ilação de que tudo que atenda a esses valores seja imune."

A imunidade, portanto, não é um valor ou princípio em si mesma. É tão-somente um limite objetivo , estabelecido por uma regra positivada, no âmbito da qual não se pode inserir situações por ela não albergadas. Não seria, portanto, correto utilizar os valores que lhe servem de base axiológica para distorcer o sentido da regra objetivada.

Daí a relevância de se aplicar, pelos métodos interpretativos peculiares à Ciência do Direito, a mais adequada e cautelosa exegese à norma imunizante, que – embora moldura na concepção kelseniana – não deve albergar situações e pessoas que não as intentadas pela Constituição. Não se estabelecendo um critério de interpretação coerente das regras positivadas e da principiologia constitucional, correr-se-ia o risco de ver estendida ao infinito a cadeia de situações e pessoas que guardam algum nexo com o dito valor implícito no princípio que se visa a resguardar.

Por absurdo, poder-se-ia chegar à situação de que operações envolvendo a semente da árvore da qual se extrai o papel destinado à publicação de livros – na hipótese do artigo 150, VI, d da Constituição Federal – fossem amparadas pela norma imunizante, apenas para citar-se um exemplo singelo. Os desdobramentos poderiam ser ainda mais desastrosos, se o raciocínio enveredasse para situações envolvendo toda a cadeia produtiva antecedente à finalização de um livro ou periódico.

Não se pode legislar, interpretando a norma. As regras imunizantes exigem seu estabelecimento de modo objetivo e expresso, sob pena de se desprezar o princípio da segurança jurídica e da legalidade.



II - O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE


Em função do sistema constitucional brasileiro - rígido que é, positivado está o elenco de casos em que se veda a tributação de situações ou pessoas, restando expresso o retrato do que elegeu o constituinte como hipóteses de imunidade tributária. Com os vícios e virtudes apontados pelos doutrinadores, a rigidez do sistema não pode ser desprezada e tampouco dissociadas desse contexto as normas imunizantes.

Ainda que tais normas, como quis Kelsen, sejam molduras encerrando mais de um conteúdo, cabe ao intérprete a função de identificar as possíveis alternativas capazes de serem ali abrangidas.

Segundo o princípio da legalidade, a tributação encontra três limites. Como leciona Pietro Virga :

“I – A reserva de lei: o tributo só pode ser criado por meio de lei. É princípio fundamental que nenhuma exação pode ser exigida sem a autorização do Poder Legislativo (no taxation without representation);

II – A disciplina de lei: não basta que a lei preveja a existência de um tributo, mas, pelo contrário, deve determinar seus elementos fundamentais, vinculando a atuação da Fazenda Pública e circunscrevendo, ao máximo, o âmbito da discricionariedade do agente administrativo;

III – Os direitos que a Constituição garante: a tributação, ainda que se perfaça com supedâneo na lei, não pode contrastar com os direitos constitucionalmente assegurados.”

Com relação ao princípio da legalidade tributária na interpretação das limitações ao poder de tributar, Marco Aurélio Greco faz também a distinção entre princípios e normas, ainda que seu objeto seja o mesmo (exercício do poder de tributar), atribuindo-lhes, respectivamente, formas diametralmente opostas de fixação de orientação: os princípios estabelecem diretrizes positivas, enquanto as limitações assumem função negativa.

“Os princípios veiculam diretrizes positivas a serem atendidas no seu exercício, indicando um caminho a ser seguido pelo legislador ou pelo aplicador do Direito. Como diretrizes positivas, apontam algo desejado pelo ordenamento e que o Constituinte quer ver alcançado. As limitações (como seu próprio nome diz) têm função negativa, condicionando o exercício do poder de tributar, e correspondem a barreiras que não podem ser ultrapassadas pelo legislador infraconstitucional; ou seja, apontam para algo que o constituinte quer ver não-atingido ou protegido. Em suma, enquanto os princípios indicam um caminho a seguir, as limitações nos dizem por onde não seguir.” (grifos do autor).

Nessa esteira de raciocínio, legalidade tributária não seria um princípio, mas uma norma de limitação ao poder de tributar. Imunidades não são princípios, apesar de encerrarem valores, mas tão-somente regras destinadas ao legislador infraconstitucional, inibindo-lhes o exercício do poder de tributar.

Assim, independentemente da denominação para o instituto da imunidade adotado pelos doutrinadores, seja o de limitação constitucional ao poder de tributar, seja o de hipótese de incidência constitucionalmente qualificada, seja o de limitação constitucional de competência, ou ainda o de demarcação constitucional de competência, pode-se visualizar de forma clara que a norma imunizante encerra preceito que ordena a desoneração tributária, por imposição da Constituição, vedando a taxação de determinados bens ou pessoas.

Diz-se da norma imunizante ser regra, pois, na concepção de Greco e de outros doutrinadores, veicula preceito negativo, devendo estar as respectivas hipóteses expressamente previstas em lei, de modo a preservar a segurança jurídica.

Marco Aurélio Greco estabelece a distinção entre cada uma das figuras e os reflexos no campo da interpretação das normas daí decorrentes, afirmando que “enquanto os princípios têm elevado grau de imprecisão semântica, as limitações, por serem restrições ao exercício do poder de tributar, têm alta precisão conceitual, demarcando o campo de atuação da tributação. ” (grifamos). Observamos que a pretensa “precisão conceitual” das limitações ao exercício do poder de tributar situa-se no campo do dever-ser, dado que é sabido que nem sempre o legislador constituinte emprega a melhor técnica legislativa para descrever as situações que pretendeu.

No sistema tributário brasileiro, estão presentes, em sua materialidade, tanto as hipóteses expressas descrevendo as hipóteses de incidência do tributo, como aquelas normas que inibem a competência tributária das pessoas políticas. Ao aplicador da lei, não cabe inibir ou estender a competência tributária plasmada na Constituição, mas deve precisar o real alcance e significado da norma.

Imune é toda a pessoa que, por sua natureza, pela atividade que desempenha ou por estar relacionada com determinados fatos, bens ou situações valoradas pela Constituição, possa ser encontrar fora do alcance da tributação, mas tão-somente aquela descrita pela regra imunizante, sob pena de que se viole o princípio da segurança jurídica e da isonomia.

O instituto da imunidade não pode assumir, num regime de Estado de Direito, a conotação de benefício ou favor fiscal de que gozavam os privilegiados pelo soberano em tempos remotos, à que se fez alusão no histórico das desonerações (capítulo B, item I).

Nesse sentido, Celso Ribeiro Bastos assevera que "a imunidade tributária, vedando às pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) que instituam imposto sobre certas pessoas coisas ou bens, não pode ser tida como um privilégio, um favor ou benefício fiscal. Em primeiro lugar é de destacar que a Constituição, lei das leis, norma ápice do ordenamento jurídico, preservadora do regime democrático, não pode ser mero instrumento para conceder benefícios, favores ou privilégios a quem quer que seja, nem mesmo para as pessoas políticas de direito público. Por outro lado, a vedação constitucional é feita tendo em vista o interesse público e a preservação, proteção e estímulo de valores básicos do Estado. Seria inconcebível que a imunidade tributária tivesse cunho de benefícios ou de favores pessoais."

É por essa razão que as normas imunizantes tratam-se de regras objetivas, consubstanciadas numa relação que aponta hipóteses específicas e determinadas a serem colocadas a salvo da taxação, dentro do princípio da legalidade estrita que deve permear o sistema tributário nacional.

Como bem observa Fernando Facury Scaff , individualmente, cada qual poderia listar várias outras atividades ou instituições a serem desoneradas constitucionalmente; porém a sociedade, quando formalizou a Constituição, com a correlação de forças políticas então vigentes, cristalizou lista das entidades "eleitas" para estarem aptas a gozar da desoneração impositiva proposta.

Exegese "ampliativa" que pudesse dar azo a excluir da tributação situações outras não previstas na norma imunizante equivaleria a legislar por meio da interpretação, ao sabor de interesses os mais diversos, estabelecendo-se um privilégio fiscal repudiado pelo sistema, o que violaria o princípio da isonomia.



I
II - O PRINCÍPIO DA ISONOMIA E DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA


Nas imunidades, opera-se a supressão da competência legislativa para a criação de impostos; tratam-se de normas que espelham situações, pessoas ou coisas às quais a Constituição atribuiu relevância extrema, por guardarem conexão com os princípios que a informam e se prestarem à consecução das finalidades nela previstas.

Para Aurélio Pitanga Seixas Filho , "somente devem ser excluídas do dever jurídico de pagar tributos aquelas pessoas que não tenham um mínimo de capacidade econômica para cumprir esse dever cívico", entendendo deve valer essa regra para qualquer tipo de expropriação monetária.

No tocante às desonerações decorrentes das imunidades, o autor as divide em duas espécies: as imunidades originárias, em que a pessoa não é sujeita ao dever tributário por qualidade própria que impede a subordinação a outro poder tributário (hipótese da imunidade recíproca) e as imunidades derivadas, decorrentes de dispositivo expresso da Constituição (aplicável aos demais casos: partidos políticos, sindicatos, templos religiosos e atividades educacionais e assistenciais sem finalidade lucrativa).

Quanto às chamadas imunidades derivadas, a não tributação é oriunda de dispositivo constitucional expresso, onde a Constituição identificou - mais do que a conexão com o próprio valor-princípio a ser preservado - a incapacidade contributiva, a intributabilidade dessas atividades.

Tanto assim é que, por outro lado, qualquer atividade extravagante exercida pelas entidades imunes - inclusas também as contempladas com a imunidade recíproca - indicativas de função empresarial ou econômica, para não se ferir a isonomia de tratamento tributário, devem se sujeitar à exação.

"Assim como a imunidade recíproca em favor das pessoas de direito público não abrange a exploração de atividades econômicas regidas por normas aplicáveis a empreendimentos privados, do mesmo modo, se as entidades filantrópicas, assistenciais e educacionais exercerem alguma atividade extravagante, isto é, fora do regime jurídico tributário próprio dessa atividade empresarial para não ferir o princípio máximo da igualdade tributária, de que situações idênticas não podem pagar tributos diferentes, já que o exercício de uma atividade econômica ou empresarial deve sujeitar as pessoas ao pagamento do mesmo tributo para não agredir o princípio da livre concorrência. O privilégio concedido a alguém dentro de um mesmo setor econômico ou empresarial configura uma concorrência desfavorável para os demais participantes."

No princípio constitucional da livre concorrência, e naqueles específicos relativos à tributação, como o da estrita legalidade, o da isonomia e notadamente o da capacidade contributiva, pode-se vislumbrar algum critério para a interpretação e a explicitação das regras imunizantes que limitam o poder de tributar: a exegese ampliativa deve ser balizada por esses limites.

Como observa Marco Aurélio Greco , "por um lado, a Constituição Federal introduziu inequivocamente o princípio da capacidade contributiva, e com o status de verdadeiro princípio. Em segundo lugar, introduziu a idéia da isonomia tributária como limitação constitucional ao poder de tributar."

"Detectada a capacidade contributiva a ser captada pelo imposto, o respectivo poder de tributar deverá ser exercido positivamente no sentido de alcançá-la, ao mesmo tempo em que deverá atender a uma limitação, qual seja, fazê-lo com isonomia, sem discriminações. Em suma, isonomia é o critério de atingimento da capacidade contributiva e parâmetro de aplicação e interpretação das normas que disciplinam o tributo."

Os princípios, pela própria imprecisão de seu alcance, diferem das normas, servindo-lhes de parâmetro interpretativo. As regras objetivas, se não forem aplicadas, estarão sendo infringidas, o que não ocorre com os princípios, que podem não ser aplicados sem serem infringidos.

A ratio essendi das normas constitucionais que tipificam fatos, pessoas e bens excluídos da imposição tributária invariavelmente é a de prestigiar, através da desoneração fiscal, determinados valores tutelados pelo Estado, tais como o equilíbrio da Federação, a liberdade sob suas diversas facetas - a de livre associação, a de expressão, a de opção política, a de culto, a de organização sindical, a livre concorrência - dentre outros, como os da isonomia, da estrita legalidade e da capacidade contributiva. "Em verdade, a imunidade tributária repousa em exigências teleológicas, portanto valorativas. É o aspecto teleológico que informa o seu conceito.” Todos os princípios devem ser aplicados, sem precedência de quaisquer deles, adaptáveis ao caso concreto segundo o peso que tiverem, mas sem perder de vista a visão principiológica ampla do sistema.

"Enquanto a aplicação de regras jurídicas se funda em argumentação binária, em que uma regra corrige ou revoga a que lhe contradiz, a dos princípios se baseia na ponderação, de tal forma que, em determinadas situações, um princípio apresenta peso menor que o de outro que se ajusta melhor ao caso, sem daí se poder concluir pela superioridade de qualquer deles. Os princípios constitucionais vivem em equilíbrio e na permanente busca da harmonia."

Entretanto, em que pese o conteúdo valorativo atribuído às regras constitucionais - presente, aliás, esse aspecto axiológico em qualquer norma - as imunizantes foram eleitas pelo constituinte como normas de vedação ao poder de tributar. Não têm elas a categoria de princípios constitucionais: são regras de supressão da tributação. E é justamente essa vedação que visa a preservar os valores de alto teor axiológico. A imunidade protege princípios contidos no Texto Constitucional.

Assim, é impróprio falar-se que esta ou aquela norma deva merecer interpretação "extensiva" ou "ampla", "como se fosse possível, com base em critério de técnica interpretativa, estender ou restringir o alcance e o sentido da norma jurídica. Esta, na verdade, não pode ser ampliada ou diminuída através da interpretação, que visa buscar o exato alcance e sentido da lei.

São aspectos a serem abordados no capítulo seguinte.
Página Inicial          Natureza e Escopo         Conteúdo Principiológico                A Interpretação das Normas

 
As Imunidades Constitucionais       Limites de Interpretação das Normas Imunizantes             Conclusão

  
Curriculum da Autora          Artigos Tributários             " Frases " Tributárias                  Links Tributários