O Arraial
O lugar ermo, parado, dava uma
sensação de languidez nos habitantes. As colinas cercavam os sítios ali
existentes. A água do rio corria mansamente, descendo de sua nascente, ao
lado da mata no alto, entre grandes pedras. Começava com um fiozinho,
transparente, límpida, entre a vegetação verde das samambaias e o salpicado
colorido de flores campestres. No fundo do rio as pedras eram brancas,
deixando assim a água fria mais atraente. Quanto mais corria para o vale
mais forte ia ficando ao se juntar à outras nascentes e assim ao atravessar
os pequenos sítios logo abaixo já a cor se transformava e tornava quase
negra em alguns pontos. Em outros era barrenta. Passava por chiqueiros,
currais, se transformava em turva e carregava consigo restos de alimentos e
excrementos, servindo assim de adubo para a vegetação ribeirinha.
Os alimentos em
abundância reproduziam e serviam para a pequena população que crescia à sua
margem.
Antes de atingir o vale,
o rio caia em cascata espumante formando um belo espetáculo. Por este motivo
recebeu o nome de véu de noiva. Lembrava aos mais românticos a leveza e a
pureza dos véus que cobriam as jovens puras.
Logo abaixo da
cachoeira um lago se formava devido as grandes pedras que em círculo
retinham parte do líquido claro e gelado. Em seguida continuava seu caminho
ao encontro de novos afluentes.
Passava pelo Arraial de
Santa Luzia, bem atrás da igrejinha da santa onde caia logo abaixo da
pedreira que formava uma nova e pequena cascata. O lugar preferido dos
casais de namorados.
Ao lado da capela
ficava um barracão onde eram feitas as quermesses, leilões e bailinhos da
juventude animada.
Em frente a igreja um
jardim onde primaveras e brincos de princesa se destacavam no verde gramado.
Alguns bancos, feitos de troncos rústicos, serviam para os mais velhos
descansarem. Ao redor do jardim algumas casas de famílias. Um casarão
comprido e velho abrigava a farmácia e o posto médico. Servia também de
moradia para o farmacêutico.
Uma ver por semana aparecia um médico que cuidava
da pequena população. Na farmácia vendia-se remédio caseiro ao lado de
outros feitos em laboratórios. Os chás de raízes, que a própria mulher do
farmacêutico plantava no quintal, eram os mais requisitados. A vizinhança
sentia mais confiança no farmacêutico prático do que nos médicos da cidade.
Diziam que a beberagem fora ensinada pelos índios ao dono da farmácia e
servia para tudo, desde pedra nos rins até cólicas do fígado e intestino.
Alguns reconheciam que curava até mal olhado. Era tiro e queda. Depois o
pessoal dos sítios e chácaras vizinhos eram sadios, bem alimentados e
dificilmente ficavam doentes. Além é claro, os chás eram bem mais baratos.
Lembravam-se de um
caboclo que havia sido picado por cobra. O remédio dos índios mais uns
emplastos aplicados no lugar onde o veneno fora injetado salvara o rapaz que
continuava alegre e feliz tocando seu violão nas festas do povoado.
Uma negra, forte e
asseada, se incumbia de fazer pães e doces e vender para os vizinhos.
Dona Benê, como era
conhecida, vivia com um lenço branco amarrado à cabeça e vestido também
branco rodado, como das baianas. Nas orelhas brincos de ouro em argolas
grandes e pesadas. No pescoço colares coloridos. Diziam as más línguas que
ela acendia uma vela à Deus e outra ao diabo, pois era dada a macumbas e não
deixava de cuidar muito bem da igrejinha.
Uma das casas, a mais
bonita, pertencia a família de portugueses. Seu Pedro e dona Raquel, viviam
num sitio chamado Coração Alegre, ao lado do sitio Paraíso. Só vinham até o
Arraial quando havia festa. A maior parte do tempo passavam em Coração
Alegre, onde junto a pionada e colonos, trabalhavam arduamente. A mãe de
Pedro, dona Josefina e os filhos, Rui e Margareth, com th, como a avó
exigira para dar um toque de distinção, viviam juntos.
Os vizinhos mais
próximos eram de uma família de caboclos: José, Maria e mais quatro filhos,
Manoela, Rogério, Paulo e Benedita.
A diferença entre a
vida de uma família e outra era grande. Para começar enquanto Pedro
progredia à olhos vistos, José apenas fazia o suficiente para viver. A
vidinha de José no entanto era bem mais tranqüila que de Pedro e este no
fundo invejava o vizinho pobre.
No Arraial, além do
farmacêutico, dona Benê, a padeira, o posto médico, havia também uma venda.
O dono da venda era um
português, seu Manoel, que se associara com seu Jacob, um sírio. A sociedade
dera certo pois Manoel cuidava da venda enquanto o sócio, Jacob, saia para
fazer compras e vender nos sítios vizinhos.
Na venda havia de tudo,
desde bacalhau, para agradar a portuguesada, até linhas, tecidos, panelas e
outros utensílios para as casas. O que mais irritava Jacob era ser chamado
de turco.
Os vizinhos para
irritá-lo não perdiam a oportunidade de chamá-lo assim para ouvi-lo dizer
um palavrão.
No Arraial também havia
uma casa antiga, muito bem cuidada, com as janelas cobertas de cortinas de
renda branca e muitas flores em vasinhos espalhados pelos beirais dos vitrox
e sobre móveis cobertos por toalhinhas de croché onde residiam duas
solteironas, Mafalda e Marivalda, filhas de dona Jacinta.
As solteironas, muito
magras, estavam sempre juntas e vestiam saias justas e blusas de babadinhos.
Muito comportadas não perdiam missa e terços. Compenetradas rezavam Pais
Nossos e Ave Marias e pelo rabo dos olhos vigiavam os vizinhos para depois
comentarem sobre eles no recato de seu lar bem arrumado. A mãe das duas,
dona Jacinta, apesar de bem mais velha era o oposto das duas. Uma velhinha
do rim quente. Gostava de fazer tudo que sua idade e caduquice permitia. Era
o sufoco e a vergonha das duas filhas de mente acanhada.
Para completar a
população do Arraial havia uma tenda de ciganos. Lá, já assentados e contra
a natureza da raça, haviam se acomodado à muitos anos. Já faziam parte da
sociedade local. Léo e suas duas irmãs, Violeta e Soledade. As duas gostavam
de usar vestidos compridos, rodados, coloridos e cheios de rendas. Colares e
brincos de ouro completavam o conjunto. O rapaz, sisudo, tinha na cintura
uma faixa vermelha e no pescoço e dedos correntes e anéis dourados. Viviam
de fazer e vender tachos de cobre. De vez em quando sumia algumas galinhas e
todos já gritavam ser os ciganos os responsáveis. Nunca conseguiam provar
nada. Apenas algumas penas esvoaçavam pelo Arraial.
Uma casa modesta servia
de abrigo para os padres, a professora e o médico que vinham de vez em
quando.
Rodeando o Arraial
havia uma mata cerrada. Diziam que era mal assombrada e que à noite um
fantasma costumava arrastar correntes e gemer por lá. Era a alma de um
bandido que fora assassinado com um punhal pelo companheiro e queria
vingança.
Na entrada da mata um
casebre de pau-a-pique abrigava um negro velho, conhecido por pai Tião. De
vez em quando ele era visitado por um índio que vivia com sua tribo vagando
pelas matas mais cerradas.
Pai Tião gostava de
contar histórias e a criançada da vizinhança era sua maior platéia.
Junto com a família de
Pedro e Raquel havia uma mulata, seu marido João e seu filho, mais conhecido
por Tição.
Assim fica registrado
como era o Arraial de Santa Luzia quando começa nossa história.
O local era um
pedacinho do Brasil.