Eu sou normal, acredite
Sentem-se,  o show vai começar
Proteja-se: você pode ser o próximo
Mudando um pouco seu dia-a-dia
Tudo que você sempre quis ser, mas tinha vergonha
Se quiser, ponha açúcar
Got popcorn?
Let's swing, babe
Plante uma árvore, tenha filhos, escreva um livro
POW! CRASH! TUM! SNIKT!
O que você está olhando?
Porque o importante é vencer
 : )
You're hot - come on in
Veja tudo que você nunca quis ver
Saiba quem são os culpados por isso
Seja experto! Gaste pouco e ganhe muito
Sugestões? Comentários?
Perdeu algo de bom? Garanto que não


A nossa trégua por Guilherme Freitas

O telefone toca outra vez, tornou-se um incômodo. Atendo com a voz mais repulsiva possível, talvez assim nos deixem em paz. É o tal Marcel, pela milésima vez. Digo que ela não está, porque é o que tem que ser dito, e desligo sem me despedir. Assim que ponho o fone de volta no gancho, começa a chamar de novo. O som estridente faz a sala tremer a cada toque, abafando o som dos gritos que vêm lá do quarto dela. Não atendo, porque sei quem é. Outra vez Marcel ou Renato ou Flávio ou seja lá que outro nome de homem do outro lado da linha, apenas mais um nome estranho violando a nossa paz consentida, a nossa trégua.

Foram tempos difíceis depois que Estela se foi, mas agora, depois de todos esse anos, posso dizer que somos quase como antes, uma família normal. No princípio, ela me culpava por tudo. Ficamos só nós dois naquela casa fria, os quartos muito longe um do outro, passávamos dias sem nos falar, às vezes sem sequer nos ver. Ela se queixava de mim pros tios, mas eu não podia fazer nada. Naquela época, eu me sentia estranho, estava como que descolado das coisas, e preferi me afastar dela. Não queria que me visse assim transfigurado. Ela também não ajudava em nada, me olhando daquele jeito. Ouço o som do telefone de novo, e com ele, os gritos. Não vou atender. Eles não nos deixam em paz, não percebem que não têm lugar aqui. Uma vez, um deles veio até nossa casa, tentou entrar à força, eu quase fui obrigado a chamar a polícia. Lá no quarto, ela se acalma aos poucos. O telefone ainda a deixa muito agitada. Estou pensando em cortar a linha de vez.

Depois dos primeiros meses sem Estela, de todo aquele silêncio, da família se metendo em tudo, aos poucos retomamos nossa rotina. Eu voltei a trabalhar, ela voltou pra escola, e tudo ia bem, porque nada ruim acontecia. Nós nos dávamos bem, não discutíamos e ela não me olhava mais. Eu me acostumei a cuidar dela. Era eu que fazia o jantar, lavava a roupa, dava o dinheiro. Às vezes, ela concordava em ir ao cinema comigo. Eram dias felizes, apesar dela sempre reclamar dos filmes que eu escolhia. Dizia que eram muito infantis. Mas ela era minha garotinha, e eu sabia que isso era pura manha, só mais uma entre tantas.
Pela hora no relógio, imagino que ela deva estar com fome. Vou até seu quarto e, através da porta trancada, pergunto se não quer algo pra comer. Ela responde com gritos, tem sido assim ultimamente. É esse telefone, eu sei. Mesmo assim, trago um pacote de biscoitos da cozinha e coloco lá dentro, com cuidado pra não abrir a porta mais do que o necessário. Não posso deixá-la sair desse jeito, não até que eles parem de nos importunar. Minha garotinha é muito sensível, e todos esses nomes de homem estão deixando ela louca.

Foi no seu último aniversário que eu percebi tudo. Minha garotinha estava fazendo 19 anos. Eu a convidei pra ir ao cinema, mas ela não aceitou. Isso me deixou muito chateado. Comprei um bolo, velas e um presente, saí do trabalho mais cedo pra poder estar lá quando ela chegasse da aula, mas ela não voltou pra casa aquela noite. Fiquei transtornado. Passei a madrugada inteira em claro, vigiando a porta, atento ao menor ruído na rua. Ainda assim, acabei cochilando. Acordei com o sol já alto, ela se esgueirando pra dentro de casa, andando na ponta dos pés pra que eu não notasse sua chegada.

Mas eu notei e me levantei e perguntei o que tinha acontecido. Eu tateava seu corpo em busca de arranhões, ferimentos, qualquer coisa que justificasse aquilo. Ela me explicou que os amigos deram uma festa surpresa depois da aula. Que amigos, eu perguntei, porque não conhecia nenhum. Minha garotinha não tinha amigos, só tinha a mim. Depois que Estela se foi, éramos só nós dois e a casa. Não havia lugar pra mais ninguém. Ela me explicou que eram os amigos da escola, os amigos de Marcel. Eu não conhecia nenhum Marcel, e ela disse que era porque nunca tinha tido coragem de me apresentar o namorado. Começou a fazer uma lista de nomes, os amigos, nomes de homens que eu não conhecia e que ela também não podia conhecer. Não fazia sentido. Minha garotinha estava ficando louca com todos aqueles nomes de homens. Eu precisava fazer alguma coisa pra ajudá-la.

Nas semanas seguintes, ela passava cada vez menos tempo em casa, cada vez menos tempo comigo. Dizia que agora que eu já sabia de Marcel, não tinha mais razão pra fazer nada escondida. Eu não conhecia nenhum Marcel, e ela disse que era o namorado de quem já tinha me falado tantas vezes antes. Minha garotinha não estava bem. Um dia um homem apareceu procurando por ela em nossa casa. Esse homem sabia o nome dela e sabia quem eu era, ele sabia demais. Tentou ser gentil, perguntou por ela, mas eu disse que ela não estava, porque era o que tinha que ser dito, e ele foi embora.

A partir desse dia, não havia mais outra solução. Minha garotinha precisava ficar em casa. Alguma coisa muito estranha estava acontecendo lá fora. Tentei conversar, mas ela não me ouvia, me acusava de coisas horríveis. Não me tratava assim desde a época em que perdemos Estela. Às vezes não se pode discutir com essas meninas, é preciso tomar uma atitude. Coloquei ela de castigo no quarto. Tranquei a porta e guardei comigo a chave. Desde então ela não saiu mais, e eu sinto que as coisas melhoraram. No começo ela gritava, socava a porta. Os vizinhos ficaram preocupados, mas eu contei sobre a doença e eles não se meteram mais. Minha garotinha parecia não entender que o que eu fazia era pro seu bem. Um pai nunca faria mal a uma criança.

Depois de umas semanas, ela já tinha se acalmado. Estamos retomando nossa vida normal. O único problema é o telefone. Ela ainda fica agitada toda vez que ouve o toque, grita como louca. Todos aquele nomes de homem do outro lado da linha perguntando por ela, os amigos, por que ela não foi à aula hoje, por que não aparece mais, o que houve com ela. Eu tento explicar a doença, mas eles também são loucos, eles sabem demais. Um deles se chama Marcel e é o que mais nos importuna. Um dia apareceu na porta da nossa casa, querendo entrar, eu quase tive que chamar a polícia. Eles não entendem que minha garotinha precisa descansar.

Passou-se mais de um mês, e agora as coisas já estão mais tranqüilas. Poucos ainda ligam. Minha garotinha já não grita como antes, acho que está recuperando a calma. Vou até a porta do seu quarto e pergunto se ela está bem. Não há resposta, é um bom sinal.

E-mails para esta coluna:gc_freitas@yahoo.com.br