Doença de von Willebrand (vWD):
Apesar de muitos autores descreverem a vWD no capítulo das doenças funcionais plaquetárias,
preferimos comenta-lo entre as coagulopatias.
É uma das mais freqüentes desordens hemorrágicas hereditárias, com uma prevalência de 0.9-1.3%
na população em todo o mundo e de pouco menos de 3% nos Estados Unidos, segundo John D. Geil.
De grande destaque na vWD é a grande discrepância existente na história das hemorragias
entre os familiares e, até mesmo, no paciente em diferentes períodos. Também não existe relação
precisa entre a intensidade dos fenômenos hemorrágicos e os dados laboratoriais. No estudo de
Biron e colaboradores, apenas 8 de 30 pacientes, com o tipo 1 da vWD, com redução significante
do nível de vWF(ag), apresentavam hemorragia na HDA ou na HF.
Os distúrbios hemostáticos referentes à vWD estão relacionados às alterações surgidas na
síntese do vWF e na conseqüente anormalidade funcional.
O vWF é uma grande glicoproteina sintetizada pela célula endotelial vascular e pelo
megacariócito. Em situações de normalidade, o vWF das plaquetas não é incorporado ao "pool"
plasmático circulante.
O vWF, derivado da célula endotelial, forma no plasma um complexo não-covalente com o FVIII
coagulante (FVIII-C). Essa ligação dá estabilidade ao FVIII-C com aumento de sua sobrevida,
protege o referido fator contra a inativação proteolítica e o potencializa na atividade como
co-fator no mecanismo de coagulação.
A outra grande função do vWF é a de promover a adesividade plaquetária ao subendotélio,
conforme descrevemos na seção Hemostasia (ver MENU).
Essas funções do vWF decorrem da estrutura peculiar da molécula, já que é formada por multímeros
de diversos tamanhos (pequenos, intermediários e grandes). Os multímeros de maior tamanho são
os que propiciam a ligação das plaquetas ao subendotélio, enquanto que os de menor tamanho são os
que favorecem a ligação entre o vWF e o FVIII-C.
Outro ponto importante que precisa ser ressaltado para entendermos os testes diagnósticos dessa
doença é o do "shear rate/stress" que definimos na seção Hemostasia, mas repetiremos aqui dada a
sua importância para a compreensão do assunto.
"Shear rate" corresponde à interface do sangue circulante com a parede vascular. Em outras
palavras, é a velocidade de deslocamento da lâmina de sangue circulante, mais próxima à parede
do vaso. As plaquetas dessa camada de sangue são, justamente, aquelas que entrarão em contato
com o subendotélio exposto após a lesão do endotélio.
"Shear stress" representa a força de colisão das plaquetas entre si e da plaqueta com uma
superfície, por exemplo, a fibrila de colágeno. No fenômeno de "shear rate" as plaquetas são
arrastadas em uma superfície; já no "shear stress" elas se chocam com a superfície.
A importância disso está em que a atividade de ligação do vWF aumenta com o aumento do "shear
rate/stress".
Um novo teste, prático, está sendo empregado para o diagnóstico da vWD - é o tempo de oclusão.
Para tal, é empregado um aparelho, o PFA-100 (Platelet Function Analyzer, Dade International,
Massy, France) para pesquisar defeito de adesividade e agregação plaquetárias, particularmente
na vWD.
O sangue total citratado é aspirado, sob alto "shear rate" (5000-6000 dyn/cm2 através
de um tubo capilar para uma abertura central (diâmetro de 150 µm) de uma membrana revestida
com colágeno e com agonistas plaquetários (epinefrina e ADP). O tempo requerido para obter
oclusão da abertura, por um trombo plaquetário, é denominado tempo de oclusão (TO) ["closure
time"].
O analizador é bem adaptado para testes de rotina, tendo as vantagens da simplicidade, da
fácil execução, do emprego de variado "shear rate/stress", reprodução do ambiente "in vivo",
e demonstrou grande sensibilidade e especificidade (ver bibliografia).
Com o exposto até agora, estamos em condição de interpretar os testes, os quais apresentamos no
Quadro 1, para o esclarecimento diagnóstico da vWD.
Dosagem do FVIII-C |
É a dosagem do FVIII-C que se encontra acoplado ao vWF |
Avaliação do vWF(ag) |
Trata-se da fração antigênica da molécula que é avaliada pela
imunoeletroforese quantitativa usando-se anticorpo específico (técnica de Laurel). Normal =
50-150%. Recentemente, têm sido empregados testes de maior sensibilidade como o de ELISA e o
de citometria de fluxo.
|
Avaliação do vW:R CoF |
É a avaliação da atividade da ristocetina como cofator. Verifica-se a
agregação de plaquetas normais, fixadas em formol, pela ristocetina e plasma do paciente.
A ristocetina é empregada em concentração padrão e o plasma do paciente em quantidades diversas.
Compara-se com a aglutinação usando-se quantidades diversas de plasma normal. Se houver defeito
relativo ao vWF do paciente, a agregação com a ristocetina será anormal.
Normal = 60-150% |
RIPA |
RIPA (aggregation of platelet-rich plasma with ristocetin). É o
registro, no agregômetro, da agregação plaquetária usando-se plasma do paciente rico em
plaquetas, com adição de ristocetina em quantidade de 1.2 mg/mL De acordo com a pesquisa,
quantidades diversas podem ser empregadas |
Estudo dos multímeros do vWF |
Determinação dos multímeros por meio da eletroforese de SDS-agarose
(sulfato de dodecyl sódico-agarose) |
Tempo de oclusão |
Tempo de oclusão determinado pelo analizador PFA-100. Foram fornecidos
detalhes anteriormente |
Quadro 1: Testes laboratoriais para diagnóstico da doença de von
Willebrand
Suspeitamos de vWD quando, além de hemorragia apresentada pelo paciente, particularmente, em
cirurgia e pela mucosa, houver relato de sangramento em familiares e aumento do tempo de
sangramento com plaquetometria normal.
Ao efetuarmos os exames apresentados no Quadro 1, confirmaremos o diagnóstico de doença de von
Willebrand se houver diminuição do nível de FVIII-C, diminuição proporcional do nível
de vWF(ag), alteração da curva de agregação com ristocetina (RIPA) e baixo percentual da
atividade da ristocetina como cofator.
Se pudermos contar com o analizador PFA-100, veremos que o tempo de oclusão (TO) está ampliado,
o que colabora para a confirmação diagnóstica.
Confirmado o diagnóstico, partiremos para a determinação do tipo da vWD promovendo o estudo dos
multímeros do vWF por meio da eletroforese de SDS-agarose.
Com a eletroforese, ao determinarmos as características dos multímeros, podemos caracterizar a
vWD nos tipos apresentados no Quadro 2.
Tipos da vWD |
Principais características |
Doença Tipo I |
Autossômica dominante. Cerca de 70-80% dos pacientes estão nesse grupo.
Diminuição discreta ou moderada do vWF no plasma, porém, estruturalmente normal. Há diminuição
paralela do vWF(ag), FVIII-C e da Atividade Ristocetina-cofator |
Doença Tipo II
Subtipos:
2A, 2B, 2C, 2M, 2N |
Cerca de 15-20% dos pacientes estão nesse grupo. Alteração qualitativa da
molécula de vWF com níveis normais ou pouco diminuidos do referido fator:
2A: Autossômica dominante. Decréscimo quantitativo, parcial, dos multímeros da molécula de
vWF, de grande e intermediário tamanhos. Há diminuição da interação com as plaquetas. A
quantidade do vWF(ag) e do FVIII-C estão normais ou próximos do normal. A atividade da
ristocetina como cofator está bastante reduzida.
2B: Autossômica dominante. Há diminuição da proporção dos grandes multímeros e aumento da
proporção dos pequenos multímeros. Nesse tipo, a interação do vWF com a plaqueta está
aumentada levando à agregação intravascular. As plaquetas agregadas são afastadas
rapidamente da circulação o que leva à trombocitopenia intermitente. Os níveis do
FVIII-C e do vWF são variáveis. A agregação das plaquetas pela ristocetina está
aumentada, mesmo em baixas doses dessa substância.
2C: Autossômica recessiva. Decréscimo da proporção dos grandes multímeros, porém
qualitativamente anormais. Aumento dos pequenos multímeros. A atividade da ristocetina
como cofator está diminuida e em desproporção com a redução do vWF.
2M: Tem alteração laboratorial semelhante a do tipo 2A. Os grandes multímeros não estão
diminuidos, mas o vWF interage pouco com as plaquetas. Há diminuição da atividade do
vWF, mas estão normais o vWF(ag)e do FVIII-C.
2N: Autossômica recessiva. A principal característica desse tipo é intensa diminuição da
afinidade do vWF pelo FVIII-C. Conseqüentemente, o FVIII-C não fica mais protegido da
rápida proteólise, o que resulta na diminuição de cerca de 5% do nível desse fator em
relação ao nível normal. O vWF(ag) e o vWR-CoF estão freqüentemente normais.
|
Doença Tipo III |
Autossômica recessiva. Total deficiência do vWF, porém, sem alteração
estrutural da molécula. Esse tipo apresenta uma incidência de 1 em 1 milhâo de pessoas.
Caracteriza-se pela ausênia da agregação plaquetária pela ristocetina (RIPA), intenso decréscimo
do nível do vWF(ag), indetectavel atividade da ristocetina como cofator e nível de FVIII-C muito
baixo |
Quadro 2: Tipos da doença de von Willebrand
Podemos deduzir do exposto que a doença de von Willebrand se constitui em uma verdadeira
armadilha para o médico, já que as observações que apresentamos a seguir podem afastar a
hipótese de uma diátese hemorrágica na avaliação pré-operatória:
1 - Seus principais sintomas são hemorragias vistas, freqüentemente, em outras patologias ou
sem causa determinada, como epistaxe recorrente, menorragia, pós-extração dentária, pós
amidalectomia, alguns dias após o parto.
2 - O paciente pode não apresentar qualquer história pregressa de sangramento.
3 - Pode não haver história de hemorragia nos membros consangüíneos da família.
4 - Os exames pré-operatórios para pesquisa de distúrbio hemostático podem ser normais.
Também verificamos a existência de discrepância muito grande nos dados dos diversos autores sobre
a prevalência da doença.
Hardin cita a mais baixa prevalência - 0.1%, Aledort - 1% e Geil - 0.9-1.3% na população mundial
e pouco menos de 3% nos Estados Unidos.
É fácil deduzir que essa discrepância decorre da dificuldade em se pensar na doença pelas razões
expostas nos itens anteriores, e pela indisponibilidade de maiores recursos diagnósticos
laboratoriais em muitos paises.
É nossa impressão que o percentual mais elevado está mais próximo da realidade e que a atenção
do médico, dirigida para a doença de von Willebrand no pré-operatório, deve ser redobrada.
Adendo: Síndrome de von Willebrand Adquirida (vWS)
Apesar de ser um distúrbio adquirido, vamos comenta-lo nesse item, em virtude da semelhança,
clínica e laboratorial, com a vWD que é um distúrbio hereditário.
A vWS, como na vWD, decorre de alterações quantitativas e/ou qualitativas da molécula do
vWF.
È um distúrbio muito raro, o que torna mais difícil sua diferenciação com o correspondente
hereditário que, como dissemos, chega a 1% da popuação mundial e a pouco menos de 3% da
população dos Estados Unidos.
A vWS reproduz várias alterações laboratoriais vistas na vWD, tais como prolongamento do tempo
de sangramento, diminuição do FVIII-C, da ristocetina como cofator (vWF:R CoF), do vWF(ag) e da
aglutinação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA).
Já que o estudo laboratorial não é suficente para fazer a diferenciação entre a vWD e a vWS,
é importante constatar a inexistência de história pregressa de hemorragia no paciente, e de
alterações dos exames característicos da vWD nos familiares.
A vWS tem sido descrita em associação com: gamopatias monoclonais, linfomas, tumor de Wilms,
mieloma, doença cardíaca congênita, lupus eritematoso sistêmico, angiodisplasia, desordens
convulsivas tratadas pelo ácido valpróico e hipotireoidismo. Cerca de um terço dos casos
publicados estão associados à gamopatia monoclonal, mas na maioria dos casos o mecanismo
responsavel pela vWS não está claramente definido.
Segundo Mannucci e colaboradores (1984), o vWF é removido rapidamente do sangue por mecanismos
diversos: 1- auto-anticorpos específicos que inativam o vWF, 2- anticorpos inespecíficos que
formam imuno-complexos circulantes com o vWF o que favorece seu afastamento pelos macrófagos,
3- absorção do vWF por células malígnas e 4- por degradação proteolítica do vWF. Adicionamos
um 5º mecanismo, citado por Gilbert C. Wite e por Hiroshi Mohri, o da absorção seletiva de
multímeros, de alto e intermediário peso molecular, em pacientes com doença cardíaca,
particularmente com defeito do septo ventricular ou da válvula. Nesse último caso, havendo
deficiência dos referidos multímeros, o distúrbio assemelha-se ao tipo hereditário vWD 2B.
Deficiência de outros fatores da coagulação:
Como foi exposto anteriormente, a partir dos testes de rotina para o estudo da hemostasia,
podemos desconfiar da redução do nível de um ou de vários fatores da coagulação. Para
esclarecimento, partiremos para a dosagem do fator com base no teste de rotina alterado.
A dosagem do fator da coagulação é de fácil execução, estando ao alcance de qualquer laboratório.
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