Classicamente,
o sistema renina-angiotensina-aldosterona (S-RAA) é descrito como um eixo
endócrino no qual cada componente de uma cascata é produzido por
diferentes órgãos, um arranjo que é exemplo de interação de vários
sistemas orgânicos, engajados todos na luta para manter a estabilidade
hemodinâmica.
Teleologicamente,
pode-se afirmar que a ativação do S-RAA é atitude de grande
responsabilidade, em função das conseqüências que sua atuação
determinam, daí a necessidade de que muitos órgãos participem desse
processo.
Estão
identificados no corpo humano dois diferentes tipos de sistemas
renina-angiotensina-aldosterona: o circulante, descrito há já bastante
tempo, e o local, descrito mais recentemente, que parece desempenhar papel
crucial na manutenção da homeostase circulatória.
No
S-RAA circulante, o angiotensinogênio é produzido pelo fígado, que
requer glicorticóides do córtex adrenal e estrógeno das gônadas; a
renina é liberada pelos rins, enquanto que a enzima de conversão de
angiotensina I em angiotensina II (ECA) é encontrada no endotélio
vascular de vários órgãos.
Uma
vez ativada a cascata, surgem a angiotensina I e a angiotensina II, que
circulam pelo sangue ativando suas estruturas-alvo: vasos sangüíneos
(sobretudo arteríolas e veias sistêmicas), rins, coração, adrenais e o
sistema nervoso simpático.
A
lógica fundamental que preside o funcionamento do sistema é responder a
uma instabilidade hemodinâmica e evitar redução na perfusão tecidual
sistêmica. Atua de modo a reverter a tendência à hipotensão arterial
através indução de vasoconstricção arteriolar periférica e aumento
na volemia por meio de retenção renal de sódio (através da aldosterona)
e água (através da liberação de ADH-vasopressina).
Portanto,
o sistema renina-angiotensina-aldosterona se soma ao sistema simpático e
ao ADH, compondo o trio de sistemas neuro-hormonais de compensação
cardiovascular.
Mecanismos
de Ativação do Sistema RAA
São
cinco as condições principais nas quais o S-RAA é ativado:
(1)
Insuficiência cardíaca;
(2)
Restrição de sódio;
(3)
Contração do compartimento intravascular (desidratação, hemorragia,
diarréia);
(4)
Aumento do tônus simpático
(5)
Hipotensão arterial
O
agente central do S-RAA é a angiotensina II, que tem receptores nos
seguintes órgãos-alvo: rins, coração, cérebro e adrenais, além dos
vasos sangüíneos.
A
cascata do sistema renina-angiotensina-aldosterona
São
cinco os elementos da cascata:
(1)
Angiotensinogênio
(2)
Renina
(3)
Angiotensina I
(4)
Angiotensina II
(5)
Angiotensina III
Angiotensinogênio
É
uma alfa-2 globulina produzida pelo fígado em presença de
glicocorticóides e estrógenos, que circula no plasma como um peptídeo
biologicamente inativo, sobre o qual irá atual a renina, gerando uma
seqüência de substâncias ativas.
Em
condições como síndrome de Cushing e durante o uso de anticoncepcionais
orais, a ocorrência de hipertensão arterial sistêmica volume-dependente
é possível por um efeito de ação de massas: como nos ensina as leis do
equilíbrio químico, o aumento na produção de angiotensinogênio
(substrato) faz com que os níveis de angiotensinas sejam elevados para
uma mesma quantidade de enzima renina.
Renina
É
a enzima proteolítica que converte angiotensinogênio em angiotensina I
(convertendo uma substância de 411 aminoácidos em outra de 10
aminoácidos), sendo assim responsável pela etapa limitante da síntese
de angiotensinas.
A
pró-renina é o precursor inativo da renina, que usualmente é encontrado
em baixas concentrações plasmáticas mas, em diabéticos (tipo I e II)
têm sido encontrados níveis elevados a ponto de ter sido proposto como
marcador de nefropatia diabética.
Convém
lembrar que a nefropatia diabética é um exemplo de hiperaldosteronismo
hiporeninêmico, tendo sido sugerido que os diabéticos com renina baixa
seriam os casos de extrema capacidade de converter a pró-renina em
re-nina.
Por
outro lado, o aparelho reprodutor feminino é outra fonte importante de
pró-renina, sendo sua produção regulada pelo nível de gonadotropinas
circulantes. Por tudo isso, aceita-se que níveis plasmáticos elevados de
pró-renina podem ser marcadores de anormalidades vasculares em
diabéticos, de modificações fisiológicas durante o ciclo menstrual e
de tumores produtores de renina, que são raros mas foram descritos.
A
liberação de renina é cuidadosamente controlada pelo aparelho
justaglomerular, composto de mácula densa da primeira porção do túbulo
contorcido distal, de células contíguas do mesângio e de células
especializadas que fazem parte da parede da arteríola aferente.
Além
de monitorizar o teor de sódio no sangue que penetra no glomérulo via
arteríola aferente, as células intraglomerulares são mecanorreceptores
sensíveis à distensão, de modo que deflagram a liberação de renina
sempre que a pressão sangüínea ou natremia estiver baixa.
Já
as células que compõem a mácula densa são osmoreceptores, que reagem a
um aumento no teor de sódio presente no ultrafiltrado que segue em
direção ao túbulo distal; de fato, a quantidade de sódio que passa
pela mácula densa sob condições fisiológicas é muito pequena, pois no
segmento imediatamente anterior (alça ascendente de Henle) há expulsão
ativa de NaCl, persistindo pouco sódio no líquido tubular.
A
inibição da bomba Na+K+/Cl (dita "bomba de
Cloreto")m provocada pelos poderosos diuréticos de alça (furosemida,
bumetamida) sobre a alça de Henle, interfere com o mecanismo
multiplicador de contracorrente renal, responsável pela hipertonicidade
medular. A isso se soma a oferta de quantidades muito elevadas de NaCl ao
túbulo distal, superando sua capacidade de reabsorção, a despeito de
intensa troca de Na+ por H+ e K+,
resultando em diurese volumosa, natriurese, e intensa secreção de
potássio e hidrogenionte. O resultado final do uso dessas drogas é
diurese intensa com espoliação de potássio e indução de alcalose
metabólica.
Assim,
a ativação do sistema RAA intra-renal, pelo excessivo aporte de sódio
à mácula densa, induz produção local de renina. As prostaglandinas
renais também podem participar desse processo, através da indução de
alterações no nível da filtração glomerular.
A
Enzima de Conversão de Angiotensina (ECA)
A
angiotensina I (de 10 aminoácidos) é convertida em angiotensina II (de 8
aminoácidos) pela enzima de conversão (ECA), uma dipeptidil-carboxilase.
Descrita inicialmente em 1956 (1), a ECA passou a se procurada como uma
enzima capaz de eliminar do sangue tanto a angiotensina I quanto a
bradicinina e a serotonina. No Brasil, foi possível bloquear a conversão
de angiotensina I e a eliminação de bradicinina empregando-se veneno da
cobra jararaca, logo a seguir, foi demonstrado que a cininase II (enzima
que inativa a bradicinina) e a enzima de conversão (ECA) são uma mesma
substância.
A
enzima de conversão de angiotensina I tem sido encontrada no endotélio
vascular pulmonar e sistêmico, que assim se mostra capaz de inativar um
vasodilatador (a bradicinina) e ativar um vasoconstrictor (angiotensina
II). O uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina I (captopril,
enalapril, lisinopril) não apenas bloqueia os efeitos vasoconstrictores
(e hipervolêmicos) da angiotensina, mas também potencializa a
vasodilatação induzida pela bradicinina.
Embora
tenha efeito vasoconstrictor menos prolongado que o obtido com doses
equivalentes de endotelina e de tromboxane A2, a angiotensina II é
considerada a mais poderosa substância vasoconstrictora sistêmica,
enquanto aqueles exercem seus efeitos mais intensamente nos próprios
locais onde são formados.
A
angiotensina II exerce várias ações e efeitos atuando principalmente em
nível de:
(1)
vasos sangüíneos;
(2)
coração;
(3)
rins;
(4)
sistema endócrino.
Sobre
os vasos
A
este nível, a angiotensina determina contração das artérias como
aorta, coronárias, femoral e carotídeas, através tanto do aumento de
AMP cíclico quanto ativação da fosfolipase C, com geração de
inositol-trifosfato (IP3). Participa, também do processo que resulta em
hipertrofia vascular.
Sobre
o coração
Atuando
sobre seus receptores de superfície, a angiotensina II causa um aumento
dose-dependente da força de contração miocárdica, de modo que
independe de seus efeitos hemodinâmicos sobre as condições de carga
imposta ao coração; esta melhoria no estado inotrópico também é
independente da potencialização adrenérgica.
A
maior contratilidade decorre do aumento na intensidade da corrente lenta
de cálcio. A despeito desse efeito inotropo positivo, a angiotensina II
não altera o cronotropismo cardíaco, ou seja, não determina
taquicardia. Por outro lado, como o efeito vasoconstrictor coronariano
supera o estímulo vasodilatador (visto em todo e qualquer aumento da
força de contração miocárdica), o fluxo sangüíneo coronariano é
relativamente reduzido. Do mesmo modo que no músculo liso vascular, tudo
indica que a angiotensina II participa do processo de hipertrofia
cardíaca.
Sobre
os rins
A
angiotensina II exerce efeitos importantes na hemodinâmica intra-renal e
na homeostase hidrossalina. A vasoconstricção renal, predominantemente
exercida sobre a arteríola aferente, aumenta a pressão de filtração
glomerular mesmo com grande decréscimo na perfusão renal. Ao nível do
túbulo distal, a angiotensina ativa diretamente a bomba eletrogênica de
prótons, que troca Na+ tubular por H+ da célula, e indiretamente (via
aldosterona) ativa a bomba Na+/K+.
A
somatória dos efeitos hemodinâmicos e sobre a membrana basal glomerular
resulta em efeito proteinúrico, o qual pode ser bloqueado por inibição
da enzima de conversão. O Kf (coeficiente de ultrafiltração glomerular)
aumenta, enquanto que a área de superfície disponível para a
filtração glomerular é reduzida, mediante contração das células
mesangiais.
Quando
a vasoconstricção induzida pela angiotensina II sobre a arteríola
aferente é exagerada, a nutrição dos túbulos renais fica prejudicada,
uma vez que os capilares peritubulares são oriundos do sistema porta
renal, especificamente, da arteríola aferente.
Para
evitar a necrose tubular aguda, que seria inevitável toda vez que os
níveis de angiotensina II atingissem um valor crítico, os rins passam a
produzir vasodilatadores locais (prostaglandinas) que determinam
insensibilidade parcial aos vasoconstrictores sistêmicos, de modo a
adequar a perfusão renal com a sobrevivência tubular.
Angiotensina
III
Componente
do Sistema RAA circulante, angiotensina III é poderoso indutor da
secreção de arginina-vasopressina-ADH, potencializadora da atividade
simpática e indutora da secreção de aldosterona, além do efeito
vasoconstrictor similar ao da angiotensina II.
A
angiotensina III ocorre fisiologicamente no plasma em baixas
concentrações. Ela é oriunda de vários órgãos, sobretudo cérebro,
rins e coração. A proporção dos componentes do Sistema RAA é:
Angiotensina
I: 67%
Angiotensina
II: 30%
Angiotensina
III: 3%
Isso
equivale dizer que o nível de angiotensina II corresponde a 45% do nível
de angiotensina I e o de angiotensina III corresponde a 4% do nível de
angiotensina II circulante.
Os
estímulos para a formação de angiotensina II são os mesmos que para
angiotensina I e II. Angiotensina III pode ser formada a partir da
angiotensina I por ação de peptidases plasmáticas. Sua importância
fisiológica reside em seu papel modulador da função autonômica, da
secreção de ADH e secreção de aldosterona. Além disso, ela atua em
nível do complexo vagal/gânglio solitário induzindo modificações na
sensibilidade de reflexos baroceptores de modo eqüipotente ao obtido com
angiotensina II.
O
fato interessante é que a produção de angiotensina III não é
totalmente bloqueada com o uso de inibidores da enzima de conversão
(ECA), uma vez que há outras vias metabólicas através das quais a
angiotensina III pode ser produzida.
O
sistema renina-angiotensina-aldosterona local
Ao
que parece, o S-RAA circulante até aqui descrito serve primariamente para
manter a estabilidade hemodinâmica diante de um estresse imediato como a
queda súbita no débito cardíaco; o sistema atua regulando
simultaneamente o débito (ao otimizar a pré-carga através da indução
de hipervolemia) e a RPT (via arteríolo-constricção).
Logo,
a atividade do S-RAA retorna ao normal durante o estado latente ou
compensado da ICC, porque a normalização do volume sistólico no estado
de hipervolemia bloqueia a ativação sustentada do sistema. Diz-se,
então que a resposta temporal do S-RAA frente a uma estabilidade
hemodinâmica é tal que, após a ativação aguda durante a
descompensação, há normalização ao longo da fase crônica compensada.
Entretanto,
o S-RAA local vai se tornando progressivamente mais ativo nessa fase
compensada; quando se exaure esse recurso, sobrevém reativação
sustentada do S-RAA circulante, com manutenção dessa vez transitória da
estabilidade hemodinâmica, quando então se estabelece a descompensação
típica da ICC. A ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona
local permite a obtenção dos efeitos benéficos (aumento da
contratilidade miocárdica, redistribuição do fluxo sangüíneo,
hipervolemia) sem os desfavoráveis efeitos resultantes da ativação do
sistema RAA sistêmico, os quais, em última análise, são os
responsáveis diretos pela sombria evolução natural dos pacientes com
ICC.
Pelo
menos quatro sistemas S-RAA foram identificados até o momento:
1)
Vascular
2)
Cardíaco
3)
Renal
4)
Encefálico