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Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
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CONSPIRAÇÃO

Tomé Vieira

Edição de autor, Lisboa, 1936

O original pode ser consultado na Biblioteca de São Lázaro » 
(Referência 3960 - R. I. 17469)

MANTIDA A INTEGRALIDADE DO TEXTO
- Reprodução não oficial -











CONSPIRAÇÃO

(Novela)




                                 A´ MEMORIA
                                    DE MEU PAI




                                 Dez anos não passam debalde para
                                 a inteligência humana, e eu não me
                                 envergonho de corrigir e emendar as
                                 minhas opiniões, porque não me
                                 envergonho de raciocinar e aprender.

                                          ALEXANDRE HERCULANO








ÍNDICE REMISSIVO
IEm vésperas de eleições»
II Uma revolução sem tiros»
IIIA lenda de amor»
IVA festa da Rainha Santa»
VUma gréve académica»
VIConspiração...»
VIIA filha do senador»
VIIINovos horizontes »
IXNa cadeia do Aljube»
XUm casamento na aldeia »
XIDo sonho a realidade »
XIINa residencia do senador »
-Epilogo »








I

EM VÉSPERAS DE ELEIÇÕES



Era domingo. Como todos os domingos, logo que rompeu a manhã, os habitantes da aldeia subiram ao alto da rainha santa para ouvirem missa. Ficava ali a ermida de santa Isabel, que estava a servir de igreja matriz, dêsde que esta fôra destruida por violento furacão.

Alguns anos tinham passado, mas os destroços da velha igreja continuavam espalhados em redôr do edifício em ruina, a reviver o pavor daquela noite, que tanto impressionára a população. Só de recordá-la infundia respeito, metia mêdo! O vento soprava rijo das bandas do mar, mas ninguém previa uma coisa assim. De repente, todos quantos estavam em suas casas sentiram que a ventania lhe abanava as moradias. Os telhados eram sacudidos como léves fôlhas sécas. E quando o vendaval parecia ter amainado, todos ouviram, novamente, o vento soprar com violência, ao mesmo tempo que um grande ruido abalava a população e punha em alvorôço os moradores.

Ninguém ficou em casa. Tôda a gente saiu á rua, aflita, a resar, mas ignorando o que havia acontecido. A aldeia estava envolvida em cerrado nevoeiro. Era a poeira levantada ao desmoronar da igreja. Depressa tôda a gente, inteirada do sucedido, se conformou. Era de esperar que aquilo acontecêsse! Há muito tempo que a igreja ameaçava cair, e ninguém fazia caso, ninguém tomava providências.

Ao contrário do que era natural acontecer, ninguém achou que a derrocada do templo constituisse um castigo ou aviso do céu á sua falta de fé em Deus. Tinha razão aquêle povo! Quem ali, naquela aldeia, que não respeitava o criador? Nem um havia que não tivesse fé, que não fôsse crente. Se a destruição da igreja era anúncio de castigo, êste só podia ser endereçado áqueles que tinham por obrigação cuidar do templo e dêle não faziam caso, passando a vida mais preocupados com as coisas profanas do que com os destinos da religião.


»



A remota capelinha de santa Isabel não comportava todos os crentes. Estes ficavam a ouvir a missa fóra da ermida e o seu número era bastante, ainda, para encher o largo fronteiro e o recinto resguardado por quatro paredes ligadas á capela, restos do antigo palácio de D. Isabel e de D. Denis, que ali residiram e deixaram marcada a sua passagem com actos que não esqueceram, antes são lembrados com devoção e respeito.

Era interessante o quadro. Ajoelhados, homens e mulheres, ouviam missa, cá fóra, tomando conhecimento da marcha do oficio por comunicação daqueles que lá dentro assistiam ao ritual. A mancha de seus fatos domingueiros sobressaía na relva loira do terreno. Os homens vestiam de escuro, barrête no ombro ou no chão a defender os joelhos das pedras; as mulheres, com seus lenços coloridos e seus chales bordados a matiz. A iluminar êste quadro, o sol caía sôbre o alto da rainha santa, projectando seus raios luminosos, ainda pouco ardentes, por cima de tudo e de todos, numa luz clara, intensa, diferente dos outros dias - dos dias de trabalho.

Terminára a missa. As mulheres, em grupinhos, desciam a caminho de suas casas. Muitas delas iam para lugarejos distantes, pois ali residiam e cêdo haviam saído de lá para não ficarem sem missa. Todas apressadas, muitas com as filhas a seu lado, quási corriam para ir tratar do almoço e do mais. Os homens ficavam ainda, a falar de coisas da sua vida de trabalhadores do campo ou de agricultores. Uns e outros eram interessados no amanho da terra, cada um da sua maneira. Depois, desciam vagarosamente. Era domingo e o corpo nem sempre é escravo. Bem bastava os dias de semana para a vida árdua não lhes permitir perder um minuto em palestras. Parecia uma romaria! O dia lindo convidáva a ficar por ali. Mas era necessário não perder muito tempo em palavrório. Quási todos tinham de ir ao barbeiro, e se demorassem mais nem lá para as tantas da tarde chegavam a casa, e o almoço estava á espera.

- Está um dia criador! - disse um camponês que descia até á povoação a caminho do barbeiro. Um dia lindo! Vocês já repararam que os domingos têm um sol diferente dos outros dias da semana? Mais limpido, mais bonito. Vê-se mesmo que é domingo...

Olharam todos para o sol e não responderam. Pouco depois chegavam ao barbeiro. A casa estava á cunha. A que horas aquilo ia acabar. Só um homem a fazer a barba a uma freguezia inteira.

Não havia espelhos nem cadeiras. Um banco chegáva para todos. Os que esperavam entretinham-se a conversar á porta do "estabelecimento". Uma táboa pregada em dois topos de madeira metidos na terra comportava meia duzia de pessoas. Ali aguardavam os freguêses a sua vez.

O tempo decorria, e para o preencher alguma coisa haviam de dizer aquelas almas. O domingo para êles era o dia da reunião, o dia da sessão semanal. Falavam de tudo, dêsde a marcha dos trabalhos nos campos até á política - sim, senhor, até á política.

En redor do banco, havia outros que aguardavam de pé, o momento de ser barbeados por um homem que não tinha dó da cara dos parceiros. A navalha arrancava mais do que cortava, mas cada um ficava com o rosto lavado, e isso é que era preciso.

Naquela assembléia reinava, agora, ateada discussão. Ninguém se entendia, mas quando o sr. Alves levantava a voz todos se calavam para ouvi-lo, porque êle era daqueles que sabia o que dizia.

Ora, naquele domingo havia razão para que o auditório se preocupasse com a política. As eleições estavam á porta, e da cidade já tinham ido ali os senhores da Camara a tratar dos votos para o seu partido. O sr. Alves sabia disso e mais duma vez se revoltára contra a atitude desses senhores, que ainda tinham o descaramento de aparecer naquela aldeia, para a qual nunca olhavam a não ser por ocasião de eleições.

- A mim não me levam êles, nem a mim nem aos homens a que dou o pão a ganhar. Este ano é assim! Todo aquele que fôr votar com essa cambada de intrujões não ganha em minha casa nem mais um vintém.

- Talvez o sr. Alves não saiba, mas o patrão João Duarte já prometeu a cada um que fôr votar com êle, além do almoço, um par de alpercatas. Não é mau! Quem é que ganha aí para comprar calçado novo...

- E é êle quem paga as alpercatas? Vocês não vêem que êsse dinheiro que lhe dão os do partido é tirado daquele que nós pagamos para a Camara? Por isso êles não têm dinheiro para as obras de que as freguesias necessitam. Vejam o que tem acontecido aqui. Vivemos sem escola, as estradas estão, há muito, intransitáveis; a fonte há dois anos que espera reparações. E que tem feito a Camara? Gasta o dinheiro que é de todos nós em propaganda do seu partido, em propaganda de eleições, o dinheiro que é sagrado, que tanto nos custa a ganhar.

E escutado por todos, com a maior atenção, o sr. Alves prosseguiu:
- Que todos nós paguêmos para o Estado, é bem de ver; mas que a gente veja o dinheiro bem administrado! O que revolta é saber que o nosso dinheiro é gasto em política. Que benefícios temos nós recebido do Estado, que assistência nos tem dado o governo, o que faz para a província? Nada de nada! Pagamos, pagamos sempre, cada vez mais, e nem um centavo vem dos cofres públicos para o benefício das aldeias. É tudo consumido na cidade, o nosso dinheiro mal chega para manter os que nada produzem, os mandriões...

De dentro da barbearia , o dono da casa gritou:
- Sr. Alves, é a sua vez!

O proprietário lá foi sentar-se no banco, de cara voltada para a porta da rua, a receber a claridade no rosto, que o barbeiro ia roçando com o podão da navalha de barba.

Cá fóra ficará, ainda, muita gente para atender. Aquilo só lá para as tantas acabava. E continuaram a taramelar. O patrão Alves tem razão - dizia um - a falar a verdade a gente não vive com a política. E lá que êsses senhores da cidade só nos conhecem nestas alturas de votos é exacto. Da outra vez, nas ultimas eleições, vieram aí e vocês lembram-se do que êles disseram, do que êles prometeram. Que era então que ia ser aberta a escola, o dinheiro já estava na Camara, só faltava não sei o quê para êle vir direitinho aos da Junta, era coisa de pouco tempo. Afinal, já lá vão uns anitos bem bons e a escola continua fechada, já não tem telhado e as portas nem para lenha se aproveitam.

- A mim não se me dá que não abram a escola - redarguiu outro. O que os meus filhos precisam é de saber amanhar um bocado de pão. O principal era arranjarem aquele caminho da Salgada. Há dias, se não sou eu, lá morriam os bois do Manuel dos Arneiros. O carro voltou-se e os animais iam ficando asfixiados com a canga no pescoço. Isso sim, que era uma coisa boa, uma obra que bem merece ser arranjada.

- Deixem-se de coisas, mas isto de votos é tudo questão de interêsses. O sr. Alves não vota, agora, porque na Camara não está lá o seu compadre Magalhães. E o patrão João Duarte anda todo atarefado com as eleições porque tem o filho nos estudos e quere arranjar emprego ao rapaz, que êle não há de vir cavar para aí, como nós. Eu não sei se irei votar. Ainda não pensei nisso, mas nós que não temos com que pagar favores, sempre ficamos bem vistos com quem nos dá o pão a ganhar - indo deitar voto.

- Falas tu assim, porque o patrão João Duarte tem trabalho para ti, todo o ano! Olha eu, que tanto ganho jorna num lado como no outro. Não sei que fazer. Se vou contra o Duarte fico bem com o Alves, mas se vou deitar voto por aquele, êste nem mais uma vintem me dá a ganhar.

Um outro que ouvia a conversa, sem dar a perceber que lhe interessava o assunto, muito entretido a chupar o seu cigarrito de tabaco de picar, puxou uma fumaça e sentenciou:
- A mim não me enganam êles! Bastou uma vez para cair! Já lá vão uns anos bons, tinha vindo a Republica naquelas alturas. O meu compadre Dias, era um danado por esta coisa da política. Eu devia-lhe favores, porque êle gostava dos pequenos e a todos ensinou a lêr como se fôssem seus filhos. Era um bom mestre escola. Deus lhe fale na alma. Também veio com essa de arranjarem a fonte, de abrirem um caminho para o campo, de tratarem do rio. Daquela vez é que era certo, nunca mais o rio iria dar cabo das terras de semeadura, quando as águas de inverno extravasassem. Foi tudo trêta! Vejam lá os anos que passaram e nada se fez! Quando cá voltaram e foram bater á porta mandei-os bugiar mais os votos. Quero lá saber disso! E ainda não me faltou pão para comer. Se fôssem todos como eu, ninguém se metia na política. E os patrões tinham de vir até nós, sim, porque isso de dizer que não dão pão a ganhar á gente é uma santa história. Eles precisam de nós, tal qual nós precisamos dêles. Uns sem outros nada valem - nem êles nem a gente. Que isto cá na terra entre o sr. Alves e o sr. Duarte é tudo por causa do namorico dos filhos. Depois daquela questão que vocês sabem, as duas famílias ficaram de mal. A luta é lá com êles, que tem a gente com as questões de cada um ? Eu já disse e voto á minha: - a mim não me apanham êles a deitar voto. Para quê? Daqui a tempo estão amigos, eu estou mesmo em dizer que o namorico vai por diante, e nós é que ficamos arrenegados uns com os outros.

De dentro da barbearia, o mestre voltou a exclamar:
- Quem está a seguir!

O grupo desfez-se logo depois. Muitos já tinham sido barbeados e haviam ficado ali a cavaquear, apanhando a torreira que a êles não fazia mossa, crestada como era a sua pele na vida de nómada que cada um leváva, de manhã á noite, no contacto com a terra, suportando o sol e chuva - que assim o exigia o santo humus de quem semeia o pão e pão não tem para comer...



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II

UMA REVOLUÇÃO SEM TIROS



A taberna do Simões estava á cunha, como nunca. Mal se respirava lá dentro. Forte motivo era o que leváva, em dia de semana, tanta gente a reunir-se ali, onde só ao domingo havia umas mostras de animação. Estava repleta de homens do campo, quási todos analfabetos, que aguardavam a chegada do Joaquim Maria para lhe ouvirem lêr, em voz alta, o jornal que relatava os acontecimentos havidos mais uma vez na capital.

O candeeiro de petróleo mal iluminava a casa. Naquela semi-escuridão, as sombras dos frequentadores da taberna desenhavam-se na parede, disformes e alongadas. Enquanto o lêdor não chegava, foram alguns fazendo comentários ao pouco que sabiam, aos rumores que tinham ouvido a um outro que chegára no "correio" e já havia lido o jornal.

Constava que tinha sido uma revolução como muitas outras daquelas que se deram dêsde que, numa manhã brumosa de outubro de 1910, apearam do poder um homem a quem chamavam rei para o substituirem por outro que designaram por presidente.

Pormenóres exactos ninguem os tinha, mas aquilo adivinhava-se. Muitos tiros, muitos prédios deitados a baixo, centenas de mortos e feridos - o costume. Era sempre assim uma revolução. E a verdade é que, á medida que mais revoluções havia, a vida tornava-se mais difícil, mais cara. Até parecia que era de propósito para contrariar os mirabolantes programas dos revolucionários. Eles bem proclamavam que a sua revolução era para bem do povo! Mas a revolução saía vitoriosa e logo no dia seguinte tudo subia, tudo começava contra o povo e os revolucionários, que já não o eram, prendiam aqueles que se revoltavam - como se êles não tivessem feito a mesmissima coisa.

Na taberna do Simões falavam assim aquelas almas simples e desconhecedoras dos grandes problemas nacionais. Que podiam entender todos aqueles analfabetos para quem a vida não passava de revolvêr a terra, de manhã á noite, sempre na mesma preocupação de arrancar do solo o maior rendimento!

Logo que apareceu o Joaquim Maria com o jornal, houve um movimento de curiosidade. O rapaz começou a lêr o minucioso relato do movimento revolucionário. Levou tempo a tarefa, eram páginas e páginas de noticiario, o jornal inteiro para contar o que se havia passado. Em resumo era isto: - todo o país se rebeliára contra o governo, por intermédio do exército que de vários pontos da província avançára para a capital, especialmente do norte, sob o comando do General Gomes da Costa, um militar que tinha muita fama pela sua acção durante a guerra.

Dizia o jornal que por tôda a parte o povo delirava com a vitória dos revolucionários, que em tôda a parte o exército era vitoriado pela sua decisiva internvenção nos domínios da governança.

Durante a leitura do relato fastidioso ninguem fizera um comentário, interessados como todos estavam em conhecer pormenóres de mais uma revolução. Quando o rapaz terminou a leitura, os comentários fervilharam, como era natural. Um camponês que lá do canto da taberna ouvira o relato, sempre a mastigar um cigarro, inquiriu:
- Quantos mortos houve desta vez?
- É verdade, não leu a lista dos mortos e dos feridos! - exclamou outro.

Joaquim Maria ficou calado. Era verdade, faltava isso. E novamente pegou no jornal a procurar essa parte da reportagem que lhe passára. Mas... onde diabo vinha isso? E percorreu todo o diario sem encontrar notícia do mais importante pormenór duma revolução: - os mortos e os feridos.

Passados momentos, garantiu que mortos e feridos era coisa que não havia. E era natural, pois não tinha havido tiros, não se deram combates.
- O quê, uma revolução sem tiros, sem mortos, nem feridos? Pode lá ser uma coisa dessas! - exclamou incrédulo um dos assistentes.
- Também digo, é uma revolução como não houve outra! - comentou o lá do canto.

Mas fôra assim mesmo. A revolução vencêra sem um tiro, sem um morto, sem um ferido. Nisso mesmo residia a sua grande vitória.


»



Naquele domingo, o alto da rainha santa voltou a encher-se de gente que ali foi ouvir missa na ermida de santa Isabel. Desta vez, terminada a cerimónia, aqueles que desceram a caminho do barbeiro ou de suas casas não se deram a falar em coisa de campo, no amanho da terra, como nos outros domingos, como todos os domingos.

Desta vez, diferente assunto dominava aquela gente. E não era só ali, naquela aldeia, que o povo discutia o acontecimento. Por todo o país, de norte a sul, se comentava, se apreciava a revolução. Mas faláva-se dela de maneira diferente do que se falára das outras. É que, desta vez, não havia mortes a lamentar, não havia viúvas nem orfãos, nem romarias aos hospitais a visitar os feridos da batalha.

Quando uma revolução vencêra, assim, aqueles que governavam o país, era porque a nação inteira estava contra o governo. Se o fenómeno tivesse de ser analisado através do estado de espírito, da opinião do povo humilde daquela aldeia, não há dúvida que a conclusão não podia ser outra. Todos se mostravam satisfeitos, radiantes, pela vitória daqueles que haviam derrubado o governo. Cada um reinvindicava para si uma parcela dessa vitória, como se tivesse tomado parte na conspiração contra o domínio apeado. A alegria era franca, comunicativa, dêsde a cidade ao campo, na casa do pobre e na do remediado - como se até então, todos vivêssem numa atmosfera pesada de incerteza.

Talvez não fôsse exactamente assim, mas nem por isso era menor a alegria do povo, ao ter conhecimento de que terminára um estado de coisas que a ninguém satisfazia.

Era ver, por exemplo, o sr. Alves, naquele domingo. Mostráva bem o contentamento que lhe ia na alma. Quando entrou no barbeiro, onde a aglomeração era grande, falou a todos com familariedade, cumprimentando cordealmente, como nunca assim ninguem o vira. A sua chegada foi acolhida com ansiedade. Ele mais do que outro qualquer podia discutir os acontecimentos da semana anterior. Era pessoa que andava metida em coisas da política e sempre lhe tinham ouvido dizer que um dia teria fim o mau destino que as coisas da governação levavam. Pelo visto chégara essa hora. Após os cumprimentos, houve logo quem lhe dirigisse a palavra:
- O sr. Alves é que falava acertadamente, quando aconselhava a gente a não deitar voto. Também, desta vez, nem tiveram tempo de aquecer o lugar. E tanto dinheiro gastaram! Só em alpercatas cá para os da terra pagaram uns bons centos de mil réis.
- Acabou, enfim essa grande pouca vergonha. A revolução de agora, tenho fé, vai pôr as coisas na ordem, fazer com que os dinheiros publicos sejam rigorosamente aplicados naquilo que o país precisa. Há tanta coisa a fazer, tanta...

Principiou assim a falar o sr. Alves, ouvido com a maior atenção. Ele era respeitado, todos por êle tinham grande consideração, o que não evitou que houvesse quem manifestasse a sua incredulidade, nestes termos:
- Oh. sr. Alves, eu, não sei, já não tenho fé em revoluções! Tantas tem havido e sempre a gente fica na mesma. Isto, dêsde que veio a Republica, tem sido uma verdadeira desgraça. A gente, ao princípio, ainda acreditou que a culpa era do rei, mas, está bem de vêr, o rei era um homem como os outros.
- Não é assim, não é assim! A Republica nada tem com os erros dos homens que governam o país. Uma coisa é o regime outra são os governos. O mal é outro, muito outro! - respondeu o sr. Alves.
- Talvez seja como diz, talvez seja - volveu o indíviduo que se atrevêra a discutir com o proprietário - nós, de coisas de política, na entendemos, mas volto á minha: - governo e Republica é tudo o mesmo. E olhe que não é mentira dizer que tudo se agravou dêsde que mandaram o rei pela barra fóra...

Os restantes frequentadores da barbearia seguiam interessados a discussão, não tanto pelo assunto debatido como pela arrogância do camponês, que se atrevia a falar naquele tom com o sr. Alves - o sr. Alves que podia ser no dia seguinte o seu patrão. Era disparate o que o outro estava a dizer ao proprietário, pois a verdade é que êles de política só sabiam o que lhes contavam os influentes das eleições, quando por lá iam pedir votos, de porta em porta - como os mendigos em sua peregrinação vagabunda.

Estava a conversa a interessar a assistência e já o proprietário se dispunha a responder ao camponês, quando o barbeiro, ansioso por meter colheráda, lançou aos quatros cantos da casa:
Mas então, qual é a diferença que existe entre a revolução de agora e as outras que tem havido? O sr. Alves que tanto defende os vencedores da última zaragata, tem, naturalmente, razões para confiar na obra que êles vão realizar. Nem todos são da mesma opinião. Ainda há dias, aqui nêste banco, eu a fazer a barba ao compadre João Duarte, êle declarou que esta revolução podia ser uma coisa grave para o regime. Bem entendido, não era êle que pensava assim, mas foi isso mesmo que lhe haviam dito na cidade muitas pessoas que percebem desta coisa da política. Vá lá a gente saber quem acérta! Cada cabeça cada sentença...

O proprietário não tencionava alongar mais as razões em defesa do seu pensamento político. Nem a assistência o podia compreender, por muito que êle fizesse por isso. Mas não se conteve e falou. Nunca se proporcionára tão distinta ocasião para isso, a êle que se isolára, há anos, ali na aldeia, distante dos centros de cavaco e discussão, e que a si próprio tinha prometido não voltar a meter-se na política - porque uma vez foi preso e acoimado de talassa, êle que fôra sempre républicano e tinha prestado serviços distintos á proclamação do regime.

O Sr. Alves falou. O que êle disse podia ser transcrito para aqui de qualquer discurso inflamado dum sincero defessor dos princípios republicanos, adversário de todas as intolerâncias partidárias, dum desiludido das panaceias até ali empregadas na marcha dos negócios públicos. O sr. Alves não atribuia os fracassos políticos do regime ao próprio regime. A Republica para êle era o sistema político mais consentâneo com o pensamento do país.

E, depois de muito executado por uma assembleia de infantes nestas coisas, exclamou a fechar o seu arrazoado preleccionário:
- A única maneira do país singrar em todos os campos da actividade é ter a governá-lo um grupo de estadistas, mais administradores do que políticos, um grupo de homens que não tenham de dar satisfações a partidos, e que para se manterem no poder possuam uma fôrça real e não fictícia. O exército é essa fôrça de que o govêrno necessita. O que é preciso, também, é que o exército não arréde da sua missão de fôrça estranha á própria política. Temos isso agora: temos, neste momento, a maior e melhor garantia dum gôverno forte e desobrigado de compromissos partidários. O exército, destronando as fôrças partidárias com a fôrça do seu prestígio - e esta foi tão grande que não teve necessidade de se afirmar com derramamento de sangue - deu á nação uma grande oportunidade histórica para se salvar da desventura a que foi levada. O regime só tem a lucrar com a vitória do último movimento revolucionário. Quanto maior fôr a independência do govêrno e mais forte o poder que o defende, maior será a obra dos governantes e mais acatamento merecerão aos país os princípios políticos do regime.

Momentos depois, o sr. Alves saiu da barbearia. No "estabelecimento" ficaram poucos clientes. Estes, porém, deram-se ao prazer de comentar as opiniões do proprietário, que muito tinham de extraordinárias, na verdade.



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III

A LENDA DE AMOR



Os dois cavaleiros haviam partido da cidade ha bem uma hora, já o sol começava a esconder-se por detrás do pinhal que tem fim no oceano, e o dia demorava ainda muito a morrer.

Seguiam os dois agora, a par um do outro, porque o caminho tinha espaço para as duas alimarias trotarem lado a lado. Até ali, porém, muitas vezes tiveram de seguir um atrás do outro e, mesmo assim, com cautela, porque as silvas de altas e extensas quási escondiam o caminho e lhe arranhavam o rosto.

Por isso o Carlos Duarte esporeu a sua bêsta para que o trote fôsse mais rendoso. O companheiro, o Bernardo da Luz, ao dar pelo gesto, interveio:
- Eh! Carlos, deixa ir assim que temos tempo! Os dias são grandes. E, depois, porque havemos de cansar os animais? Bem basta o calôr para os atormentar. As bestas e a nós também!

O outro não deu resposta. Reprimiu as rédeas da sua piléca, a desfazer a esporada, para não se afastar do andamento e tirou um lenço da algibeira ao qual limpou o suor da testa, fazendo eriçar as melenas empastadas.

- Eh! Carlos, tu que andas a estudar nos livros, és capaz de me dizer porque motivo o sol leva mais tempo, no verão, a fugir ali para as bandas do mar, do que no inverno? O sol é o mesmo, já se vê, mas no inverno, mal êle cai por de lá do pinhal real, é noite. Agora é o que a gente vê. Ao tempo que o sol se escondeu nas ondas do mar e ainda é dia e será até á noite.

Se não disséres outra... - respondeu, enfim, o companheiro de tagarela, para não deixar passar o disparate do amigo.

Bernardo da Luz, porém, desejava ouvi-lo mais e aguardou que o Carlos prosseguisse. Tempo perdido. A única coisa que conseguiu vêr foi êle, novamente, de mansinho, ter esporado o animal. Voltou por isso a falar:
- Tens pressa de chegar, eu sei porquê. É a Isabel que está a "puxar-te". Acautela-te! Olha que o pai não é para brincadeiras. Ele já disse a meu tio padre que preferia vêr a filha morta do que casada contigo. E tudo isso por causa da política...

- Deixa-te de conversas! - exclamou o outro, pouco contente da explicação do companheiro para o seu mutismo.

Continuaram a caminhar em silêncio. Tinham atravessado já o rio por uma ponte de madeira a desconjuntar-se e iam agora a atalhar em direcção á sua aldeia.

A cidade ficava para trás muitos quilómetros. Nem já havia restos do seu castelo que durante muito tempo os acompanhou a uma olhadela para a rectaguarda. Tinham, em compensação, a despontar em sua frente, logo que saissem do pinhal onde se embrenháram, a ermidinha da rainha santa, erguida ha tantos séculos no alto do mesmo nome. Mas, até lá, ainda era um bom estirão para quem não fôsse como êles cavalgando.

Bernardo da Luz não pensava. Olhava o caminho tão dêle conhecido e, para se entreter, de quando em quando agarrava com a mão solta das rédeas um ramo verde dos arbustos que marginavam o vicinal, ramo que partia ao puxar da bêsta e forçado pela segurança do cavaleiro. Agora mesmo êle tinha levado á bôca e seguro nos dentes um ramo que colhêra naquelas condições. E ia assim quilómetros e quilómetros sem dizer palavra, porque o companheiro não dava tréla, tão pensativo se mostráva.

Das bandas do mar o céu vermelho - sinal de calmaria no dia seguinte - parecia tingir da sua côr os campos e os arvoredos.

Subiram pequeno declive e ei-los a passar num lugarejo de meia dúzia de casas, todas escondidas por pomares, mal um se apercebendo que era ali terra de gente. Bernardo da Luz arrancou mais uma vez o seu companheiro de meditação que o isolára. Ele bem sabia que era questão de amôr aquilo que o fazia tão sisudo, e para o acordar do sonho gritou:
- Serra do Porto do Urso! Daqui até casa são vinte minutos. Eh! Carlos, tu já viste o disparate do nome desta terra? Serra do Porto de Urso! Nem serra nem porto. E a respeito de ursos... só se querem dizer isso daqueles que moram cá. Quem deu o nome a esta terra não estava bom da cabeça. Que eu já uma ocasião ouvi contar a história, mas não me convenci. Tu acreditas que é assim como o povo conta? Sim, tu sabes como eu o que a gente da terra diz.

- Sei! E talvez tenha razão o povo em dar a explicação que dá do nome dêste lugarejo! - respondeu, enfim, o preocupado cavaleiro.

Dir-se-ia que alguma coisa o havia arrancado do torpôr em que até ali fôra mergulhado. Seria a lenda que andava ligada ao nome daquela terriola que o despertára? Talvez! Era no amor que residia todo o encanto lendário daquela região. E foi, naturalmente, por isso que êle falou:
- Historicamente, com segurança, nada nos diz que o nome dêste lugar anda ligado á passagem de D. Deniz por estas regiões. Mas, quem sabe, ha tanta coisa que a história não regista ou se regista não corresponde á verdade! Seja como fôr, o que não há dúvida é que a lenda do nome de Serra do Porto de Urso tem verosimilhança. D. Deniz foi, em certo percurso a caminho do seu palácio, surpreendido por um urso que investiu com a sua montada. Defendeu-se o monarca heroicamente e abateu a féra que, no entanto, ainda o feriu. Historicamente o facto é verdadeiro, mas o que parece sofrer dúvidas é o local onde se deu. Ha quem diga que o caso se passou nas proximidades de Belmonte. Talvez o nosso povo tenha razão em localizar o facto nêste sítio. D. Deniz passou tempo feliz não só nos paços de Leiria como no seu palácio de campo, na nossa aldeia. Ia da cidade á "povoa" amidudadas vezes e todos êstes recantos falam da sua estada aqui. Que admira que o rei tivesse sido, um dia, surpreendido por um urso, se é certo ter havido animais dêsses nêstes sítios, que foram matagais espessos, autênticos bosques?! A meu vêr não há outra explicação para o nome dêste lugar-sítio. Serra do Porto de Urso! A serra seria, porventura, o nome dado á elevação de terrenos que nós já galgámos, hoje menos acidentados. O porto, quando muito, podia ser a designação do ponto da margem do Liz onde se fazia o desembarque. Ainda hoje o rio tem vários portos, desde a cidade até á nossa aldeia e dali até ao mar. As duas coisas justas teriam dado o nome de "serra do porto" ou "porto da serra" e depois da cena que a lenda descreve êste lugarejo, que então não era habitado, passou a ter o nome actual.

Bernardo da Luz ouvia o companheiro com mais satisfação do que entendimento. Para êle era assim, deveria ter sido como o Carlos contava. Melhor do que êle ninguém podia saber. Andava a estudar há um rôr de anos, nunca tinha ficado mal, que até metia inveja aos outros rapazes que também estavam no liceu.

O estudante sabia que ia a falar aos pardais... Pouco menos do que o companheiro de viagem entendia-nos as bêstas, que seguiam pelo caminho da areia, arrastar as patas não ferradas.

Os raios do sol já não eram tão vermelhos. Pelo menos a terra e as coisas tinham, agora, a sombra a envolvê-las. Sómente o céu, lá muito para dentro do mar, parecia ainda um fogo por extinguir. Aproximavam-se da aldeia. Carlos ia contente, até lhe dera para falar. Mas as bêstas, que não falam nem entendem, também mostravam satisfação por se aproximarem da terra de seus donos. Conheciam o caminho, sabiam que iam descançar e ter ração de milho e folhêlho, tratamento que só lhe davam em ocasião de jornada á cidade, pois nos dias em que não saiam do curral ou andavam a carrear umas cangalhas de coisas do campo para casa, apenas comiam palha, a quebrar-se de sêca ou erva fresquinha das ribeiras, conforme a época, se era de verão ou de inverno. Eram bêstas, mas tinham entendimento. Se o não tivessem seria necessário que os cavaleiros esporássem a valer para as duas alimárias trotarem como o iam a fazer - agora que era a subir, por entre pedras e cascalho, a ladeira que entrava na povoação.

Tinham chegado. Monte Real era áquela hora uma aldeia movimentada. Durante o dia nem viválma se encontrava por ali, pelas ruas, a dar existência á povoação - outrora tão importante. Todos saíam de manhã para o campo a tratar do amanho da terra - que é a única riqueza das gentes pobres. E por lá andavam o dia inteiro no "lufa-lufa" até que á noite regresavam. Era vêr, então, a entrada daquela gente, na aldeia. De todos os lados convergiam cavadores, de enxada ao ombro, as calças arregaçadas até o joelho; donos de propriedades, quási da mesma maneira, a confundirem-se com os servos, só diferençados pela falta da enxada que era substituida por uma foice roçadoira de cabo comprido, ao ombro também. As mulheres, de saias encilhadas e de grandes carrêgos á cabeça, pernas defendidas pelos "canos" de lã, que o mato dá cabo da pele. Os carros de bois, na chiadeira enervante que lhe dá seus eixos de salgueiro, entravam carregados de feno para casa dos lavradores.

Nas lareiras já havia lume para preparar a ceia frugal de ricos e de pobres. As chaminés fumegavam a direito para o céu, elevando-se a fumarada em piramide. O tempo estava ameno e nem o vento tinha forças para o fumo enovelar.

Anoitecera depressa. Agora a aldeia não era mais do que um aglomerado de casas e árvores, que a escuridão escondia a nossos olhos - aos olhos de todos. Apesar do céu rendilhado de estrelas, era dificil andar nas ruas quem não conhecesse a terra, quem dali não fôsse.

Carlos que tinha saido após a sua chegada da cidade, entrou em casa quando a família, em volta da mesa com toalha de linho, acabava de ceiar, e os homens esvasiavam o resto do cangirão que a criada havia ido encher á adéga. Estavam na cozinha. Ao fundo, a lareira larga e caiada de branco. Em frente do lume a cantareira, carregada de loiça e com uma fila de três cântaros que estavam sempre cheios - porque é mau chegar a noite e não haver água em casa. Ao longo da parede, o arquibanco, móvel comprido que serve de arca e de banco e onde se guardam os pestiscos que restam da matança.

Antigamente, a candeia de azeite ardia dependurada no cano da chaminé. Agora era diferente o alumiar. Um candeeiro de petróleo estava espécado ao centro da mesa.

- Boas noites! - exclamou Carlos, quando entrou. Saúdaram-se todos, e todos ficaram contentes pela sua chegada. Os pais deram-lhe "um Deus te salve". Irmãos e criados repetiram "boas noites". Mas sua avó velhinha, que já não se sentava á mesa, porque ceiava mesmo junto á lareira com o prato colocado num banquinho apropriado e exigido por ela, ao sentir a presença do neto, voltou a vista para êle e com os olhos a chamá-lo balbuciou:
- Vem com Deus, meu neto!

Carlos foi sentar-se para jantar do mesmo que tinha sido a ceia da família. E enquanto punha a jeito a cadeira feita com madeira do "pinhal do rei", que durava vidas sem levar tinta, deu mais luz ao candeeiro e exclamou:
- Está uma noite escura, como breu!

- Nem por isso! - respondeu o pai. Se isto é escuro o que será no inverno, quando não há estrêlas e a chuva e o vento parecem feitos de negro. Vêns acostumado á cidade, estranhas não haver iluminação nas ruas.

A vélhinha que estava sempre ao lume, fôsse verão ou inverno, gostou de se intrometer para falar ao seu netinho, á luz dos seus olhos.
- Escuro ainda não há! Lá mais para diante, isso sim, faz escuro que mete mêdo. A mim ninguém tira da idéia que na nossa aldeia faz sempre mais noite do que nas outras terras dêsse mundo além!

O neto que gostava de conversar com a avó e muitas vezes se demorava com ela a ouvir-lhe passos antigos, interveio:
- A noite é tôda a mesma. O que pode acontecer é noutras terras não haver a rodeá-las, como aqui, manchas negras de pinhais, distancias grandes de arvorêdo, que roubam á povoação o brilho da própria noite...

- Não sei qual o motivo disso, meu neto, mas olha que sempre foram muito escuras as noites nestes sítios. Tu já ouviste contar as lindas histórias dos tempos da rainha santa e do rei D. Deniz, quando êles escolheram a nossa aldeia para passar o verão! Estás lembrado do que se conta que teria acontecido naquela noite em que D. Isabel, inquieta e aflita pela sorte do rei, mandou alumiar o caminho por onde êle deveria passar!

- Sim, sim, tenho uma vaga lembrança da avósinha haver contado essa lenda, que cada um descreve como quere e entende. Mas diga, avósinha, diga que eu gosto de ouvi-la sempre.

A velhinha não se fez rogada. E tal qual a ouvira contar a sua avó, assim a transmitiu, mais uma vez, ao neto - que o mesmo faziam todas as avós naquela aldeia, quando tinham de descrever histórias lindas aos seus nétinhos, nas noites de inverno, á lareira, enquanto a lenha era transformada em cinza que ia adubar a terra tão esfalfada de germinar:
- O rei saira de manhã cedo para a caça. Do paço de Monte Real fôra com êle apenas o servo por quem D. Deniz tinha grande afeição. Cavalgando, os dois meteram por êsses matos, em direcção á cidade. Muitas vezes faziam o mesmo percurso, ora marginando o rio, ora metendo mais para o mar, á procura dos javalis, mas a verdade é que poucas vezes traziam caça. A rainha admirava-se disso, porque o rei era bom caçador. Depois, êle voltava muito tarde, altas horas, o que afligia imenso D. Isabel, que não escondia o seu sofrer a quem com ela vivia no paço e sabia como ingrato era D. Deniz para sua esposa. Nessa noite, era tão negra a escuridão que a rainha, que era santa, teve mêdo que o rei se perdêsse. Chamou os criados e ordenou-lhes que fôssem pôr fogachos no caminho de encruzilhadas por onde o rei teria de passar, no regresso a Monte Real. Esse sítio era perigoso, mesmo aqueles que conheciam perfeitamente todos os cantos da região nele se podiam perder, quando pretendessem orientar-se no percurso. Para o local partiram muitos homens ao encontro do rei, a iluminar-lhe o caminho. Altas horas D. Deniz apareceu no paço e D. Isabel esperava-o cheia de ansiedade e de sofrimento. Perguntou-lhe, então se vira as luzes, se tinha sido útil o seu gesto, mas o rei por nada dera, tudo ignorava. A rainha contou, então, o que mandara fazer para seu esposo não sofrer algum precalço.

Nêsse momento o coração de D. Deniz comoveu-se. Foi então que teve piedade da rainha, ela que se consumia de dôres por muito o amar.

D. Deniz não vinha da caça. Todas as vezes que chegava tarde perdia o tempo em amoroso idílio, num recanto ignoto, com uma camponêsa linda e rosada como uma papoila. E dali regressava, noite alta, mais cego de amôr do que da escuridão, por caminhos tenebrosos, nêsses tempos em que havia feras nos matagais e a caça era tanta que devastava as granjas e destruía as hortas. Nessa noite escura, um anjo do céu iluminou o coração de D. Deniz. Ao ter conhecimento do que fizera a rainha, ajoelhou no lagedo do paço e beijou as mãos da santa, dizendo a chorar:
- Perdão! De amor cégo vim!

Daí em diante, o local onde o rei perdia o tempo sem noção do mal que causava á rainha passou a chamar-se Amor. E o tal sítio muito perigoso por onde passava D. Deniz e que D. Isabel mandou alumiar é hoje o lugar de Cégovim. O povo agora chama-lhe Cégodim.

- Há exemplos desses, minha avó! O povo, por vezes, altera os nomes ás coisas!

- Aqui tens meu neto a prova de que há muitos séculos as noites, nestes sítios, já eram mais escuras do que noutro lado...

Carlos tinha acabado de jantar. Gostou de ouvir a avó, mas não acreditava na lenda que ela descrevera tão ingenuamente. Era lenda, e a lenda, a mais das vezes, não passa de imaginação, fantasia do povo que dura eternidades porque vai de geração em geração. Assaltou-o um pensamento: - estudar a história da sua região para verificar até que ponto era aceitável a lenda. E a reunir idéias foi deitar-se. Era muito tarde quando adormeceu.



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IV

A FESTA DA RAINHA SANTA



Monte real ergue-se, como o seu nome indica, num alcantilado, que começa nas margens do Liz. O cimo dêsse escarpado, aliás de fácil acêsso, tem a coroá-lo uma capelinha modesta onde é venerado o poder santo de D. Isabel. Capela, por ter há muitos séculos lá dentro a imagem da rainha santa, o edifício não foi construido com êsse destino. Serviu, antes, a residência de D. Deniz e de D. Isabel que ao viverem em Leiria encontraram naquêle sítio o local maravilhoso para repousarem das fadigas dos seus cargos reais. Hoje, como nêsse tempo que já vai distante, a aldeia de Monte Real tem os mesmos encantos, não só sob o ponto de vista do clima como da paisagem.

Do alto da rainha santa disfruta-se surpreendente panorama. Para o sul, são as povoações incrustadas nas manchas verde-negras dos pinhais. O casario branco sobressai, pintalgando aqui e além a monotonia das cores. O principio duma serra que não teve fim, começa a nascente. É uma encosta e por ela se espalham lugarejos, sempre a subir, como os degraus duma escada, até lá cima, onde a terra parece unir-se ao azul do céu. Aqui e ali lobrigam-se ermidas, cuja alvura diminui a distância que delas nos separa e onde o povo vai durante o ano, pelas festas e romarias, entregar o seu óbulo em paga dos favores com que Deus houve por bem brindá-lo, dando saúde aos seus, contribuindo para que em sua casa o pão não tivesse faltado. Onde, porém, o panorama atinge autêntica beleza é ao norte. O rio Liz que vem lá de longe e já passou pela cidade, acionando turbinas para dar luz, e sempre a correr para o mar tem feito mover moinhos e azenhas, circunda quási em segrêdo, os alicerces dêste monte - dêste monte real.

Ema alguns sítios suas margens mal existem. Os salgueiros ramalhudos e as faias muito esguias são as únicas testemunhas de que o rio vai ali em baixo, sossegado e tranquilo. Mas dois passos adiante já não é assim. Logo que se viu livre da presença do monte, como se o temêsse, e agora sem receio e desafiasse, é vêr o Liz, contente e sereno, sulcar os campos em zig-zag, como uma cobra a fugir da gente. E, assim, vai lançar-se nas águas do oceano.

Até lá, porém, o que êle não tem feito para a riqueza daquelas terras que sem o rio a sangrá-las eram pântanos improdutíveis e doentios! Foi essa uma das grandes obras do "rei lavrador", cuja memória o povo venera tão entranhadamente como adora o da rainha santa.

Os terrenos poligéneos do campo de Monte Real, vistos dali em dias de primavera, são uma linda aguarela. Mais policromos do que verdoengos, as côres da sua vegetação, matisada com as leiras arroteadas, fazem lembrar os vestidos das raparigas da região, garridos, berrantes, duma alacridade que embriaga e extasia. A magestade do panorama deslumbrante encontram-na nossos olhos, porém, quando se voltam para o tapete verde-negro, de grandeza incomensurável, que é o "pinhal do rei". Começa a nossos pés e estende-se por tão enorme distância que seu fim se perde á vistra deslumbrada. Do alto da rainha santa, quem tivesse asas levantaria vôo e dum salto iria pousar nêsse oceano de rama de pinho que vai até o outro oceano - os dois a confundirem-se e a confundirem quem se demora a contemplar tamanha riqueza.


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A aldeia acordou ao ribombar dos morteiros e dos foguetes, anunciando a alvorada. Era um barulho de ensurdecer e pelo visto a festa ia ser rija. Sim, que isto de festa onde o fôgo não seja forte não é festa nem é nada. A população despertou mal dormida, pois nem tempo tivera de fazer o primeiro sono. Deitára-se tarde, tôda a noite levando na preparação do dia seguinte. Á festa da rainha santa ninguém faltava. Era a mais concorrida, a mais brilhante de todas quantas se realisavam em muitas léguas em redôr. Poucas como aquela levavam duas bandas de música, mais duma dúzia de andôres, a procissão com anjinhos, e o sermão estava anunciado como coisa digna de se ouvir, pois desta vez subia ao pulpito o padre Mateus, aquêle que mais fama tinha de bom prégador, nas duas dúzias de freguesias daquelas redondezas.

Pena era que, naquele ano, a procissão não pudésse sair da igreja matriz que estava em ruína, ao abandono, sem que alguém pensasse na sua reconstrução. Enfim, a festa não seria por isso menos importante. Tudo se reuniria lá em cima, no alto da rainha santa, em volta da capelinha, onde a missa seria celebrada e de onde sairia a procissão para o percurso habitual. O resto era como nos outros anos. Cá em baixo, no largo, seria o leilão das fogaças. Os corêtos já estavam ornamentados de verdura, que bastante trabalho deu aos festeiros. E as cavalhadas teriam o mesmo trajecto dos anos anteriores, desde o adro até o pelourinho, fuso de pedra que ali se conserva há séculos, á beira do caminho, sem que o povo soubesse para que serviu ou o que representa.

Não havia uma casa, fôsse de pobre ou de rico, que não apresentasse aspecto de festa. Coisa simples, na verdade. Arrumação das coisas, paredes caiadas, sobrado lavado e o chão coberto de junco, que em feixes tinha sido cortado ainda na véspera dos campos da Salgada. Era domingo, mas aquêle domingo tinha diferença dos outros. Os homens trajavam farpelas novas, as mulheres tinham, pelo menos, comprado um "cachiné" para estrear. E as raparigas casadoiras, tivessem ou não conversado, nem uma deixava de se apresentar com sua andaina garrida, berrante, cada peça da sua côr, sobressaindo o rosa e o azul.

O estralejar dos foguetes atroava o ar, umas vezes isolados, outras em girandolas. Havia alegria por tôda a parte. Novos e velhos preparavam-se para a festa. As casas dos festeiros eram assembléias de movimento, de vozearia, de risadas. Rapazes e raparigas tratavam de ultimar a confecção das fogáças, que quatro pares conduziriam na procissão, como oferta á santa mais milagrosa daqueles sítios. Ao longe, ouviam-se os acordes duma música. Era a banda que tinha ido aos lugares da freguesia para acompanhar os ranchos que vinham com suas fogáças. Através dos pinhais, por caminhos de carros, as ofertas eram conduzidas por quatro rapazes e outras tantas raparigas, em cortejo pitorêsco.

De vários pontos chegavam á igreja os romeiros carregados com suas promessas á rainha santa. Dinheiro, géneros de tôda a ordem, medalhas de oiro, velas de cêra, tudo era ofertado á santa em paga dos seus milagres.

Naquêle ano tinha havido uma promessa que dera que falar. Um grosso cordão de oiro fôra colocado ao pescôço da imágem da santa. Cada um atribuia a promessa a diferente intenção. Quem a fizera estava calada e só ela podia extinguir as dúvidas. Mas fôsse quem fôsse, a verdade é que o cordão de oiro da menina Isabel era agora da santa do mesmo nome. De tôda a vez que lhe perguntavam porque havia ela feito voto respondia que tinha sido por motivo de que acontecêra a seu pai, quando se travára de razões com o Carlos Duarte. O pai salvára-se de trabalhos e ela entregava á rainha santa o seu cordão por ter feito o milagre do caso não ir a mais..

Fraca explicação era esta para contentar a curiosidade: ninguém encontrava nela motivos bastantes para o gesto.

Fôra numa tarde, no caminho da Ribeira. O sr. Alves, o pai da menina Isabel, encontrou a filha a namorar com o estudante, o filho do sr. João Duarte.

Ora o sr. Alves e o sr. João Duarte eram inimigos políticos, ou, melhor, andavam de mal por causa da política. O primeiro já havia dito, alto e bom som, para quem quizesse ouvi-lo, que não permitiria o namoro da filha com o rapaz do seu adversário, mas ninguém fez caso das afirmações do proprietário, uma vez, na taberna do Simões, quando um dos frequentadores, um destes individuos que têm prazer em acirrar descontentes, ao saber que o Carlos tinha chegado de férias, insinou:
- É verdade, cá temos o futuro doutor! E futuro genro aqui do sr. Alves...

O proprietário ficou pouco contente. Talvez tivesse percebido a intenção, e por isso respondeu sem ódios, mas decididamente:
- Não! Não hão de ver tal coisa! Se eu morrer breve é possível que a minha vontade não seja cumprida, mas se Deus me conservar a saude ninguém dirá que a minha família se uniu á dêsse cavalheiro... Não digo que se trate de gente ruim, de gente que não pudesse reunir-se aos meus; não, não é nada disso! As minhas razões são outras. Não quero negócios de espécie alguma com eles... De resto, eu não creio na inclinação da rapariga. Ela sabe qual é o meu pensamento. O que houve foi uma brincadeira de crianças da escola! São da mesma idade, brincaram ambos, não admira...

- Tudo isso por causa da política, sr. Alves. O que faz a política! Houve tempo em que se deram bem, que eram amigos! - interrompeu o dono da taberna.

- E ainda hoje podiamos ser amigos á mesma, se êsse senhor não têm feito o que fez. Nunca esperei uma patifaria daquelas. Ás vezes chego a pensar que êle tem mau fundo, maus instintos... Vocês sabem como a gente se dava; tinhamos as nossas discussões por causa da política, êle é dum partido e eu sou contra o partido dêle, mas depois disso a gente era como nada se tivesse passado. Naquêle ano, foi o que sabem. Houve por êsse país além umas conspirações contra o govêrno de então, e êle desceu á infâmia de denunciar-me falsamente. Que eu estava metido na conspiração! Uma patifaria! E porquê? Por causa da política? Sei lá, a mim ninguém me tira da idéia que aquilo foi por eu ter, nêsse ano, comprado a minha Ribeira. Ele também era pretendente, mas não dava o que eu dei por essa fazenda. Foi isso, não tenham dúvidas. Uma patifaria, ir acusar-me de estar metido com os conspiradores. Uma patifaria!

Quando o sr. Alves saiu da locanda, os outros frequentadores continuaram conversando, cada qual mostrando a sua opinião sobre o caso. Aquêle que havia dado aso à conversa, disse que o sr. Alves estava mal informado sôbre o namorico. E acrescentou que, ás escondidas, o Carlos e a Isabel se falavam e se escreviam. Era a filha do sacristão, até, quem servia de "correio".

Era de facto asssim. Carlos e Isabel gostavam um do outro desde pequenos. O namorico da escola tinha prosseguido sem interrupções. Durante o tempo em que estava no liceu o rapaz mandava as cartas para casa do sacristão, cuja mulher tinha mais arte para alcoviteira do que o marido para ajudar á missa. E a verdade é que o sr. Alves veio a ter a confirmação de que assim era, num dia em que deu com uma carta do estudante para sua filha e na qual a rapariga era tratada por "meu amôr", coisa séria para os costumes da terra... Ali, quando um namoro chega a êsse ponto é caso muito adiantado... A carta valeu uma sova á menina Isabel, uma descompostura a sua senhora mãi, que era uma santa e confiára na palavra da filha, quando lhe prometeu esquecer o Carlos - por causa do feitio do pai. E o sr. Alves, além do mais, jurou que daria um puxão de orelhas ao "doutor", logo que o encontrasse a jeito.

Assim aconteceu. Uma tarde, o sr. Alves ia para a sua Ribeira - a sua magnífica propriedade - quando lobrigou o estudante, que despreocupadamente andava a passear, a gosar o ar puro dos campos. O proprietário, por temperamento, não tinha vontade de escândalos, de conflitos, mas o demónio foi ter jurado que puxava as orelhas ao rapaz. Se o não fizésse, agora, passava por cobarde e não cumpria a jura - uma coisa que deve ser sagrada. Por isso se encaminhou para o ponto onde o estudante passeva. Ainda de longe, mesmo de muito longe para lhe agarrar as orelhas, o proprietário gritou:
- Agora é que mas pagas!

O rapaz não quiz ouvir mais, fugiu a bom fugir, que era o que o sr. Alves pretendia. E quanto mais fugia, mais o proprietário gritava a... meter mêdo. Ora aconteceu que o sr. Alves, em dado momento, caiu e a espingarda, que levava suspensa ao ombro pela correia, disparou-se - felizmente sem novidade. O estudante, dez metros além, caiu, supondo naturalmente que o tiro o havia atingido. Ambos se assustaram, e o caso não era para menos. Até parecia de propósito. Apareceu gente de todos os lados, aquilo não era nada, mas o demónio é estas coisas acontecerem. No dia seguinte afirmava-se, com pormenores inventados, que o sr. Alves havia disparado contra o estudante e se êste não adréga de cair - estava morto e bem morto a estas horas. Resultado: o sr. João Duarte, o pai da vítima, ter ido logo a Leiria "fazer a cama" ao seu inimigo. "Fazer a cama" ali, naquêle sítio, é nem mais nem menos do que preparar as coisas para um qualquer cair nas malhas da justiça e ter dificuldade em sair delas. Ora a menina Isabel prometera o cordão á rainha santa - segundo dizia - para que seu pai se visse livre sem maiores trabalhos daqueles trabalhos todos. E a santa fizera o milagre, porque, na verdade, o caso ficára arrumado sem consequências de maior.

O povo é que não explicava assim o voto da filha do sr. Alves. Estava bem que ela prometêsse o cordão por causa do que acontecera ao pai, mas também se sabia perfeitamente que a menina Isabel chorára muita lágrima, quando o namorado fôra para o hospital, a tratar-se da pancada que dera no peito, ao cair sôbre um valado, e que se supunha ser coisa de gravidade. A promessa deveria ter sido feita por causa dos dois - do pai e do "seu amor".

Durante a festa, no percurso da procissão, na igreja, tôda a gente admirava o valioso cordão dependurado ao pescoço da santa, que até parecia mais linda, vestida com seu manto azul, onde o oiro dizia bem...


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Terminára a missa, a festa de igreja. O povo, agora, espalhava-se pelo alto da rainha santa e cá por baixo, pelo arraial. Faziam bom negócio as barracas de "comes e bebes", com seus pipos de vinho, cobertos de ramos verdes e colocados sôbre umas táboas a servirem de balcão, que um toldo fingia isolar do sol.

Por todos os cantos, nos sítios mais extraordinários, grupos de romeiros que haviam chegado de muitas léguas distantes, devoravam com apetite seus farneis, comendo á fartança, mesmo que aparecessem mais uns amigos com os quais não se contava. De quando em quando, o estralejar dum foguête e o rapazio a gritar de contente por ter apanhado a cana chamuscada, onde havia ótima linha cheirosa a alcatrão para a brincadeira diária.

Junto do muro do adro já estavam em fila as fogáças para o leilão. Colacadas sôbre estrados, para junto de cada saltou um rapaz a servir de pregoeiro. Era vêr como o povo se acoteveláva em redôr dos curiosos andôres, todos êles guarnecidos de bôlos, frangos córados, coelhos assádos, envolvidos com um pão, e logo á mostra uma garrafa de vinho que parece feito de rosas, tão aberta é a sua côr.

As raparigas iam cortanto os artigos que guarneciam as fogáças. Agora mesmo uma delas passou ás mãos do pregoeiro - que é seu noivo - um belo frango, lindo pão alvo e uma garrafa ricamente lapidada. E o rapaz, agitando no ar tão apetitoso farnel, vai gritando o preço que cada pretendente oferece, sempre a sorrir, os olhos a procurarem quem dá mais. Já está quási rouco de gritar. O barulho é ensurdecedor. Seis ou sete pregoeiros falam ao mesmo tempo, numa algazarra que se ouve lá adiante, para o fim da povoação, onde já outros festeiros preparam as cavalhadas, número apoteótico que ninguém deixa de presenciar. E lá estão os rapazes a apregoar:
Quem dá mais! - Ninguém dá mais? - Se ninguém dá mais, vou arrematar! - Está em três mil reis! - Está em três mil reis e quinhentos! - Dou-lhe uma! - Dou-lhe duas! - Ninguém dá mais? - Está em quatro escudos! - está em cinco escudos! - Ninguém dá mais? - Está arrematado!

E a comentar o seu trabalho de tantos minutos a gritar, a gritar para que a sua voz suplante a dos companheiros, o pregoeiro improvisado, exclama:
- Nada há mais barato! Chega para um rancho, só por cinco escudos!

O negócio continua. No final são umas centenas de escudos que revertem para o cofre da santa, para as festas do ano seguinte.

É quási noite. Nos corêtos, as bandas de música recomeçaram o duelo dos seus repertórios. Vão começar as cavalhadas. Ao princípio da rua onde se realiza o divertimento agrupam-se os cavaleiros. A um sinal partem os primeiros. Correm dois a par, galopando a tôda a brida, entre os aplausos entusiásticos da multidão, a vêr qual se adianta no percurso. Momentos após, outros partem da mesma maneira. Quando não falta nenhum a sair do ponto de partida, iniciam a marcha em sentido inverso os primeiros que chegaram ao final do trajecto. E assim andam até que não se vê nem cavalos nem cavaleiros, porque a noite transformou tudo da mesma côr.

De repente, ouvem-se gritos. Há correrias, gemidos de aflição. Foi um rapazito que ao atravessar a rua se enrodilhou nas patas duma bêsta. Todos conclamam que o garoto ficou mal, talvez esteja morto. Afinal nada lhe sucedeu. O rapaz, alarmado com tanta gritaria, é quem sossega aquela gente:
- Não foi nada! Não me dói nada!

E entre os carinhos da mãi, que o repreende com lágrimas nos olhos, lá foi para casa, a sossegar, a tranquilisar-se do susto.

Há romeiros que já partiram para as suas terras e para as suas casas. Mas há muito mais que ficaram e dali não arredam antes que as bandas de música se declarem cansadas, exgotadas, no duelo que já dura há muito. A festa, agora, é em volta dos corêtos. O resto, por aqui e por ali, na escuridão, apenas os namoricos nascidos naquêle dia, em presença da santa que há de proteger os conversados pela vida fóra. E quantas vezes a gente ouve:
- Eh Maria! Ainda aí estás? Olha que os teus já se foram!
- E não aguardaram por mim? Tu vais já?
- Não tarda nada!
- Então espera-me, vou contigo!

Momentos depois, as duas raparigas que são duma aldeia distante, partem para suas casas, pela estrada fóra, cada uma levando a seu lado um camponês que quási sempre é seu marido no ano seguinte.

Alta madrugada, quando a vida do campo chama aquela gente para o trabalho, ainda há restos de festa. Pelo menos os músicos que partiram para as suas terras vão a assoprar, ainda, os instrumentos, como se não tivessem ficado fartos de tanta barulheira.

Aos nossos ouvidos chegam os acordes isolados duma musicata dolente que nos faz adormecer, sob a impressão enexplicável de tristeza e de bem estar.



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V

UMA GRÉVE ACADÉMICA



O govêrno fôra obrigado a tomar precauções de carácter policial, por motivo da gréve académica. Todas as aulas funcionavam, mas havia grande número de estudantes que se opunha á entrada dos colegas que com a gréve não concordavam.

O facto prestava-se a ponderação. Ha muitos anos que tal não se verificava; ha muitos anos que, ao declarar-se uma gréve académica, não havia nenhum estudante que a ela não aderisse imediatamente. Porquê a razão de agora haver dissidências? A explicação encontrou-se fácilmente. Tratava-se duma gréve com objectivos políticos, duma gréve fomentada pelos rapazes que abraçavam a idéia comunista - sem que isso demonstrasse que conheciam essa doutrina.

Na chamada família académica havia duas correntes bastantemente pronunciadas: - a comunista e a nacionalista. Esta era a dos rapazes que seguiam calorosamente a doutrina do govêrno, dos rapazes que punham bem alto nos seus ideiais políticos o conceito da Pátria, os interêsses da Nação. Era a idéia nacionalista que germinava, após tantos anos de ausência duma doutrina nacional, duma doutrina que não confundisse o regime com a nação sem separar, é claro, uma coisa da outra - mas também sem misturar a política partidária com a política do interêsse comum.

O pretexto da gréve tinha sido banal. Nem era necessário outro mais importante. Na mocidade ha sempre propensão para brincadeiras. E, então, entre a mocidade das escolas existe natural disposição para "fazer gazeta"...

No entanto, as informações eram bastante confusas. Uns, pretendiam vêr no movimento certas influências políticas fomentadas por elementos estranhos á academia; outros não consideravam a gréve coisa importante, partindo da convicção de que se tratava duma rapaziada... O govêrno só podia ter uma opinião no caso: era evitar explorações de carácter político e não permitir manifestações de aspecto subversivo, que são sempre contrárias ao bom andamento das coisas públicas e prejudiciais á normalidade da nação, que só em sossêgo, em paz, pode progredir.

Por isso tomou providências. Afirmava-se ainda, que era na Faculdade de Direito onde maior número de grévistas havia. Foi, pois, para as imediações desse estabelecimento de ensino superior que as autoridades encarregadas de velar pela segurança pública dirigiram as suas atenções. Não foi preciso aguardar muito tempo para os factos darem razão áqueles que atribuiam ao movimento carácter político sem finalidade nem justificação.

No momento em que os estudantes discordantes da gréve pretenderam entrar para as aulas foram disso impedidos pelos grupos dos adversários. Supôs-se que talvez se tratassse duma questão de defesa dos próprios grévistas, os quais com a entrada dos outros se sentissem prejudicados, mas não. Aos gritos de "viva a liberdade", os grévistas não davam liberdade aos seus camaradas de entrarem nas aulas. E quando as duas correntes se chocaram, quando sôbre o mar nêgro das capas e batinas surgiram bengalões e punhos fechados, um estudante, de cabeleira revolta, olhar firme, vivo, destemido e leal que parecia ser, apareceu empoleirado nos degraus da escadaria e, dominando a multidão, desfraldou uma bandeira vermelha - símbolo da sua doutrina política.

Estava revelado o programa da gréve, estava afixado o cartaz da revolta.

Das medidas tomadas pelas autoridades resultou a descoberta duma organisação de caracter político, baseada em doutrinas cuja propaganda o govêrno não permitia. E só êle tinha o direito de usar da faculdade de proibir ou consentir o desenvolvimento de idéias que não são aquelas em que a nação comunga.

O rapaz decidido, leal, sincero e valoroso que desfraldára a bandeira vermelha era o estudante de direito Carlos Duarte.

Quem diria que o estudante que fôra namorado da menina Isabel, o filho do sr. João Duarte, proprietário naquela aldeia das margens do Liz, havia de dar que falar assim desta maneira! Quem diria! Mas estava explicado o caso. O rapaz fôra para a capital, após os estudos no liceu de Leiria, porque seu pai desejava fazer do filho um valôr do seu país para não ser apenas um valôr na sua terra - que isso era pouco. Depressa demonstrou que a inteligência era nele uma realidade sem sofismas. No seu curso talvez outro não houvesse mais inteligente. E os professores gostavam dêle, porque os professores têm orgulho, têm consideração pelos alunos que aprendem ou sabem aprender.

Sincero, leal, sonhador como era, não foi dificil que outros o levassem a bater-se por uma doutrina que lhe parecia ser a única capaz de nivelar o mundo. E foi assim, sonhador e romântico, que o encontráram naquele dia da gréve, arauto duma doutrina que o apaixonára.

Passou tempo. Carlos Duarte esteve preso durante muitos mêses no Aljube. Não enjeitou a responsabilidade do seu gesto - que não teria grande importância se não fôsse o mais que as autoridades descobriram sôbre a acção revolucionária. Na cadeia, durante os interrogatórios, sempre, orgulhosamente, se confessou adepto duma doutrina política que é a destruição de tôda a organização social. O isolamento, porém, levou-o a meditar no seu gesto e nas suas idéias. Nessas longas noites de cativeiro quantas vezes passou em revista a sua vida de estudante e de revolucionário, metido em reuniões com outros camaradas e com outros revoltados, que só apregoavam a destruição, a desordem, sem analisarem a vida dos povos - que é feita mais em sossêgo do que em convulsões.

Apesar disso, cada vez mais convencido estava de que o mundo só pode caminhar, de que a sociedade só poderá ser feliz, depois duma rajada de revolta ter destruido, ter aniquilado o que existe, para sôbre as ruinas do presente novo edificio social se erguer sem defeitos nem injustiças.

O tempo na prisão custa mais a passar do que em liberdade. Carlos Duarte na cadeia não era o revoltado em liberdade. Tinha agora tempo para analisar melhor o mundo. E a primeira coisa que o chocou, que o feriu, foi a ausência dos camaradas e dos amigos que êle esperava vêr, naquêle transe, não a animá-lo, que isso não era preciso, mas a dar-lhe a certeza de que continuavam a ser os mesmos elementos com quem a sua idéia, a sua doutrina de redenção social, podia contar. Nem um o visitára, e já lá iam alguns meses. Sabia que não estavam presos, sabia que andavam em liberdade e nem deles as autoridades suspeitavam. Sabia mais, ainda. A sua colega, a sua amiga, a única que o visitáva e lhe dava mostras de estima bem o informava do que ia lá por fóra, pela cidade.

Era a Marilia de Sousa, camarada magnífica que com êle acompanhava, que com êle discutia, que com êle estudava. Só ela aparecia na cadeia e lhe dava um pouco de conforto. Quantas vezes ela saía da prisão, terminada a hora das visitas, de lágrimas nos olhos. Carlos ficava a meditar. E foi depois disso que principiou a avaliar a amisade da colega. A solidariedade tão apregoada pelos camaradas como um dos mais preciosos sentimentos entre lutadores duma idéia, entre os homens que se reunem em volta dum pensamento político e na solidariedade encontram animo e fôrça para batalhar sem desfalecimentos, só êle a havia encontrado, até ali, numa mulher, na sua colega de estudos que nunca se afirmára revolucionária, muito pelo contrário, mais duma vez manifestára a sua discordância com êle, quando o tempo e a amisade levavam os dois para campos estranhos á matéria das aulas.

Carlos Duarte, naquela tarde, após a saída de Marilia, deu-se a meditar nas palavras que ela pronunciára com certa amargura - como bem notou.

A rapariga, delicadamente, com certo acanhamento, tinha-o censurado. Que era se não censura o que ela dissera, ao referir-se á sua situação de preso:
-Você, Carlos, não precisava de ter criado esta situação. Inteligente como é, não necessita de seguir outros que por não terem inteligência nem condições para triunfar na vida só se afirmam por actos que chamem a atenção pública. Veja o Silveira, o Fonseca, o Soares e tantos outros. Não serão capazes de concluir o curso, o que sabem é nada, mas verá como êles triunfam. Audácia não lhes falta. Berram, gritam, gesticulam, entram em conspirações, mas nunca são presos. Quando menos esperármos hemos de vê-los nomeados para magnificos lugares... E você com a sua carreira perdida por causa da política e por causa deles! Não concorda comigo, mas deixá-lo, sempre lhe digo que nós não temos o direito de manifestar-nos politicamente antes de constituirmos valores ao serviço da nação. Nós, os estudantes, os que andamos a preparar-nos para a vida, não podemos ter os mesmos direitos daqueles que na vida já se encontram com as responsabilidades das suas profissões, com os direitos da sua actividade. Acha esta doutrina disparatada? Eu sei que acha, mas estou disposta a defendê-la perante você, e espero ter elementos bastantes para me dar razão.

E a sorrir com tristeza, cortou a resposta do camarada:
- Não quero trazer para aqui discussões desta natureza. Quando você sair, hemos de falar muito sôbre o caso. Mas promete-me que não se meterá noutra?

E já o guarda a intimá-la a sair, que a hora da visita estava terminada, concluiu:
-Meu pai, a quem relatei o seu caso, está muito interessado em conhecê-lo pessoalmente.

O estudante recolheu ao seu quarto de preso. Mais um dia tinha passado sem que os amigos e camaradas aparecessem a visitá-lo.



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VI

CONSPIRAÇÃO...



A notícia dos acontecimentos que ocasionaram a prisão do estudante foi conhecida na sua terra pelo que a ele dizia respeito. O pai do rapaz partiu logo para a capital a informar-se do caso e dar ao filho a assistência de que êle carecia.

Entretanto, na aldeia, onde as coisas tomam aspecto diferente do que lhe dão na cidade, a questão resumia-se nisto: - fôra por causa da política que o Carlos Duarte tinha sido prêso. Tal pai tal filho! Política, sempre a política a dividir os homens, a causar desgraças.

Para uns o caso não tinha importância, e até podia vir a redundar em beneficio do estudante, porque já não era o primeiro que se metia em política e depois era com ela que se governava. Talvez fôsse assim que êle mais depressa chegasse a doutor.

Quando, á noite, depois do sr. João Duarte ter tomado o comboio para Lisboa, se reuniram, como de costume, meia dúzia de fregueses na taberna do Simões apareceu o sr. Alves. O assunto das conversas era a prisão do rapaz. O proprietário, porém, limitou-se a dizer:
- Somos inimigos, mas não me regosijo com o seu mal. Mas é assim: cá se fazem e cá se pagam. Quando o pai me denunciou não se lembrou que tinha filhos e que êles não são apenas nossos herdeiros, também são, muitas vezes, quem paga as nossas dividas... O rapaz vai mal! Vejam que deu em comunista. É mil vezes pior do que ser do partido do pai, do partido que só queria governar, como se o país fôsse dêle apenas...

- Que é isso de comunista? O sr. Alves podia explicar essa coisa á gente! - pediu um dos frequentadores.

- Comunista... comunista... é assim uma coisa como... eu sei lá... é pior do que tudo. Os comunistas são aqueles que desejam um mundo em que não haja patrões nem operários, um mundo que se governe por si próprio, onde não haja nem leis nem religião. Ninguém se baptisa, ninguém se casa; o amor não existe, a mulher é uma coisa que não vale nada, todos a ela podem ter direito... Eu sei lá, é uma coisa pior do que tudo. Os comunistas para vencerem, para construirem o seu mundo, destroem tudo a tiro ou á bomba. Não respeitam as idéias dos outros, atacam a propriedade, incendeiam as igrejas, numa palavra fazem a desordem... Pelo menos foi o que eu li e é o que se tem visto noutros países onde os governos só a muito custo conseguem dominar as desordens que eles provocam.

Um dos fregueses, no final desta tirada do sr. Alves, comentou:
- Essa de não se baptisarem nem casar é boa! Então ajuntam-se como os cães e fazem vida como os bácoros?

- E ainda não sei tudo!Olhem por exemplo, o comunismo não quere que haja tropa nem policia. Os filhos não têm que dar satisfação aos pais, cada um governa-se como entender.

- Havia de ser coisa asseada! Eles assim, mesmo com as correias apertadas, são o que nós sabemos, quanto mais se não tivesse de respeitar os pais! - interveio outro.

E o proprietário arredondou:
- Se as coisas de agora são o que são, vá lá a gente fazer idéia do que seria o mundo com essas doutrinas.

O taberneiro também se meteu na conversa. Nunca ouvira falar de comunismo, podia entender, porventura,o que era isso! Mas falou como sabia e talvez tivesse podido falar pior:
- Eles, lá na capital, fazem as coisas como se fôssem apenas os que lá moram os donos do país. Cada um entende que nasceu para ministro e vá de se meter na política e preparar revoluções como quem resolve dar um passeio. Depois, falam em nome do povo, em nosso nome, como se a gente os conhecesse ou lhes tivésse dado confiança. Quando fizeram a República vieram dizer-nos que o novo regime era o melhor, o que mais garantias dava ao povo. A gente acreditou por que a verdade é que a Monarquia não fazia nada e o dinheiro que pagávamos era para a família real: mas o rei foi pela barra fóra e nós continuámos a pagar ainda mais sem resultados de maior.

A província continuou esquecida, abandonada, e se reclamávamos ou protestávamos respondiam-nos que não tinhamos ilustração, que eramos uns pobres diabos sem educação. Somos, somos uns pobres diabos, mas temos de pagar como aqueles que não o são. Nunca havia dinheiro para fazer um melhoramento nas aldeias.

E apoiado pelos fregueses prosseguiu:
- Até que ha uns anos o govêrno mudou. A sua política veio fazer com que a gente compreenda agora que isto ia mal e podia ter ido sempre bem. O povo que descria na República tem actualmente a certeza de que o regime não era o culpado do abandono em que o país vivia. Os culpados eram os govêrnos, e a prova é que, com outra gente, alguma coisa tem sido feito em benefício da província, que o mesmo é dizer em beneficio de todos nós. Tantos anos esperámos pela vinda do professor e êle ai está. A escola foi, enfim, arranjada. O que não se gastou a mais só porque a deixaram arruinar! As estradas estão magníficas. A gente vê que por tôda a parte uma vida nova começou. Pagamos as contribuições, os impostos, mas, a verdade diga-se, o dinheiro vê-se aplicado em benefício da nação.

O sr. Alves que ouvia satisfeito o taberneiro, porque também pensava assim, acrescentou:
- Por todo o país a obra dêste govêrno, que não veio pedir-nos votos nem prometer coisa alguma, é formidável. Trabalhos de grande envergadura, como portos, estradas, bairros económicos, navios de guerra, edificios públicos, que estavam a apodrecer, em tudo isso tem sido gasto o dinheiro que pagamos, com proveito e administração. Ha por tôda a parte uma melhoria notável, quer sob o aspecto económico quer sob o aspecto financeiro. E é uma coisa destas que alguns pretendem deitar a baixo. E é contra tudo isto que alguns conspiram e trabalham - como agora se descobriu com os acontecimentos, de que resultou a prisão do filho do João Duarte. Só se é para se aproveitarem da obra feita, da obra que eles não foram capazes de realizar! O rapaz é ainda uma criança, mas é das crianças que alguns se utilizam para a propaganda contra o govêrno. Que isto, quanto a mim, sim... o rapaz foi vítima de alguns amigos do pai.

Um outro frequentador da taberna que até ali se conservara calado, após ter mandado deitar o último quartilho da noite, pegou no copo para o levar á bôca. Antes, porém sentenciou, como se entendesse alguma coisa do que se tratava:
- Eu também digo que isto de não haver quem governe é uma coisa impossivel. Se a gente não tivésse respeito nem acatásse quem sabe mais do que nós, como seria o mundo? Porque mal comparado, a nação deve ser uma coisa assim como uma casa onde ha muitos filhos e o pai tem de dar ordem á vida para a todos criar. Ora os filhos se não fôrem devidamente educados, se não tiverem respeito ao pai, tudo vai mal e a casa não resiste. A gente tem exemplos desses cá na terra. Não é preciso dizer os nomes... Quando os filhos puxam cada um para seu lado e o pai não tem fôrça para impôr a sua autoridade, já se sabe o que acontece. Vai tudo por água a baixo.. Sim, senhor, isto é assim...
E terminou:
- Não querem uma pinga? Com êste quartilho me vou á deita, que ámanhã tenho de erguer cêdo.

Pouco depois não havia ninguém na taberna. Cada um tinha recolhido a casa. Aquéla do Carlos Duarte ter sido preso por causa da política motivára uma celeuma dos diabos...


»



Chegado a Lisboa, o sr. João Duarte não foi logo á cadeia visitar o filho, porque demais sabia êle que não lhe podia falar. O rapaz estava incomunicável. Além disso, êle levava uma carta dum amigo de Leiria para pessoa importante da capital e era com o destinatário que primeiramente tinha de avistar-se. Saiu da estação do Rossio e meteu-se num hotel de terceira categoria, cansádo da viagem e apreensivo pela sorte do filho, pois não conhecia, pormenorisadamente, o que se tinha passado. No dia seguinte, ainda cêdo, foi á procura da pessoa importante a quem a carta era destinada. Era cêdo para falar ao amigo do seu amigo da cidade do Liz. Tratava-se dum advogado que só iria ao escritório depois das onze horas. Esperou, e enquanto andou pela cidade demorou-se a contemplar diversas obras que tinham sido realizadas depois da sua última estada na capital. Algumas surpreenderam-no. Até que enfim a parte dos edificios ministeriais que um dia foi devorada por um incêndio já tinha telhado. A avenida que começa ao pé do Tejo e vai até lá adiante a Alcantara era agora uma coisa diferente. Mas havia muito mais. As ruas estavam arranjadas. Não há dúvida, a capital tinha um aspecto diferente de ha anos. Só quem tivesse, como êle, estado algum tempo sem visitar a cidade é que podia avaliar o efeito. Achou bem mas não ligou importância ao caso. O diabo da prisão do rapaz tirava-lhe a alegria...

Á noite, quando o sr. João Duarte entrou no hotel para jantar, ia contente, como se lhe tivesse saído a sorte grande. No entanto, o filho continuava preso, como elemento perigoso á ordem social. O sr. João Duarte se tivesse encontrado alguém conhecido não se continha e gritaria, para que todos o ouvissem, que o filho era um rapaz destemido, formidável, cuja situação de aversário do govêrno o colocava na possibilidade de um dia vir a ser "alguém" nêste país. O sr. João Duarte, porém, estava isolado naquêle ambiente. Não conhecia ninguém e, pior do que isso, os frequentadores do hotel mal olhavam para êle. Enquanto ia mastigando o jantar foi sonhando: "Talvez um dia fôsse olhado e admirado por todos aqueles cavalheiros que, muito entretidos com o repasto, não podiam adivinhar que era êle o pai do estuante que desfraldára a bandeira vermelha na escadaria da Faculdade de Direito e a sorrir, olhos a enfrentar a tropa, se deixára prender, naquela tarde da revolta contra o govêrno. Nessa altura talvez o cumprimentassem, em mesuras de subserviência, talvez."

Pensava assim e estava satisfeito, estava alegre, porque o advogado para quem levara a carta lhe tinha dito que o seu filho era dos elementos mais valorosos com que os partidos contavam para derrubar a ditadura que ha anos governava o país. O advogado, dr. Bazilio Silva, era um republicano entusiasta que se batia pela queda da situação implantada em Maio de 1926, porque entendia que o regime nada lucrava - antes pelo contrário - em ser governado pelos homens que naquêle momento dispunham dos sêlos do Estado. Falava de democracia com um entusiasmo que nunca ninguém lhe ouvira. Nunca se ocupára disso, noutros tempos em que governavam os seus partidários, mas agora trabalhava, ele e outros comungantes nas mesmas idéias, para que a democracia triunfásse. Um dia, no "café", houve acalorada discussão por causa das opiniões dos individuos que se reuniam á mesma mesa e falavam de coisas políticas. O dr. Bazilio tanto falou em democracia e na necessidade desses principios nortearem os governos, que um dos ouvintes teve esta frase:
- Mas porque não os puzeram em prática durante o tempo em que os seus partidários estiveram no poder?
E acrescentou?
- Se não estou em êrro foi você, até, quem acusou um govêrno democrático de estar a praticar um acto de traição ao regime, pela maneira como governava.

Não era segrêdo para ninguém que os elementos de todos os partidos trabalhavam para derrubar a ditadura. Não tinham fôrça, porém, para isso, nem o ambiente lhes era propício. O dr. Bazilio fazia parte do quinquagésimo "comité" organisado para acabar com a ditadura no país. Era dos elementos mais aguerridos. Ainda não havia muito, êle tinha reunido com o "comité" para serem tomadas resoluções importantes. Fôra uma reunião célebre. Pela primeira vez se tinham encontrado inimigos partidários que não se falavam por causa duma famosa sessão parlamentar em que se haviam insultado una aos outros e também por causa dos congressos dos seus partidos, em cujas assembléias só se proclamava a guerra, o ódio, a vingança, entre homens da mesma Pátria, entre adeptos do mesmo regime, dando a todos o triste espectáculo que as colunas dos jornais da época arquivam para a história.

Nessa reunião do "comité" houve abraços, reconciliações, palavras de entusiasmo e fé pelo regresso ao passado. Presidiu um antigo ministro, o qual, como membro de vários outros "comités" exitinctos, pôs a assembléia ao corrente dos trabalhos conspiratórios. Segundo êle, havia magnificos elementos, mas tinham verificado que os movimentos revolucionários não podiam ser feitos como antigamente, quando bastava uma fôrça de qualquer regimento para fazer cair um govêrno.

E afirmava o presidente:
- Agora não é assim! Para derrubar a ditadura precisamos ter fôrça bastante, composta de elementos que estejam dispostos a combater. Ora é isso que não possuimos

Um antigo deputado, que durante o tempo que esteve em S. Bento falou simplesmente no perigo que o regime corria por ser governado pelo partido que não era o seu, usou da palavra nestes termos:
- Não precisamos ter tanta fôrça como o govêrno. Basta que saibamos agir no momento propício. O mais importante é o ambiente e êsse têmo-lo como nunca houve para preparar uma revolução.

Foi interrompido em áparte, por outro conjurado, que gritou:
- Não estou de acôrdo com o ilustre correligionário! O ambiente de nada serve se não tivermos fôrça. As revoluções triunfam sempre, desde que a força dos revolucionários seja superior á do govêrno, haja ou não ambiente

Chegou a vez de falar a outro antigo ministro. Era orador que arrebatava multidões, quando o povo vivia de frases e não de obras. Principiou dêste modo:
- Não no iludamos! Nós temos de colocar o problema tal como êle se nos apresenta, para não corrermos o risco de nos enganarmos uns aos outros. Hoje, nós, os homens dos partidos, não temos fôrça nem simpatia da maioria do país para podermos vencer sósinhos, numa revolução. Não temos fôrças, sequer, para organisarmos um movimento revolucionário. A prova de que assim é, temo-la no fracasso das passadas conspirações. As correntes políticas estão divididas como nunca ou, melhor, estão enfraquecidas. Ha correligionários nossos que não nos acreditam; ha outros que estão com o govêrno, porque a verdade é que êle tem conseguido realizar uma obra que interessa o país - uma obra que nós nunca pudémos realisar, porque, além de outras razões, vivemos sempre a atacar-nos uns aos outros. Além disso, a mocidade, que ha dez anos se interessava pela doutrina democrática, está hoje mais afastada do que próximo dela. Quero referir-me áqueles que aceitam a doutrina comunista. Esses nem são pela situação nem são por nós, homens das doutrinas democrático-liberais, cada vez mais desacreditadas pelo fracasso sempre crescente da função parlamentar.

E depois, sempre vivamente escutado por todos:
- Se dentro do regime nós não encontramos elementos suficientes para o combate temos de nos aproximar dos comunistas. Eu estou disposto a isso, não receio essa aproximação pelo que ela possa ter de perigosa. Quero-a, defendo-a, com a certeza de nos ser util. No nomento da vitória, porém, a primeira coisa a fazer é, sem dó nem piedade, destruir esses elementos, inutilizá-los, nem que seja preciso empregar a fôrça das armas. Ha que contar com o facto dos comunistas serem maiores inimigos do regime do que os próprios monárquicos - porque são inimigos da Pátria.

As palavras do fogoso político causaram magnifica impressão nos conjurados. Não há dúvida que o problema tinha sido posto com inteligência. Aproveitavam-se dos comunistas para a revolução, mas vitoriosa esta dava cabo deles para evitar complicações.

Daquela reunião sairam trabalhos importantes. Foi o advogado Bazilio da Silva o encarregado de propôr a aproximação, a aliança aos comunistas.

Não lhe era dificil a missão. Sabia onde ir bater, sabia onde encontrar amigos que eram mais ou menos dirigentes do movimento vermelho. E que não teve dificuldades na sua missão provou-o o facto dos comunistas terem reunido, daí a dias, para apreciar as propostas dos conspiradores. Nessa reunião foram apresentadas as bases da aliança por dois estudantes de direito que tinham falado com o dr. Bazilio, e os quais defendiam o acôrdo com entusiasmo. O mesmo não se verificou da parte dum operário. Este declarou, alto e bom som, que não acreditava nos elementos dos antigos partidos, argumentando que foram eles sempre os piores inimigos das classes trabalhadoras, sem respeito pelas suas reinvindicações, e só se aproximavam dos operários, com muitas promessas, quando as suas posições políticas estavam desacreditadas. A discussão foi demorada, mas chegou-se a acordo, visto que da aliança não provinham compromissos reais. A reunião de delegados, como ela era designada, votou a proposta do operário que a princípio se manifestou discordante. Iriam com os partidos para o movimento, mas no momento da vitória retomariam a sua liberdade de acção e procederiam como as circunstâncias indicassem a bem da sua doutrina. Tanto os aliados políticos como os vencidos teriam a mesma sorte. A vitória do comunismo estava em saber aproveitar o momento. Não viéssem depois com palavras de paz ou de piedade. O programa era destruir, era criar o pânico, o terror. O comunismo só podia vencer se não poupasse os políticos de hoje e de ontem. Não se admirassem por isso se muitos dos aliados baqueassem antes, até, dos outros...

Dias depois, era um facto a conspiração mais séria que tem havido nêste país. Mais séria e mais vergonhosa - a conspiração de que brotára aquêle episódio isolado, que levára á cadeia o estudante Carlos Duarte.

Quando o sr. João Duarte regressou á sua aldeia ia contente. Levava a certeza de que seu filho estava destinado a grandes triunfos. Não duvidára um momento sequer daquilo que o dr. Bazilio lhe contára a propósito do seu rapaz. E não escondeu êsse contentamento, por visionar, num futuro próximo, a vitória do seu partido, que era a sua vitória, ali na aldeia, onde êle voltaria a mandar, a dar cartas na política indigena de que já tinha saudades...



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VII

A FILHA DO SENADOR



Marilia de Sousa não tinha mentido ao seu camarada, quando, ao abandonar a cadeia, lhe disséra:
-"Meu pai, a quem relatei o teu caso, está muito interessado em conhecê-lo pessoalmente."

Era verdade. O antigo senador Braz de Sousa, burguês, democrata, que pela democracia era capaz de todos os sacríficios, ao mesmo tempo que gostava de alardear que descendia duma família nobre dêste país e, á procura da sua árvore genealógica, havia gasto, sem resultado, quási uma fortuna; o velho senador que uma vez no Parlamento acoimára de vadios os operários da sua fábrica, por eles se declararem em gréve, em consequência do ilustre legislador não cumprir a lei do horário de trabalho; o sr. Braz de Sousa mostrou o maior interêsse, o mais decidido entusiasmo, em conhecer pessoalmente o revolucionário que tão arrojado se revelára naquela tarde da gréve académica.

- Muito me contas minha filha. Não sabia, não podia adivinhar que eras tão amiga dêsse rapaz. Já uma vez me referi a êle e tu não mostráste o teu interêsse de agora. Supuz que não acamaradasses com êsse teu colega, dadas as vossas idéias diametralmente opostas. Ele, um rapaz com o cérebro cheio de idéias novas, amigo do progresso; tu uma reacionária, uma nacionalista, como agora se diz daqueles que têm no peito um lugarsinho para o sr. D. Miguel...

- Não, papá! Não é nada do que supõe! O meu camarada Carlos Duarte, como aliás todos os meus camaradas, só me interessa pelo que é de igual a mim. Futuro doutor, colega amanhã, na vida prática. Política não a discuto nem com ele nem com mais ninguém. Entendo que nós, aqueles que se preparam para a vida, não temos que intervir na política nem dar qualquer concurso aos políticos. Sóbra-nos tempo quando, terminado o curso, cada um principie a carreira profissional. Só nessa altura nós devemos considerar-nos elementos activos da nação. Agora somos, sabemos lá o que somos. Temos idéias, mas quem nos garante que são essas as melhores... aquelas que devemos manter pela vida fóra? O papá, diga-me, quantos valores conhece nêste ou noutro país que ficaram agarrados ás doutrinas dos tempos de estudantes? É claro, as idéias não podem ser a única coisa que no mundo não se transforma, não se actualisa, não se modifica! Essa coisa de muitos entenderem que o bom, o magnífico, a prova de sinceridade, está em não modificar as suas opiniões faz lembrar a resposta do outro que explicava ser o burro o que nunca mudou de idéias... porque era burro e como tal não as tinha.

Estou a gostar de te ouvir. Sim, senhor, assim com essas doutrinas ainda vens a dar em monárquica... Era um grande desgosto para mim, que sempre fui republicano e republicano ei-lo de morrer.

- E garante que as suas idéias são as melhores? Que não há outro pensamento político mais util?

- Todos nós entendemos que as nossas doutrinas são as melhores. Se assim não fôsse eu não defenderia com a maior sinceridade as minhas.

- É por saber de quanta sinceridade o papá põe no seu ideal político que eu me atrevi hoje a falar-lhe do meu camarada que está a ferros, no Aljube.

- Devo prevenir-te que não intercêdo, seja por quem fôr. Não quero dever favores a esta situação. Pede-me tudo, menos ter de dar um passo para que o rapaz saia da cadeia. Agora se é uma questão material, sim, se êle precisa de dinheiro, fala, tens-me ao teu dispôr.

Marilia deixou-se ficar silenciosa. O seu espírito deveria estar em luta consigo própria. Mais uma vez verificava que a política cegáva os homens. Resolutamente decidiu-se a lutar com o pai.

- O papá não tem razão em manter-se obstinadamente nessa atitude. Não desejo pedir-lhe a sua intervenção para a liberdade dêsse meu camarada, que eu estimo e admiro, precisamente porque êle é um sincero nos seus ideais. Mas se fôsse êsse o motivo que me leva a pedir-lhe uns momentos de atenção, o papá não devia negar-se a fazê-lo. Não percebo a intransigência, não compreendo certas atitudes. Se em vez do meu colega fôsse eu quem estivesse no Aljube, se fôsse eu a rapariga com o cérebro cheio de idéias novas, amiga do progresso, o papá não dava um passo para me tirar do cativeiro?

- Não leves a questão para êsse campo! Tu és minha filha! Um pai é capaz de tudo para salvar um filho, quando o vê em perigo. Sei lá, não fales nisso, são coisas completamente diferentes... Tenho admiração por êsse rapaz, mas êle não é meu filho.

Marilia voltou a ficar pensativa, o olhar distraído numa estante de livros. Depois, recomeçou:
- Não se trata disso papá. O que eu lhe peço é coisa diferente. Quero que me auxilie a salvar êsse rapaz, a arrancá-lo do caminho errado onde o meteram certos elementos, cujos fins políticos são pouco claros. Carlos Duarte é dos melhores estudantes do seu curso, é um rapaz inteligente a quem não é dificil augurar um futuro brilhante, um sólido triunfo.

- E depois...

- Mas tem um grande defeito. É comunista, revolucionário declarado. Assim, com aquelas idéias vai abandonar o curso, vai andar metido em conspirações, vai perder-se, se nós o não salvarmos.

- Não entendo aonde queres chegar. Que posso eu influir nêle, se não o conheço, nem êle a mim. Depois, minha filha, deixa-me ser claro, eu não me assusto com o comunismo. Tenho mais receio dêsse nacionalismo que andam para aí a apregoar. Tu és nova, sincera, acreditas demasiadamente em certos elementos que apenas têm em vista desacreditar o regime. Não vês o perigo que nos ameaça, que ameaça as liberdades públicas... Deixa-me dizer, eu não sei o que é pior, se o comunismo russo se o comunismo dêste govêrno... É assim mesmo!

E prosseguiu:
- O chamado nacionalismo está trabalhando cada vez mais para a queda da burguesia. Não vez o que tem sido decretado em matéria económica. Olha, êsse rapaz, com as suas idéias, não digo que elas não tenham de sofrer emendas, êsse rapaz pode ser mais util ao regime do que prejudicial. Por isso tenho simpatia por êle...

- Se é assim que papá vê as coisas eu não quero nada. Não quero que tenha simpatia pelas idéias do meu colega; preferia que tivesse simpatia por êle por se tratar dum rapaz que merece ser encaminhado em vez de desorientado. Quero que o papá o salve, precisamente porque êle tem essas ideías que o papá acaba de elogiar. Não sei, nêste caso, que fazer... E o papá podia colaborar comigo para levarmos o meu colega a deixar de perder tempo com a política. Dizer-lhe que não se intrometa em questões políticas enquanto não tirar o seu curso. Depois... depois que seja o que entender.

Marilia mudou de atitude. Subitamente, deixou de falar no seu colega. E encarando o pai fez-lhe esta pregunta:
- O papá é, ainda, membro do directório do seu partido?

- Sou! Porquê?

- Acredita que os partidos representam ainda alguma coisa?

- Porque não! Um partido que não se dissolve por um decreto...

- Pois não, dissolve-se por falta de partidários!

- Não percebes nada disso. Cada vez os partidários são mais indefectíveis. Mas que pretendes com as tuas preguntas?

- O papá vai fazer com que o seu partido, os seus correligionários, não estabeleçam mais confusão na política, mais luto na vida do país.

- Que dizes! Tu estás louca?

- Não estou! Eu sei que o seu partido, todos os restos dos partidos, á falta de fôrça, á falta de elementos para combater a ditadura se aliaram aos comunistas e a todos os revolucionários. Sei mais! Sei que essa aliança não é sincera nem duma parte nem doutra. Os partidos querem desfazer-se dos seus aliados, no momento da vitória - se vencedores saissem. Nem que tenham de fuzilar os elementos comunistas, querem desfazer-se dêles. Por sua vez, os comunistas pensam fazer o mesmo aos políticos dos partidos, para melhor estabelecerem os seus princípios demolidores nêste país.

- Cala-te! Isso são boatos, intrigas!

- Não são! O papá sabe que não são boatos! Eu tenho provas de que é assim, de que seria assim. Mais: tenho as listas com os nomes daqueles que hão de ser sacrificados á luta desleal, á aliança vergonhosa que uns e outros acabam de fazer.

O velho senador fixou melhor o olhar na filha e não respondeu imediatamente. A rapariga também ficou calada uns momentos. Foi êle quem cortou o silêncio:
- Estás muito bem informada. Surpreende-me como tivéste conhecimento dessas coisas. Melhor fôra que te preocupasses sómente com os teus estudos.

- Sabe que não sou mandriona! Não viu o perigo que o ameaça e por isso censura-me. Já agora peço-lhe que me oiça até o fim.

E ante a curiosidade alarmada do senador, Marilia prosseguiu:
- O sr. Braz de Sousa, antigo senador e membro do directório do seu partido, está na lista dos comunistas para ser fusilado, logo que a revolução triunfe. Quere saber qual o seu número? É o número três! Agora veja, o estudante Carlos Duarte está indicado no programa dos aliados para ser preso imediatamente, êle e outros, assim que o poder esteja de posse dos partidos. O papá não ignora que é assim, no último caso. O que não conhecia era o que os outros haviam resolvido. Quere que lhe diga quem foram os elementos designados para dar caça aos comunistas?

- Cala-te! Como tiveste conhecimento disso? Só por traição!

- Exactamente, pela traição com que cada uma parte trabalhava ou ainda está trabalhando.

- Quero saber como soubeste de tudo isso!

- Porque me interessa a vida do meu país e a vida de... Sabe do que o acusam papá? Acusam-no de ter, uma vez no Parlamento, insultado as classes trabalhadoras, de ter chamado vadios aos operários porque eles se recusaram a trabalhar mais do que a lei determinava.

- Malandros! Não dizem que em consequência da gréve me prejudicaram em centenas de contos! Por causa do horário de trabalho! E não dizem que foi a República, que foi o meu partido quem decretou essa lei, quem lhe deu essa regalia... Mas, dize lá, como foi que descobriste tudo isso? Estou em não acreditar! Nisso ha muita fantasia!

- Fantasia! O papá não sabe o que aprovou na reunião conspiratória?
Breve saberá como eu tive conhecimento de tudo isto. Agora prometa-me que vai trabalhar comigo para salvarmos o meu camarada.

- Como queres que prometa?...

- Usando com franqueza um e outro. Carlos vai sair da cadeia por estes dias. Sei que colegas dêle, alguns seus inimigos políticos, que o estimam e sabem quanto é sincero nas suas idéias, trabalham para obter a liberdade dêsse rapaz. Não fariam o mesmo por outros. Sabe lá quantos o impeliram para a revolta e depois o abandonaram, o deixaram só. São, em grande parte, uns autênticos patifes. Raros se encontram como aquêle rapaz, e é por isso que me interessa a sua situação. Eu sei quanta sinceridade e quanta ilusão aberga aquela alma.

- Mas que queres tu que eu faça?

- Primeiramente, quero apresentar-lho, quero que o conheça e que êle conheça o papá. Depois..sejamos francos! O papá vai deixar de se entregar á política. Deixe isso, fuja a compromissos. O papá não precisa da política e não está em idade de tomar certas responsabilidades.

- Queres dirigir-me? Que vem a ser isso?

- Perdão! Nâo é o que supõe! Eu quero que o meu pai se liberte duma quadrilha que brinca com os destinos do país como se tôda a sua população fôsse nem mais nem menos do que um rebanho de carneiros. Não me olhe assim, papá! Eu sei o que estou a dizer! e já agora que entrei nêste terreno digo tudo. No final, o papá ditará a sua sentença.

Marilia nervosa, de faces vermelhas que o sangue parecia querer saltar-lhe da pele, prosseguiu, ante a surpreza cada vez maior do pai:
- Os trabalhos conspiratórios em que o papá e outros estão metidos, fomentados por todos os adversários da ditadura, servem sómente para alimentar uma fauna de indivíduos que vive á sombra dum falso revolucionarismo. Ai de muitos se, porventura, a revolução já tivesse triunfado. Nunca mais poderiam levar a vida faustosa que levam agora, porque incompatentes para qualquer cargo público o regime não os podia manter - se quizesse zelar os dinheiros do país - nem haveria lugar para tanto mandrião. O papá não concorda? Duvida do que lhe estou a dizer?

- Neste ponto, tens certa razão. Ainda não ha muito êsse aspecto do problema foi tratado...

- Pois bem! Se é assim, porque teima o papá, porque teimam todos quantos sinceramente pretendem andar na política, em alimentar um estado de coisas que a ninguém é util e pode ser fatal ao regime?

- Mas a que queres chegar? Não entendo! Quem te meteu na cabeça tanta coisa disparatada, tanta fantasia?

- Todas estas fantasias resultam da observação aturada que tenho feito não só aos princípios políticos que governam o país, nêste momento, como das intenções daqueles que se dizem adversários dos novos conceitos sociais em que o govêrno pretende orientar a nação. Os políticos doutro tempo andam cegos. Dominados pelo ódio a uma situação que os afastou do poder, não querem vêr o perigo que constituem certas alianças e certos compromissos. Não querem colaborar com o govêrno, alegando divergências de opinião e de doutrinas e aliam-se a elementos cujas doutrinas também repudiam. Onde está a sinceridade das suas intenções? Uns e outros entregam-se a uma obra que poderá constituir a ruína do regime. E, coisa desgraçada, esses cavalheiros mostram-se contentes ao verificarem o mau resultado do seu trabalho. Que espécie de patriotismo é êsse, que sinceridade de intenções é a deles? A política tem obliterado a razão a alguns dos melhores espíritos desta terra. Porventura, o papá tem algum interêsse em aliar-se a inimigos de ontem, que serão inimigos amanhã, para colaborar numa obra que a todos deve satisfazer: o engrandecimento da Pátria? O papá sabe melhor do que eu o que sempre tem acontecido, em casos idênticos...

- Basta! Não quero ouvir-te mais! Não sabes o que dizes, és uma criança, ignoras os compromissos que me ligam a uma idéia que foi, é e será sempre a razão da minha independência política, da minha qualidade de cidadão livre. Mil anos que eu vivêsse seria adversário duma situação que aceita o concurso, o apoio dos monárquicos e despresa a dos republicanos. É isto regime republicano? Dize lá, dize, tu que estás interessada por esta coisa que para aí governa...

- Se me autorisa a responder-lhe citar-lhe-ei factos que o desmentem. Veja, papá...

- Oh! É impossível... Mas fala, fala, quero saber com quem estou tratando.

- Não é verdade que os actuais governantes sejam menos republicanos do que eram os outros que tiveram os destinos do país em suas mãos. A prova da sua isenção está, precisamente, em aceitarem o concurso de todos os portugueses, estejam eles em que campo estiverem, sejam monárquicos ou republicanos. Não fazem do país um feudo de certos indivíduos, lá porque eles se afirmem republicanos. E em muitos casos são levados a aceitar a colaboração de elementos que não aderiram ao regime pelo facto daqueles que tinham obrigação em acatar e colaborar haverem tomado atitudes que os coloca na qualidade de inimigos. O papá não está com a situação porque o destituiram do seu lugar de senador. Mais tarde foi demitido do lugar público que tinha porque não acatava quem devia acatar, porque, ostensivamente, era contra o govêrno. E o govêrno era quem mandava, tal qual como acontecia noutro tempo, como ha de acontecer sempre...

- E achas que não era bastante para me revoltar contra um govêrno que me destituiu de senador, por um golpe de fôrça?

- Não acho, não! O govêrno que o destituiu tinha como principal elemento um homem que ajudou a implantar o regime. Além disso o papá foi sempre senador, desde que a República se proclamou. Nunca o seu partido permitiu a outros que ocupassem igual lugar, com iguais direitos que tinham a isso. Porque não aceita a revolta legítima dos prejudicados?

- Sempre conquistei o meu lugar em luta legal, nas eleições.

- É verdade, mas quantas vezes para vencer se aliou a monárquicos ou aceitou o auxílio do govêrno em tróca do seu silêncio ou da sua conivência em actos com os quais nem sempre a sua consciência estava de acôrdo.

- És terrível, rapariga! Felismente que a tua mãi morreu sem te conhecer idéias políticas. Ela teria muito desgosto ao saber que a filha contrariaria os meus ideais políticos. E onde fôste tu buscar essas idéias?

- Observando sempre, verificando que as coisas iam mal com a orientação de certos políticos, com a sua atitude perante a causa pública.

- Vamos acabar com isto! Aonde queres tu chegar?

- Quero... Gostava que o papá não comprometesse mais o seu nome nem a sua fortuna em aventuras políticas. O papá tem um nome limpo, tem uma fortuna razoável. Sabem disso os seus correligionários. Eles querem o seu nome, mas desejam muito mais o seu dinheiro.

- Talvez não te enganes, não!

- Além disso trata-se do meu camarada. Ele nao precisa do seu auxílio para se vêr livre da prisão. Precisa do nosso auxílio para não voltar a ser um elemento dissolvente, êle que tem inteligência e qualidades para ser alguém nesta terra.

- De modo que te interessas muito por êsse rapaz...

- Muito! Quero-lhe como se fôsse meu irmão. Sei lá, talvez mais. Eu não sei como se quere a um irmão, mas suponho que é assim como quero a êsse meu camarada. É um rapaz que o vai encantar, papá. Verá, quando falar com êle. Promete-me que me auxiliará?

- Dize o que pretendes que eu faça.

- Pouca coisa! Os três vamos prestrar um alto serviço ao regime e á nação. Vamos constituir uma aliança de paz. O papá representará nêste caso a política do passado, o meu camarada será o que se convencionou chamar o futuro e eu, eu serei, se quizerem, a pomba da paz, serei a verdade, serei o elemento que entre um e outro estabelecerá a concórdia, nos casos em que ambos não estejam de acôrdo. Tenho elementos para convencer os dois, tenho provas para demonstrar que os dois a seguirem as suas idéias ou os seus caprichos correm risco de cair numa cilada criminosa. Eu sei, papá, que a sua liberdade esteve por pouco, eu sei que elementos a quem o papá tem dado mãos cheias de dinheiro o foram denunciar á polícia, relatando a vasta conspiração em que estava envolvido. Veja a sinceridade desses elementos, veja de quanto são capazes certos correligionários. Fui eu, papá,, quem se responsabilisou pela sua independência política. Prometi que o papá abandonaria não as suas idéias, mas os compromissos revolucionários. O papá vai deixá-los sem que isso constitua uma traição ou simplesmente deserção. Nem o papá tem carácter para isso nem eu queria que tal acontecêsse. O papá vai abandonar esses compromissos, porque a maioria dos seus amigos não merece a sua solidariedade. No dia em que o meu camarada sair da prisão, peço-lhe que o receba e lhe fale com a um filho. Os dois vão falar de política e ele talvez não seja mais o revolucionário incendiado doutros tempos, mas o homem que tem idéias claras, que sabe o que quere. Quando o papá e eu o puzermos ao corrente do que se passa verá como ele se revoltará contra essa canalha, esteja ela onde estiver, no seu partido ou no dêle. É preciso salvar o meu camarada e é preciso salvar o papá. Ambos correm risco idêntico, sem saberem um do outro. Veja a que situação chegámos. Felizmente soube disto a tempo. O papá esteve para ser preso ha dois dias. Dei a minha palavra de honra que o papá não fugiria a responsabilidades, mas também garanti que o papá deixaria de imiscuir-se em negócios conspiratórios. E vai fazê-lo, porque tem razão para isso, porque não quere ligações com... traidores.

Braz de Sousa ouvia a filha como que apalérmado. Vários pensamentos lhe baralhavam no cérebro. Muitas coisas que ela referia já eram do seu conhecimento, mas havia outras, as mais graves, que o deixaram surpreendido. E amedrontado, porque o estava, respondeu:
- Pois bem, o rapaz que apareça! Falaremos largamente. Mas...espera. Hoje é quarta feira... Quando vem o rapaz?

- Não sei, talvez ainda esta semana. Mas não ha inconveniente. Pode comparecer á sua reunião de amanhã. Nada lhe acontecerá. Garanto-lho porque o sei. E a polícia também sabe que os conspiradores vão reunir mais uma vez, com o que não se importa muito...

O antigo senador estava dominado pela filha. Nem já lhe preguntou a razão daquela garantia.

Quando a rapariga abandonou o escritório do pai, ia trémula, nervosa, cérebro cansado da luta que travára. E no entanto, a batalha que ia ter com o camarada preso no Aljube afigurava-se-lhe muito mais superior - mais dificil...



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VIII

NOVOS HORIZONTES



A situação do país merecia á imprensa estrangeira referências entusiásticas. Citava-se a nossa política como modêlo, havia alusões ás nossas condições financeiras, de modo a colocar-nos numa posição previligiada. Por todo o país continuavam as obras de fomento que empregavam milhares de operários. Dia a dia os jornais inseriam diplomas governativos no sentido de debelar a crise que, por fenómenos mundiais, também nos atingira. O nível económico da nação era, comparadamente a outros países, o mais animador. O nome de Portugal e dos estadistas que o governavam andavam citados em todo o mundo. A doutrina política estabelecida entre nós era motivo de estudo em outros países. Podia-se afirmar que o mundo nos olhava com simpatia e com admiração. Os grandes periódicos de fama internacional enviávam até nós os seus redactores categorisados a fim de colher elementos, a fim de conhecer o segrêdo da nossa vitória. O chefe do govêrno era, enfim, arrancado á sua pertinaz humildade, ao seu recolhimento de rebelde a réclames, e projectado em colunas de reportagem, através do mundo. A sua figura atingia as culminancias, as suas doutrinas transformavam-se em apostolados.

Pela primeira vez, nêste país, se ouvia falar num chefe. Não em chefe de partido ou agrupamento político, mas no chefe que a nação possuia.

O povo, como nunca se havia verificado, manifestava o seu interêsse pelas doutrinas que o chefe proclamava. Sentia-se que alguma coisa de novo agitava o país. Eram doutrinas novas, eram novos conceitos. Não se falava em nome dum partido, gritava-se em nome da nação. A curiosidade nascia não só entre os elementos constituidores da riqueza como também nas camadas operárias - não menores valores dum país, sempre arremessados para plano secundário, pelos políticos doutróra.

Ao esquecimento, até então, dos poderes públicos pelas classes trabalhadoras, inscrevia-se na fachada do novo edifício doutrinário estas palavras do chefe, que actos e leis vieram demonstrar que não eram simples e vagas afirmações:

"Nós queremos caminhar para uma economia nova, trabalhando em unisono com a natureza humana, sob a autoridade dum Estado Forte que defenda os interêsses superiores da nação, a sua riqueza e o seu trabalho, tanto dos excessos capitalistas como do bolchevismo destruidor. Nós queremos ir na satisfação das reinvidicações operárias, dentro da ordem, da justiça e do equilíbrio nacional, até onde não foram capazes de ir outros que prometeram chegar até ao fim. Nós queremos defender as massas proletárias dos seus falsos apostolos, e demonstrar com a nossa atitude que não ha uma questão económica a dividir-nos, mas no fundo um conceito diferente da vida, outra idéia de civilisação."

A reacção a estes principios afirmava-se, no entanto, de modo bem pronunciado. A união de elementos mais heterogéneos tinha sido realisada para combater o novo estado de coisas, onde uns lobrigavam ameaças aos alicerces basilares do regime e outros atingiam perigos graves aos princípios da liberdade...

A verdade é que nessa união havia como já vimos burgueses e proletários, como se coisa séria os ameaçasse e como se os dois factores, filhos um do outro, até ali alguma tivessem encontrado maneira de se entender.

A acção desses elementos não conseguiu, porém, interessar o país. O povo abandonou-os, desinteressou-se deles, para não alimentar um passado político cuja história sem grandeza nem beleza vivia na memória de todos.

E o que acontecia na capital repetia-se na província. Ao encontro dos interêsses do povo ia o govêrno, dia a dia, satisfazendo velhas aspirações, realisando melhoramentos. Houve terras onde se consumaram obras que tinham sido reclamadas ha mais de cinquenta anos, sem nunca os poderes públicos haverem atendido os reclamantes.


»



Havia uma semana que o professor Anibal Fonseca chegára a Monte Real e tinha tomado conta da escola. O caso constituira verdadeiro acontecimento. Nem era para menos. Havia tantos anos que a aldeia estava sem escola que se encontravam por ali rapazes quási homens, analfabetos - num país em que a lei torna o ensino obrigatório. Era ver, agora, como as crianças iam para a aula. Aquilo para elas era novidade. Todas viram na escola o pretexto para a brincadeira diária. Mas foi assim nos primeiros tempos, nas primeiras semanas. Depois, os garotos começaram a faltar. O professor não deu pelo caso, logo de entrada. Levava as faltas á conta de coisa natural, mas, a breve trecho, veio a saber a razão porque grande percentagem deixára as aulas. As crianças encontravam no professor não um elemento de distracção mas um maçador.

Era uma maçada aprender a ler. Fôra isso mesmo que lhe disséra o pai dum garoto que preferia andar na brincadeira a ter de ir á escola. O professor viu a tempo o caso, tal qual era, ali naquela aldeia. Dizer ao pai do aluno que é obrigado a mandar ensinar o filho a ler era má táctica. Para aquela gente outra acção tinha êle de pôr em prática.

Depois de ter ouvido a uma mulhersinha que "isso de mandar os rapazes á escola é bom para os mandriões que não têm nada a dar a fazer aos filhos" e de outra lhe responder que preferia pagar coima de que deixar seu filho ir á escola, porque lhe fazia muita falta para a auxiliar no amanho da fazenda, enquanto o marido andava fóra a serrar, o professsor entendeu que o caso merecia ser estudado. E foi o que fez. Procurou o padre Afonso que ha anos ali exercia o seu cargo e falou-lhe no assunto.

O prior queixou-se, também, pelo que a principio lhe acontecêra. Não faltavam á catequése, que isso de religião havia bastante, tôda a gente era crente, de modo que as mãis tinham cuidado na educação dos filhos, mas o caso fôra outro. Tôda a gente, naquela terra, trabalhava de manhã á noite, desde a criança de poucos anos aos velhos a arrastarem-se por esses caminhos. E acrescentou:

- Nesta região a vida não permite, quer ao rico, quer ao pobre, perder um momento. A agricultura é pobre, mas é. apesar disso, a única riquesa daqui. Os homens, em grande percentagem, emigram ou para o estrangeiro ou para outras provincias do país. Precisam de arranjar dinheiro para adquirirem uns palmos de terra ou simplesmente o necessário para semearem o que já possuem.
Fica na aldeia a mulher, é a mulher que trata da lavoura, do amanho, que administra a casa. Se não tem filhos a sua odisseia é maior. Tem de pagar a quem a auxilie, tudo lhe sai mais caro. Pode você avaliar quanto vale, nesta aldeia, um garoto, quanto vale para uma mãi um filho com meia dúzia de anos. É a criança o seu melhor auxiliar, vai com ela para o campo, trata com ela da lida da casa, cuida da criação do gado, ajuda-a na lavoura. Não sei se viu já alguma mulher agarrada à charrua, como qualquer homem dado a êsse trabalho de retalhar a terra. É vulgar! Tôda a mulher que tem o marido fóra, substitue o homem. Veja, é sempre a mesma coisa: a mulher atrás da charrua, duas vaquitas a arrastarem a carga e o petiz á sóga, á frente do gado, que nem a gente sabe como êle consegue equilibrar-se naquela profissão de homem feito. Não admira que a criança falte á escola É a mãi que a isso a leva. E podemos nós revoltar-nos contra a sua atitude?

- Evidentemente, não!

Eu tive uma luta grande! Ao domingo, a criança quere brincar, quere divertir-se. Em todo o caso consegui interessar esta gente no cumprimento dos seus deveres cristãos, que aliás nunca abandonou. O povo aqui é bom! Religioso mas não fanático! A sua moral é das melhores. Respeitam-se como em nenhuma outra parte. A prova da sua bondade e dos seus sentimentos demonstra-a a paz em que vivem. Não ha memória dum crime, dum desacato grave.

´- Tem o sr. prior a sua missão facilitada! - respondeu o professor. Eu é que vou encontrar dificuldades.

- Talvez não. É questão de achar maneira de levar os pais, aliás as mãis das crianças a compreender as vantagens dos filhos irem á escola.

- Não supunha que ainda se vivia nesta ignorância, por essa província fóra. Sim, o que se dá aqui deve repetir-se noutros pontos.

- Meu presado amigo, os governos descuraram durante muito tempo a educação do povo, e de tal maneira o fizeram que o seu procedimento foi um verdadeiro crime. Ainda não ha muito afirmei isso mesmo a pessoa que foi alguma coisa na política. Sabe o que me respondeu?
Que a ignorãncia do povo se deve á religião, á igreja, que ensina a resar em vez de ensinar a lêr. Veja como entendem a religião. Um padre numa escola não é o mesmo que numa igreja, embora os dois mesteres tenham por fim dar luz aos espíritos que permanecem nas trevas.

- Vou dar aulas nocturnas para as crianças poderem frequentar a escola, sem prejuiso dos seus trabalhos! - interveio o professor.

- Sim, senhor, é boa idéia.

Depois estudarei a maneira de as interessar, de as cativar, delas não aborrecerem a escola. Talvez umas palestras para os pais e a organisação duns passeios aos sítios mais curiosos da região. Verifico que por tôda a parte ha vestigios de caracter histórico que o povo ignora.

- Mais de uma vez tenho pensado nisso! A passagem de D. Denis e D. Isabel por esta aldeia surge a todo o passo, nas mais pequenas coisas, e o povo não sabe disso, desconhece o valor histórico da terra onde habita. Pode contar comigo para uma obra dessas, que é de verdadeiro alcance nacionalista.

Pouco depois, o padre e o professor tinham estabelecido um programa que bons resultados veio a dar.


»



Decorreu um ano. Aquela aldeia durante êste lapso de tempo tinha visto realisados, como aliás outras terras do país, algumas das suas mais caras aspirações. Uma série de obras de utilidade pública transformará a aldeia numa povoação onde o progresso ia fazendo desaparecer processos rotineiros, antiquados. Muito contribuia para isso, também, o desenvolvimento das suas termas, cujas águas pelas afamadas curas faziam recordar os milagres da rainha santa. A lenda atribui áquelas águas a melhora dos doentes que se abeiravam de santa Isabel, a qual lavava os corpos dos gafos obtendo resultados rápidos e surpreendentes.

Havia luz eléctrica, falava-se em telefones e tôda a gente acreditava que isso vinha a realisar-se porque, agora, tudo se cumpria, o tempo das promesas já tinha passado. Os homens públicos mereciam a consideração do povo, o qual verificava que o seu dinheiro era aplicado em obras de fomento. Ninguém chorava o dinheiro que as contribuições lhe levavam; todos pagavam com satisfação, certos de que contribuíam para o bem comum. Por outro lado, a acção do padre e do professor dera os melhores resultados. Eram as crianças, agora, que fugiam de casa para a escola. Choravam quando suas mãis, coitadas, lhe diziam:
- Temos de ir ao "pinhal do rei" buscar uma sébada de mato. Está próxima a sementeira, precisamos de adubo para as terras. Amanhã irás á escola.

O garoto protestava, que ia ficar atrasado dos colegas, que o professor depois não o levava a exame. E a mãi, que noutro tempo se revoltaria contra a escola e contra o professor, prometia ao filho que ela própria iria falar ao "mestre" no assunto.

O professor conseguira interessar os alunos e as familias por um processo curioso. Fugia da escola com os rapazes e embrenháva-se com eles, sempre acompanhado do prior, pelos campos, pelos lugares próximos. Era ao ar livre que ministrava noções de história pátria ás crianças, pouco utilisando os livros, porque em cada recanto encontrava elementos para melhor as crianças o compreenderem. Aqui, era o rio que lhes falava da obra grandiosa de D. Denis. Fôra aquêle rei quem salvára tôda a região de ser hoje terra improdutível e até inhabitavel. O Liz dera á terra condições produtoras, o pinhal evitára que o mar invadisse as povoações ou as soterrasse em dunas alterosas. Pelo rio, em direcção á cidade, fôra muitos dias, em barquinhos de rémos, a rainha D. Isabel, passeando umas vezes, outras animando os homens que se ocupavam no amanho da terra. Descia do palácio, lá do alto - que hoje é o alto da rainha santa - e abeirava-se de todos, com palavras de simpatia. Mais adiante, nos campos salgados, eram as valas a cortar os terrenos em todas as direcções. Para quê uma obra destas? O professor explicava, sempre com o apoio do padre. Vala real, como era o nome duma vala quási paralela ao rio, fôra a última obra dos reis. Os campos salgados significavam, como o próprio nome indica, campos pouco produtivos. A vala fôra aberta para as terras serem uteis. Mais adiante, em direcção ao mar, ficava um sítio conhecido pela "galeota" e logo acima outro a que o povo chamava "caravela". A explicação para os dois nomes encontrava-a o professor no facto de, noutros tempos, o mar invadir os campos, entrar por aqueles sítios, até quási a Monte Real, e era pelo rio que se fazia a navegação indo os barcos buscar madeira ali para a construção de naus. Nêsse tempo havia uns estaleiros para a feitura de caravelas e galeotas, empregadas na própria navegação do rio. Mas não ficava só por aqui o trabalho do professor. Em tôda a parte êle encontrava vestígios da passagem de D. Denis e de D. Isabel por aquêles sítios. Monte Real era um lugarejo que tinha o nome feio de Camarreu. Quando o "rei lavrador" para lá foi morar, passou a chamar-se Povoa - a "povoa de D. Denis" e mais tarde Monreal, de que lhe vem o seu nome. Muitos beneficios deu o rei áquela gente da sua "povoa", ora deminuindo o tributo das terras do campo que amanhavam, ora isentando todo o homem válido da encorporação nas suas milicias, em tróca de ficar ali e ali constituir família.

O povo gostava como nunca do professor que ensinava coisas tão interessantes ás crianças e que elas próprias reproduziam em casa, levando a familia a ouvi-las com pasmo e encanto. E não era dificil ouvir á mãi dum aluno esta coisa inocente
- Ora vejam, a gente é daqui e não sabia nada disto. Foi preciso que o professor viésse lá de longe contar estas coisas doutros tempos.

Quando certo dia começou a constar que o professor gostava da menina Isabel, da filha do sr. Alves, e que pelo caminho que as coisas levavam, naturalmente ia haver casamento, o povo, as mulheres sobretudo, comentaram:
- É um belo casamento! Não vai nada mal a menina Isabel! Sempre é melhor do que casar com o Carlos, êsse rapaz que até já esteve preso por causa da política. Coitada da rapariga que tanto sofreu. Nunca ninguém soube as lágrimas que ela chorou. Para quê? Vejam se êle se importou mais com a criatura. É bem certo: longe da vista longe do coração...



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IX

NA CADEIA DO ALJUBE



Quando, naquela tarde, Marilia de Sousa entrou no Aljube a visitar o camarada preso, ia como nunca apreensiva. Não sabia o que adivinhava, mas alguma coisa secreta lhe dizia que o seu amigo a receberia com frieza, com cerimónia. Como teria ficado ao receber a carta que ela lhe escrevera ha dias? O que iria êle dizer ao seu atrevimento, enviando-lhe uma série de livros de doutrinas nacionalistas para se entreter durante as longas horas de isolamento? Rebelde como era, não teria aberto uma página dêsses livros! Mas confiava na sua lealdade. Ele lhe diria, certamente, o que pensava sôbre o caso. E não estava nessa lealdade nessa franqueza, a sua maior decepção? Marilia, naquêle momento, quási pediu a Deus que o amigo lhe mentisse. Sempre era menor o golpe...

Após ter percorrido alguns corredores e passado por vários guardas, que já a conheciam, chegou ao sector onde Carlos Duarte se encontrava. O rapaz recebeu-a como de costume, de braços abertos, sorriso franco, os olhos negros a cintilarem, como se fôssem a única luz naquele local de trevas.

O estudante, contente, ofereceu-lhe o banco que tinha ali, o banco que era onde sempre Marilia se sentava. Ele foi para o seu lugar de costume: uma mala de viagem, pronta á primeira voz, onde deixou cair o corpo cansado de tanta indolência. Principiaram a falar. Foi êle que começou, porque ela nem coragem teve para lhe dizer que estava mal disposta. Carlos percebeu e preguntou:
- Você que tem? O cheiro incomoda-a? Que quere, isto é da casa. Mesmo que sejam lavadas todos os dias, estas paredes e êste sobrado não largam o perfume... Eu já nem dou por êle, tão habituado estou.

E logo a seguir:
- Recebi a tua carta e os livros que me enviou. Já os li todos, sabe?!

- O quê, leu tudo tão depressa?

- O tempo chega para lêr e para pensar... Mas não falemos nisso ainda. Que me diz dos nossos camaradas? Estão todos bons? Como não se interessam por mim, pregunto eu por eles.

- Tudo na mesma! A não ser... Você sabe certamente... o que se passou entre o Fonseca e o Soares.

- Não, não sei nada. Que foi? Conte lá, é alguma coisa grave?

- Não, não é grave, é... miserável. O Fonseca acusa o Soares de ter gasto o dinheiro que recebeu para auxílio dos presos e dos foragidos. Foi uma vergonha, o que disseram um ao outro! O caso veio a saber-se e ambos foram presos. Ao serem interrogados insultaram-se novamente, acusaram-se mutuamente, denunciaram camaradas, enfim, vai por aí uma complicação medonha. Diz-se que se apuraram factos pouco abonatórios da sinceridade de certos revolucionários. Nem todos são como você, Carlos, desinteressado, leal, sonhador...

- Não esperava saber tanto, minha amiga. O que me diz vem confirmar as minhas suspeitas. Emfim, que quere, o homem é feito da mesma matéria, esteja êle colocado em que ponto estiver, ao norte ou ao sul, na rectarguarda ou na vanguarda. Desde que não haja sinceridade, honestidade, isenção, lealdade, as idéias são sempre vítimas dos que as servem...

- E após uns momentos de silêncio, o estudante exclamou;
- Minha boa amiga, suponho que vou ser restituido á liberdade por estes dias. A policia nada apurou de mau contra mim. Sómente a certeza de que fui eu quem desfraldou a bandeira vermelha - que era um lenço de vinte e cinco tostões... Brincadeiras de rapazes. Para castigo, basta todo êste tempo de cadeia. Sabe o que vou fazer, logo que saia daqui?

- Não adivinho...

- Abandonar a política! Não estou para me arriscar por uma doutrina que eu suponho a melhor, com elementos que são... sei lá, os piores. Depois, eu tenho tido a prova de que isto de servir uma idéia não é como a maioria supõe. Não basta dizer que somos isto ou aquilo em política. É preciso demonstrar que sabemos o que somos e é preciso provar que procedemos como pensamos. Mas aí é que está a dificuldade para aqueles que supõem ser o que não são. Adiante, não vale a pena perder tempo a analisar o caso. E como lhe disse: vou abandonar a política, porque não sirvo para colaborar em fantochadas. Só encontrei ambiciosos, má fé, interêsses, despeitos e, uma vez ou outra, alguns loucos.

- Eu bem lhe dizia Carlos. Ainda bem que você os conhece agora, ainda a tempo.

- Sobretudo o que me magoou foi a falta de sinceridade de alguns camaradas que eu muito estimava. Você não sabe, mas digo-lho agora, a maioria daqueles que trabalharam comigo para um movimento revolucionário que derrubasse a ditadura tinham uma segunda intenção. A eles a queda da ditadura só lhes interessava para que os seus queridos papás voltassem a ser ministros ou fôssem nomeados para isso.
Façam o que quizerem, mas não com o meu concurso. Era o que faltava, eu dar a minha cota parte para o regresso dum estado de coisas que não deixou saudades nem tem o direito de reviver. Perdoe, pelo lado que lhe pode tocar, mas os políticos doutro tempo, os políticos afastados do poder pela ditadura, são os únicos responsáveis pelo estado de atraso em que o país vive.

- Viveu, diga antes, viveu...

- Então, já não vivemos mal? Já não ha misérias, já não ha injustiças?

- Meu amigo, você, preocupado com a sua doutrina política fechou os olhos á realidade, não deu pelo que se tem passado em seu redor. Evidentemente, ainda ha miséria, ainda ha muitas injustiças. Qual é a doutrina redentora que poderá extinguir esses males dum momento para o outro?

- Tem razão! É preciso educar o povo, primeiramente. O maior obstáculo á germinação duma idéia é não preparar o terreno convenientemente para a sua sementeira.

- Absolutamente de acôrdo! Acontece isso mesmo com a semente que o lavrador lança á terra. Se esta não está devidamente preparada aquela produz pouco e mal.

- Ora até que enfim,estamos de acôrdo.

- E tem você feito isso? Têm feito isso os propagandistas das doutrinas que você defende? Como pretendem que o povo acredite que o comunismo é uma doutrina de paz e concórida, de justiça e equidade se a propagam com ódios e com lutas, com sangue e com lágrimas?

- Mas não me disse ainda a sua razão para que eu acredite que o país vive agora menos atrasado! - volveu o estudante a dirigir a conversa para outro ponto.

- É como lhe disse! Você fechou os olhos á realidade e não quiz vêr o muito que tem sido feito nos últimos anos. Depois duma arrumação tanto quanto a nossas possibilidades permitem no campo económico e financeiro, o govêrno cuidou do problema sob o aspecto social. Se quizer, sem dificuldade, sem esfôrço, pode verificar o que ha de novo nos diplomas governativos. A doutrina surge em todos eles com um sentido de humanidade, de paz, de amor, que nós somos levados á conclusão de que se trabalha pelo menos com esta grande vantagem: com verdade e com sinceridade.

- Foi para eu saber isso tudo que me enviou os livros...

- Porque não? Você não é dos tais que negam a sinceridade nos adversários pelo prazer de negar. Se nos livros que lhe enviei você não encontra elementos para se convencer - nem eu tive essa presunção - pode verificar, no entanto, que não é falsa a obra que tem sido realisada e que constitui o início duma verdadeira transformação nos costumes políticos do nosso povo. Servem para você fazer uma análise ao pensamento político que está a interessar a nação e demonstram-lhe o valor da revolução económica que o país sofreu.

- Nêsse ponto, não digo que não... Negar a obra da ditadura sob o aspecto de fomento nacional, é negar a verdade. Mas entre as minhas idéias e as doutrinas do govêrno ha um abismo. Você compreende...

- Não estou de acôrdo! Acho, até, que entre as suas idéias - as suas, oiça bem - e as doutrinas do govêrno ha muita semelhança, muita aproximação.

- Essa é boa! Não o tinha descoberto! Então o govêrno também é comunista?

- Não é isso! Você tem um pensamento político, cuja doutrina pretende estabelecer no mundo mais equidade, mais bem estar. Quere que a sociedade seja feliz ou, melhor, deseja que não haja injustiças. Se isto é comunismo o comunismo é uma coisa boa. Mas onde tem visto você que seja essa a obra dos comunistas? Vai dizer-me que essa doutrina ainda não foi aplicada. Podia citar-lhe um exemplo. Podia invocar o caso presente de um povo onde essa doutrina governa. Não vale a pena. Você sabe melhor do que eu que o comunismo feito governo estabeleceu sôbre a terra a mais ferós ditadura, o mais rigido poder que se conhece a mais falsa igualdade...

- Não falemos nisso! Nunca poderiamos estar de acôrdo. Não me convenceria por muito que o tentásse.Fique contente com esta afirmação que lhe faço: vou abandonar a política. Não lhe digo que nunca mais me dedicarei a essa coisa que entre nós é como as constipações no inverno: ataca toda a gente; mas enquanto não tirar o meu curso, enquanto não tiver uma profissão, para mim a política está em férias.

E num desabafo, Carlos Duarte prosseguiu, desviando, nêsse momento, os olhos da camarada:
- Tenho andado afastado das realidades, concordo. A sonhar, a sonhar, meu pensamento afastou-se para longe, em busca dum ideal que não é o bastante nem o suficiente para viver. Esqueci a família, despresei o amor, isolei-me da verdade, á procura da verdade. Mas não perdi tudo. Encontrei a sua amisade, a sua dedicação. Você tem sido para mim a irmã que eu não tenho, a camarada das horas amargas. Não avalia o meu reconhecimento que reside e residirá eternamente no meu coração. Sou-lhe infinitamente agradecido, Marilia, e não sei como pagar-lhe a minha gratidão.

- Não fale assim! Você não procederia do mesmo modo para mim?

- Talvez não! É preciso ter um coração como o seu para praticar gestos desta natureza, desta grandeza!

- Ora deixe-se de coisas! Prepare a mala para sair, e quando se encontrar livre desta não se meta noutra. Você precisa de fugir de Lisboa por uma temporada. Vá até á sua terra, apanhe o ar puro do campo, abrace os seus. Depois venha tratar de si, do seu curso, da sua vida. É necessário, primeiramente, esquecer êste mau bocado.

- Sei lá! Ás vezes tenho a impressão de que me fez bem vir para aqui. Se soubesse como se aprende a conhecer o mundo, enclausurado o corpo numas paredes nuas...

Carlos Duarte calou-se. Estava triste. Levantou os olhos para a colega e não disse palavra. Marilia mais do que nunca gostou dêsse rapaz. Se êle soubesse que ela o amava não a teria olhado assim, porque a rapariga côrou, envergonhada do pensamento que lhe assáltara o cérebro. Os dois viviam um momento amargo e feliz. Ambos disseram um ao outro, sem palavras, o que ia na alma de cada um. Foi o guarda que evitou a continuação do sofrimento.

Nunca a sua aparição, a intimar as visitas a sair, porque a hora regulamentar tinha expirado, fôra desejada por aquelas duas almas se não naquêle dia.



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X

UM CASAMENTO NA ALDEIA



Era uma tarde encantadora. Na atmosfera evolava-se o perfume das leiras arroteádas, rescendia a campo. O aroma da terra amanhada e dos fenos a perderem a côr de verde, impregnava o espaço.

Muita gente tinha abandonado a faina dos campos para ir á aldeia assistir á passagem do curioso cortejo. Os homens, de enxada ao ombro e pernas á mostra até o joelho, as mulheres de foices na mão e saias encilhadas, a mostrar os "canos" de lã, deixaram o trabalho e correram á estrada a vêr passar os carros com o enxoval dos noivos.

Era véspera de casamento. Nessa tarde, como antiga tradição, meia dúzia de carros de bois, formando cortejo, iam levar de casa dos pais dos noivos para casa destes tudo quanto constituia o recheio do novo lar. Á frente, uma boa "junta" abria o cortejo, puxando um carro repleto de arcas, mesas, cadeiras, tudo de pinho, tudo feito com madeira do "pinhal do rei", a cheirar a cérne. Depois, mais carros com as malas, camas, objectos de cozinha, tudo de madeira sem pintura, porque a do pinhal de D. Deniz não precisa de tinta para durar vidas.

Vinha o cortejo lá adiante, a entrar na aldeia, e já os comentários fervilhavam entre as raparigas casadoiras:
- Dizem que levam sete arcas!
- E três pipas para vinho!
- Não admira, filhos de lavradores, devem ter com que enchê-las!

Ao avistarem os carros, algumas raparigas gritaram:
- Eh! pequenas, aí vem o enxoval da menina Isaura! Venham vêr, venham vêr!

Correram á rua, aquelas que estavam em suas casas, á beira da estrada, e momentos depois o cortejo passava, ronceiramente, entre alas de moçoilas rosadas e saudaveis e de rapazes fortes e másculos, uns e outros tostados pelo sol.

- Belo enxoval!

- Rica casa vão eles ter!

- Que é dos noivos que não acompanham o enxoval? - gritou uma velhota, dando pela falta.

- Foram adiante, aguardar a chegada! Já se não usa isso, tia Ana. No seu tempo é que os noivos seguiam o cortejo, como se acompanhassem um entêrro! Agora está tudo mudado!

- É verdade, pequena! Está tudo mudado! As crianças até levam menos tempo a nascer!

Do grupo partiram risadas, de mistura com exclamações:
- Ora o diacho da tia Ana! Ora o diacho da tia Ana!

Pouco depois era noite. Em frente da casa dos noivos, uma casa feita para o futuro casal, a expensas dos pais do rapaz e da rapariga, estava a findar a descarga dos móveis, o enxoval, que era colocado, cada objecto no seu lugar, sob as ordens daqueles que no dia imediato iam reunir-se pelo casamento.


»



No dia seguinte a aldeia acordou em festa. Não havia foguetes nem música, mas os seus habitantes apareceram quási todos envergando os fatos domingueiros, emprestando á localidade um aspecto que não era próprio em dias de trabalho.

Naquela aldeia, como aliás em outras da região, por muito humildes que sejam os noivos, um casamento tem como convidados quási todos os moradores da terra. É que as pequenas aldeias são constituidas por familias que estão ligadas por laços de parentêsco muito próximo, e por isso não ha meia dúzia de pessoas que não tomem parte numa bôda, seja ela de ricos ou remediados.

Era meio dia e tôda a aldeia estava em preparativos de noivado. Os convidados da familia do noivo reuniam-se em casa dêste; os da familia da noiva dirigiam-se a casa dos pais da rapariga. Á hora marcada, sairam, cada grupo, das casas onde se reuniram e dirigiram-se para a igreja. No trajecto, aliás curto, formaram cortejo, mas não se juntaram. Ficava próximo a repartição do registo civil, por onde passaram a formalisar um acto que para aquela gente é ainda coisa sem valôr, pois entende que o casamento autêntico é o da igreja. O cortejo ia formado como é tradição: á frente o noivo, rodeado dos padrinhos e mais convidados; a seguir, mas não juntos, a noiva, as madrinhas, os amigos e a família. Só no regresso se reuniram, reunindo-se também os convidados de ambas as partes.

A alegria era franca. Durante o trajecto falava-se de tudo. Os homens, nem por ser dia de festa deixaram de se referir aos seus projectos de lavoura, ao ano que decorria de modo a deixar prever uma boa colheita; as mulheres falavam de coisas de interêsse para a sua vida de donas de casa de lavadores ou apenas de trabalhadores de enxada. Não tinham outras preocupações nem outras ambições.

Pelo caminho cruzavam com algumas pessoas que a curiosidade levára até o desfile.

- Deus os salve!

- Muito boas tardes!

- Adeus, primo!

- Olá, como vais tu, ó António!

E nada mais diziam aqueles que entre si trocavam saudações. Nem uma palavra a respeito dos noivos ou do acto para que todos se dirigiam. Naquela aldeia, só depois de regressarem da igreja, depois dos noivos serem casados, é que o povo os felicita, lhe deseja venturas.

No adro da igreja havia muita gente, quási tudo raparigas casadoiras. Abriam alas e os noivos e convidados deram entrada no templo, com a mesma organização que o cortejo levava desde a saída de casa das familias dos nubentes. Só junto ao altar o rapaz e a rapariga se reuniram para a cerimónia.

Á saída da igreja a formação do cortejo já foi outra. Os noivos seguiram á frente de todos os convidados, logo precedidos dos padrinhos e dos pais. Pelo caminho, os padrinhos arremessaram mãos-cheias de confeitos ao rapazio guloso, que se atirava ao chão, sem receio de atropêlos, a apanhar as minúsculas esferas de massa cobertas de assucar. E sempre a reinar a alegria e a algazarra o cortejo lá seguiu até ás residências dos recem-casados. Novamente os convidados se separaram. O que aconteceu com os convidados sucedeu com os noivos. O rapaz foi para casa dos pais dêle, a rapariga para a residência dos seus.

Pouco depois iniciava-se a bôda. Os noivos não ficaram juntos, não ficaram reunidos; cada um presidiu ao jantar nas suas respectivas casas e ao qual assistiam os convidados de cada família. No final era noite feita, o noivo e os do seu séquito dirigiam-se para residência dos pais da noiva. Foram buscar a rapariga para a sua nova morada, para o seu lar. Antes, porém, reunidos todos os convidados e as familias dos nubentes, em presença de todos, competiu aos padrinhos oferecer os seus presentes de noivado, o que foi feito com a maior solenidade. Findo êsse acto, nova cerimónia se realisou, esta, então, com um sabôr infantil, que deu á solenidade um certo pitorêsco.

O noivo foi buscar um cêsto com grandes bolos, bolos descomunais, feitos de massa e assucar. Entregou o primeiro á noiva, depois distribuiu um a cada padrinho e madrinha, outro aos pais dêle e aos da esposa. No final, encontrou-se só com um bolo, que reservou para si. De posse dêle, rodeado por tôda a gente, e obedeceno a antiquissimo costume, exclamou:
- Parti e reparti, fiz a devida repartição, mas tenho, ainda, um bolo na mão! Peço a meus pais, a padrinhos e madrinhas e a Jesus Cristo verdadeiro se me autorisam a dá-lo a quem dei o primeiro.

Em côro, todos responderam com alegria, com entusiasmo:
- Pois dá! - ao mesmo tempo que uma grande salva de palmas abafou a cerimónia.

Passados minutos, os noivos, familias e convidados dirigiram-se para a residência do novo casal, onde se realisou um animado baile, até alta madrugada.

Os foguetes subiram ao ar, riscando a escuridão. Grande vozearia animava a aldeia. Quando os noivos iam a entrar em casa, o pai do rapaz entregou-lhe a chave. Não ficou com ela o noivo. Voltou-se para sua mulher e passou-lha ás mãos, afirmando, nêsse momento:
- Aqui tens esta chave para me abrires a porta, venha tarde ou cêdo, com amigos ou sem eles!

E depois da noiva ter aberto a sua nova residência, a casa foi franqueada a tôda a gente.

Grande surpresa estava reservada áqueles que não tinham assistido ao jantar em casa dos pais do noivo. Este vira reunidos a seu lado as figuras mais importantes da terra. Bernardo da Luz, que se casára naquêle dia com a menina Isaura Mendes, convidára o sr. Alves e o Sr. Duarte. Acontecêra, até, para melhor, que o filho do último, o estudante Carlos Duarte se encontrava na aldeia, desde ha duas semanas, para onde fôra logo que se viu livre da cadeia.

Aqueles que não tinham tomado parte na bôda em casa dos pais do Bernardo de Luz estava surpreendidos, estavam abismados com o que seus olhos viam. O sr. Alves e o sr. Duarte, os dois inimigos que tôda a gente considerava irreconciliáveis, encontravam-se a conversar como bons amigos. E como se isso não fôsse o bastante para fazer benzer de pasmo as mulheres, o Carlos falava animadamente, a um canto da sala, com o professor, que era o namorado da sua antiga conversada - a menina Isabel.

Quási não se acreditava no que todos viam, tal fôra a surpresa. O casamento passára a plano secundário, já ninguém se preocupava com o "arranjo" dos noivos, se eles haviam recebido muitas ou poucas prendas.

O caso, que se resumia a pouco, foi esclarecido por quem dele tivéra conhecimento directo, por aqueles que assistiram ao reatar das relações.

A idéia partira do professor, do sr. Aníbal da Fonseca, que tôda a gente afirmava ir casar em breve com a menina Isabel. Ele conseguira demover o sr. Alves, o seu futuro sôgro, da intransigência que manifestava em voltar a ser amigo do seu adversário político, do sr. João Duarte. Mais do que nunca a idéia da paz e da concórdia era precisa entre os homens da mesma terra, da mesma Pátria. O passado de ódios, de lutas, de vinganças, tinha de ser esquecido, tinha de desaparecer para que todos, unidos em volta do mesmo pensamento, contribuissem para o bem comum. A vitória duma idéia, o êxito duma causa está na união de todos quantos se batem por ela. Se aos portugueses interessa o bem da sua Pátria, a vitória dêsse pensamento só é possível com a união de todos os que nasceram sob o mesmo céu de Portugal. Se a eles, simples habitantes daquela aldeia, interessa o progresso, o futuro da sua terra, devem, para isso, unir-se todos, batalhando para o mesmo fim. As divisões só enfraquecem, só prejudicam o bem colectivo.

O sr. Alves concordava. A seu ver era assim. Mas como obter a garantia de que o seu adversário político estava disposto a esquecer para sempre os seus antigos hábitos? Foi o professor quem sossegou o espirito do pai da sua namorada.

O sr. João Duarte não era o mesmo político doutros tempos. As coisas haviam sofrido uma profunda modificação. Hoje, ninguém, que sinceramente tivesse andado na política, podia negar a influência benéfica dos actos governativos, levados a cabo dum canto a outro do país. O exemplo daquela terra era evidente. Quem era, agora, o político que ali conseguiria um voto a seu favor? O povo era capaz de votar, sim, mas votar para que a política do passado não ressuscitasse. Votar para que não mais desaparecesse de Portugal o pensamento político que salvára a nação - dando á nação o que ela não teve durante tanto tempo: - ordem, sossêgo, paz, - fundamentos estes indispensáveis para a obra que estava a ser realisada em tôda a parte, até naquela aldeia, que não parecia a mesma povoação abandonada, despresada doutros tempos.

Não se enganava o professor. De facto o sr. João Duarte reconhecia que a sua terra, que todo país, tinha sofrido grande transformação. Por tôda a parte o progresso invadia os hábitos. E era tudo feito sem questões, sem discordâncias, quási anonimamente. Noutros tempos não acontecia assim! Cada um gritava para seu lado, cada um dizia que era capaz de fazer melhor, todos se opunham a que outros realizassem e a verdade é que nada se construia.

A chegada do filho exercêra no sr. João Duarte grande efeito. O que seu espírito já aceitava e adivinhava foi completado pelo filho, quando ambos se deram em falar de coisas de política. O estudante foi quem mais aconselhou o pai a deixar-se de questões partidárias. Porque o fazia êle, se também andava metido nessa luta, embora disposto a abandoná-la, como declarou á sua colega, na última tarde em que o visitára no Aljube?

Porque era tão adversário da política do passado como daquela que nêsse momento orientava o país? Porque entendia que o pai só se prejudicava com relações que, ainda, mantinha com antigos correligionários? Talves as duas coisas juntas, especialmente desde que o pai lhe revelára que os amigos lhe tinham levado uma quantia importante, como contribuição para um movimento revolucionário. Afinal, a revolução não se fez e o dinheiro que andaram a arrancar aos correligionários, por todo o país, tinha sido desbaratado por alguns, em prejuiso da maioria, que muito necessitava de auxilio.

Quando o pai lhe descreveu estes factos Carlos, revoltado, exclamou:
- Veja como é essa gente! Por tôda a parte os mesmos! Ainda bem que os conheci a tempo! Nem mais um centavo o pai dá e eu nem mais uma palavra pronunciarei a defender gente desta natureza.

- Sabes, eu nunca supuz que as coisas levassem este caminho. Tu estavas preso, eras da politica dêles, entendi que devia auxiliá-los, porque assim tambem o auxilio se tornava util para ti. Não ha dúvida que o povo não quere ouvir falar em revoluções. A gente aqui tem a prova disso. Quando os jornais chegam com a noticia de que ouve um ou outro a pretender guerrear o govêrno não ha ninguém que não responda: - "Revoluções para quê? Então a gente não está assim melhor do que antigamente, quando todos os mêses ia para o poder um govêrno escangalhar o que o outro ainda não tinha começado?" E olha que o povo não deixa de ter razão. Tu vais vêr a diferença que ha agora, aí por essas terras além. Nem parecem as mesmas aldeias doutros tempos. Lá que estes políticos da ditadura têm trabalhado não é mentira.

E foi por isto, que se tornou fácil ao professor, a certa altura da bôda em casa dos pais do Bernardo da Luz, pedir uns minutos de atenção e exclamar ante a surpresa de toda a gente:
- Nêste momento em que a alegria e a felicidade paira sôbre duas famílias, que se unem pela união de dois dos seus entes mais queridos, não fica mal contribuir para a união de todos os que vivem na terra. Vistas bem as coisas, os povos são grandes famílias, divididas em várias familias. Nesta aldeia temos êsse exemplo... Os seus habitantes são quási todos aparentados. Quere dizer, têm-se constituido familias com elementos doutras, que já eram parentes. Mas se assim não acontecêsse restáva-nos em cada um de nós o sentimento pátrio. Se o filho não esquece a mãi, se nunca a deixa de amar, também não ha português algum capaz de esquecer a sua terra, que não tenha no coração o amor á sua Pátria. Para que havemos, pois, nós, aqui, nesta aldeia encantadora, de andar de mal uns com os outros, ser inimigos, quanto todos o que desejamos é o bem da terra e o bem de cada um?

O professor não aludira, ainda, ao caso que o levára a falar daquela maneira. No entanto, entre a assistência trocávam-se olhares de entendimento. Todos fixavam o sr. Aníbal da Fonseca, á excepção do sr. Alves e do sr. Duarte que, muito sérios, olhavam o chão, envergonhados de verificarem o resultado das palavras do professor no auditório. Outro tanto não acontecia com o estudante que enfrentando o orador, se animava á medida que as palavras dêle lhe davam a perceber a intenção da sua atitude.

E prosseguiu, interessando todos os convivas:
- Os povos para serem felizes têm de viver em paz. Ora, para os povos viverem em paz é preciso que a paz exista entre os homens. É verdade que ha muito homem que apregôa estes princípios, mas contribui para a guerra entre os homens e entre os povos. Temos de ter cautela com elementos dessa natureza. Não são sinceros nas suas intenções, nas suas doutrinas, que mascaram de humanas, quando não passam de barbaras. Está presente uma pessoa que é devotado amigo da paz, do bem estar do povo, e que pelas suas idéias de justiça e de concórdia - embora erradamente difundidas - sofreu já as consequências duma atitude contraproducente á própria paz e concórdia que defende. Ele mais do que outro entre nós pode levar a cabo o que eu proponho nêste momento! A esta mêsa sentam-se duas familias que foram amigas e agora não se falam, embora não se odeiem - porque nem uma nem outra conhecem êsse ruim sentimento! O sr. Alves e o sr Duarte que a todos nós merecem a maior estima; muito mais ficarão a merecê-la, desde que se abracem, desde que voltem a confraternisar. Os dois, sendo amigos, podem contribuir mais para o progresso e bem estar desta terra do que a continuarem a não se dar, cada um a trabalhar para seu lado.

Houve aplausos. Sim senhor, era assim mesmo! Os dois proprietários, unidos, até contribuiam para que acabassem as pequenas divergências entre os trabalhadores que ganhavam a sua vida ora servindo um, ora servindo outro.

E como nem um nem outro se opôs ao lembrado pelo professor os dois inimigos reconciliaram-se, sem uma palavra, porque a emoção tornára-os mudos.

Carlos Duarte ficou satisfeito. Achou bem e foi cumprimentar, respeitosamente, os da familia do sr. Alves, ao qual apertou a mão. E porque o caso a todos déra para comentários ninguém viu o estudante limpar uma lágrima teimosa que lhe deslisára pelas faces.

Não era para estranhar, pois, que aqueles que dêste caso não haviam tido conhecimento, se alarmassem ao ver os dois inimigos doutróra a conversar animadamente na sala onde o baile dos noivos decorria com entusiasmo.

Durantes os dias que o estudante se demorou na terra foi o professor o seu companheiro inseparável. Ambos conversavam largamente, ambos davam passeios pelos arredores, em que também tomava parte, por vezes, o padre. Falavam de tudo, mas muito mais das doutrinas que os homens têm criado no sentido de dar ao mundo a felicidade que o mundo não tem conhecido.



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XI

DO SONHO A REALIDADE



Carlos Duarte regressára á capital, onde ia continuar o seu curso. Vivia, agora, isolado de convivios que ainda ha pouco eram quási a razão da sua existência; passava os dias sem a camaradagem doutros tempos. Quem o quizesse encontrar teria de procurá-lo na pensão. Ali estudava a matéria do seu curso e as doutrinas sociais porque se apaixonára, no calor entusiástico do meio académico, sem ter tempo para as analisar convenientemente. Estava mais homem, tinham nêle despertado as noções dos deveres e dos direitos e os princípios da responsabilidade. Nem só os anos dão esta experiência; os gestos irrefletidos, as atitudes tomadas sem devida ponderação servem para que tenhamos, antes da idade nos dar experiência, um sentido mais exacto das coisas e dos homens. Acontecia assim com os estudantes. Á medida que o seu espírito mais preparado estava para compreender as doutrinas que o interessavam, mais alarmado se mostrava com a sua atitude revolucionária. Surpreendia-se, agora, ao verificar o êrro em que incorrêra, tanta vez, não estudando o problema sob o aspecto geral, para se embriagar, sómente, na ideologia que outros como êle espalhavam de cór, sem base sólida, portanto sem sentido crítico.

E depois de muito estudar, de muito ler, cada vez mais interessado em couraçar-se dum corpo sólido de doutrinas, chegou á conclusão que havia interêsse por parte de certos elementos em criar revoltados e não o desejo de produzir revolucionários.

Não entendia, agora, assim as coisas. A missão daqueles que pretendem estabelecer no mundo uma melhor sociedade não tinha nada a lucrar com o errado princípio. Fomentar a revolta, aumentar os revoltados, é contribuir para que a paz, a justiça, a equidade, jamais sejam princípios aceitos, acatados, defendidos, por aqueles que pretendem estabelecer no mundo um regime ideal, sem lutas nem ódios, sem explorados nem exploradores. O mesmo não acontecerá se, em vez de revoltados, criarmos revolucionários. O revolucionário é aquele que dia a dia, hora a hora, acompanha a evolução das coisas e dessa evolução tira o melhor proveito em benefício colectivo; é aquele que não pára o seu pensamento numa idéia ou numa doutrina e, agarrada a ela, fica até morrer, muito convencido de que foi sempre um revolucionário.

O revoltado não tem idéias, não sabe qual é a doutrina que mais utilidade pode trazer á sociedade. É revoltado hoje como o será amanhã. Está hoje contra o presente como amanhã estará contra o que existir, mesmo que seja o que hoje pretende ver realisado.

Carlos Duarte pensava assim, e não paráva de estudar, de analisar, de criticar. O seu descontentamento com êle próprio - não pelo que estava disposto a fazer, mas pelo que tinha feito - era cada vez mais visivel. Ele verificava que essas idéias de revolta eram acarinhadas por individuos que são estruturalmente adversários das classes que pretendiam revoltar. Como era possível haver capitalistas, financeiros, que contribuiam para a propaganda duma doutrina subversiva? Como era possível que certos burgueses alimentassem a propagação duma idéia que tinha por finalidade a extinção da própria burguesia? Não, não podia haver sinceridade nas intenções desses elementos! O problema era demasiadamente simples para êle ter ilusões. As idéias marxistas dividiram o mundo em duas categorias, em duas classes que se odiavam; os burgueses e os proletários. Á primeira atribuiu-se a exploração da segunda. Uma minoria dominava a maioria. Aquela era composta dos senhores da terra, esta agrupava os escravos - como em tempos recuados. Foi fácil criar a luta, pondo o problema desta maneira. E o que era simples questão de idéias, de doutrina, de princípios, tomou o aspecto de guerra. A solidariedade entre os homens desapareceu, foi substituida pelo ódio, criado necessariamente pela divisão. Onde estava um burguês estava um inimigo do operário; este era a vítima daquele, mesmo que a sua desgraça tivesse causas superiores aos homens e ás doutrinas. E como o proletariado tomou posição adversária da autoridade, como se desinteressou da causa pública, fazendo perigar a ordem, a burguesia, respondeu aos ataques dos revoltados com a força que era a garantia da independência do Estado, - arbitro das duas correntes, que muita vez deu razão ao capital, quando ela pertencia ao trabalho

Vantagens? Resultados dessa orientação que alguns pretendem que prossiga para eternamente haver explorados e exploradores? Carlos Duarte interrogava-se a êle próprio e não dava resposta ás suas dúvidas, que aliás se iam desanuviando.

Não, o problema não podia ser posto como o estavam a fazer. A continuar, hoje, como o era ha um século, sómente serviria para prolongar a luta sem vitória que se arrastaria, assim indefinidamente. Depois, o mal era outro, ainda! Pelo que dizia respeito ao nosso caso, o estudante não podia compreender a ilusão de certos elementos. Não encontrava motivos nem causas sérias para que as classes trabalhadoras despresassem as relações com o Estado - agora que êste era servido por uma doutrina corporativa - para as manter ou desejar manter como os principios individualistas - doutrina que destruiu o que de bom havia na solidariedade económica, que substituiu a moral tradicional pela moral do negócio.

Carlos Duarte deixou-se nêste momento de mais locubrações. Estava cansado e, além disso, aproximáva-se a hora de ir conhecer o senador sr. Braz de de Sousa. A filha, a sua colega Marilia, tinha-o informado, na véspera, que o pai o receberia naquela tarde, "com muito prazer".

Levantou-se, foi á janela apanhar o fresco que vinha do lado do Tejo. Ao voltar para dentro do seu quarto pegou no jornal que ainda não tinha lido com minúcia. Seus olhos depararam, nessa altura, com uma noticia que o interessou. Tinha o título "A luta de classes" e tratava-se do resumo duma conferência. Leu com curiosidade:

"...Só viviamos de promessas, de palavras, e por isso não admira que o péssimismo se apoderâsse de todos nós. Não é de estranhar, pois, que hoje, ao verificarem as realidades da hora presente, muitos suponham viver num sonho. A esses que, por uma errada visão, não aceitam nem acreditam na sinceridade da obra que está a ser realisada, temos nós, nós que vivemos para uma sociedade melhor, nós que desejamos mais equidade, menos desigualdade entre os homens, temos nós de lhes demonstrar que a sua atitude de alheamento ou de combate é, nêste momento, uma atitude retrógrada - e como tal contraria ao progresso do bem colectivo. Esses elementos são os maiores sustentaculos do capitalismo - do capitalismo que não põe a sua acção ao serviço da nação, da comunidade.

"As classes trabalhadoras tinham, no chamado regime liberal, o direito de fazer gréve. Dizem que era uma regalia, aqueles que não aceitam as novas doturinas, os novos conceitos de política social. Era, sim, era uma regalia, mas para que serviu ela ás classes que se declaravam em gréve, em gréve que a lei lhes permitia fazer? Acontecia sempre, que nem o Estado atendia os grévistas nem os patrões negociavam com eles, enquanto durásse a gréve. Quando os operários se revoltavam, porque a lei lhes dava êsse direito, os governos respondiam-lhes com a força pública, que nem sómente os prendia, porque também os fusilava.

"Havia direito á greve, direito á revolta, havia tudo isso, sim, como táctica contra o proletáriado. Depois numa gréve, o trabalhador saía dela mais fraco, mais combalido, mais escravo. A táctica era esta - enfraquecer as classes.

"Os anos e a prática demonstraram que essa liberdade - falsa liberdade - que as classes trabalhadoras gosavam era contraproducente aos seus interêsses, assim como a luta que daí nascia sómente geráva ódios e mal entendidos. Para o operário o patrão era um explorador do seu trabalho; para o patrão, o operário não passava dum elemento de desordem. Dentro da actual solução corporativa o problema resolve-se sem mentiras, sem ódios e sem revoltas. Acabou a luta de classes que foi substituida pela colaboração dos elementos que constituem valores iguais: - o capital e o trabalho."

O estudante, cada vez mais interessado, prosseguiu na leitura:

"Para essa colaboração necessário se torna que as classes trabalhadoras se agrupem nos seus sindicatos que são organismos colectivos com base juridica e com função negociadora nas relações entre o patrão e o operário. O Estado fiscalisando, coordenando, legalisando essas relações, contribui decisivamente para que, no futuro, desapareça a antipática designação de capital e trabalho para haver, simplesmente colaboradores de uma obra que pertence a todos.

Mais adiante lia-se êste trecho:

"Ninguém bem intencionado pode acreditar que, a voltarmos ao passado, á luta de classes, ao sindicalismo revolucionário, o operariado conseguiria conquistar mais regalias, adoptando os velhos métodos. Só o acreditam e só o defendem aqueles a quem a política cegou e, em vez de defenderem os seus legitimos interêsses, apoiam ou auxiliam grupos partidários com uma única miragem: - a conquista do poder.

No dia em que antigas fórmulas de govêrno fôssem aplicadas entre nós, os trabalhadores teriam, naturalmente, direito de fazer gréve, mas que direito seria conferido aos patrões? O direito de despedirem os operários - especialmente aqueles que mais se evidenciássem na gréve. Quanto maior se afirmásse a guerra do trabalho ao capital, maior seria o poder de defesa da burguesia. O exemplo não vai a distância. Se os operários se apetrechavam para a luta, o capital defendia-se dessa mesma luta, mais apetrechado ainda. A vitória pertenceu sempre aos mais fortes, e os operários perderam porque eram os mais fracos. Desde que ha luta é assim, ha vencidos e vencedores. O capital e o trabalho constituem riqueza idêntica, tanto vale um como o outro. São elementos de cooperação, não são inimigos. E a actual solução corporativa coloca ambos em campos iguais, sob a definição de que "o Estado português não é burguês como não é proletário."

A concluir, a noticia da conferência punha na bôca do orador estas frases:

"A luta de classes deu-nos momentos angustiosos. Era a guerra, era o sangue, era o luto. Para se opôr á guerra fomentada pelo Confederação Geral do Trabalho criou-se a Confederação Patronal. E então viu-se perfeitamente o resultado dessa luta. Por cada patrão ferido na rua, a tiro ou á bomba, caiam varados dois ou três operários. Nenhum amigo da paz, da ordem, do progresso, pode, sinceramente, desejar o regresso a êsse tempo, que foi o tempo da caça ao homem pelo homem."

Ao terminar, Carlos Duarte dobrou o jornal e foi guardá-lo. Naquela pequena noticia havia algumas afirmações que o fizeram meditar. E foi meditando nelas que se preparou e saiu a caminho da casa do pai da sua colega.



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XII

NA RESIDENCIA DO SENADOR



Durante tôda a manhã, Marilia de Sousa não parou. Aproximava-se o momento ambicionado de vêr em sua casa o camarada que muito estimava, a quem muito queria, ao quál dedicava uma profundissima amisade. Naquela rapariga déra-se um fenómeno pouco vulgar. Não tinha começado a amar Carlos Duarte para depois lhe dedicar amisade. Pelo contrário, principiára por lhe ter amisade para depois o amar. Que era senão amor aquela sua atitude de pretender que o camarada abandonásse o que se designou por política? Que era senão amor o carinho que lhe devotava, muito especialmente desde que o estudante fôra preso? E era amor, talvez paixão, o calor que tomava a defender o seu camarada, a enaltecê-lo, a elogiá-lo. E o que qualquer outra teria resolvido sem a intervenção do pai, desejáva ela vê-lo solucionado precisamente com o seu auxilio.

Gostava de Carlos com todos os seus defeitos e com todas as suas qualidades. Nada a impedia de amá-lo, nem mesmo que êle não a amásse. Mais por amisade o que por amor, Marilia desejava que seu pai contribuisse para que o camarada abandonasse uma doutrina política que era feita de paixões e não da análise serena e franca dos princípios fundamentais das sociedades.

Naquela manhã, Marilia meditou bem na responsabilidade do seu acto, provocando o encontro do pai e do camarada. O primeiro não manifestava relutância pelas idéias do segundo, cégo como até ali andava com a paixão partidária; o estudante já lhe afirmára que ia abandonar a política, enojado com a falta de lealdade e de sinceridade dos seus correligionários, postas á prova em mais duma circunstância. Não valia a pena, pois, o encontro, sob êsse aspecto. Mas a rapariga suspirava pela hora marcada por muitas outras razões. Talvez fôsse o camarada quem agora, levasse o pai a modificar a sua atitude. E nisso levou algum tempo a meditar, certa de que duma maneira ou doutra havia de mostrar ao senador quanto errado andava êle pretendendo dar vida a um cadáver...

Quando o pai ia a sair, com a promessa de estar a horas de receber o estudante, Marilia disse-lhe:
- O papá não deve referir nunca o caso da aliança nem tão pouco as intenções de cada parte, porque o meu colega ignora tudo isso, ainda.

Fica descansada! O que falarmos não pode ser de maneira nenhuma em referência a casos especiais. Abordaremos as questões duma maneira geral. Fica tranquila que o rapaz ha de vir cá para o nosso lado. E tu gostas dêle a valer... estou desconfiado.

- Quero-lhe como a um irmão!

- Até logo!


»



Na pequena sala, bastante confortável, sem estilo, mas mobilada com gôsto, estavam os três, tomando chá. O senador Braz de Sousa analisava, por detrás das lunetas, a sua visita daquela tarde, o estudante Carlos Duarte. Este, sem acanhamento, em termos corretos, ia respondendo a uma ou outra pregunta do dono da casa, enquanto Marilia, sentada á vontade, de chávena na mão, saboreava o chá, que uma criadita azougada servia.

- Conheço a sua terra! Passei lá ha muitos anos! É pitoresca, como aliás acontece a tôda a nossa provincia! Nunca esquecerei a maneira de vestir das mulheres da sua aldeia Muito curiosa, na verdade! Mas são terras onde o progresso não chega, onde a vida é sempre dificil...

Carlos Duarte ouvia falar assim o senador e não respondia. Meditava nas palavras que tinha de pronunciar, como se cada frase tivesse de passar por apertador crivo. A tudo quanto o senador disse, respondeu, sómente:
- Se hoje voltásse a Monte Real não conhecia a terriola doutro tempo. Está transformada, progrediu, vai acompanhando a evolução tanto quanto é possível a uma aldeia.

Marilia que a si própria havia prometido interromper os dois, fôsse em que altura fôsse, não se conteve e exclamou:
- E o que acontece na sua terra sucede em todo o país. As aldeias vão criando hábitos civilisados. Ainda bem, é necessário dar á provincia o que ela tem direito. Durante muitos anos sómente a cidade mereceu a atenção dos poderes públicos. E o resultado não podia ser mais funésto. Para a cidade correram aqueles que nunca deveriam ter saido da aldeia. Era legitimo, vinham á procura do bem estar que lhe faltava...

Carlos não a deixou prosseguir, interrompendo a colega, a sorrir:
- Até eu deveria lá ter ficado! Dava melhor lavrador do que vou dar como bacharel em direito...

O seu caso é diferente! Não se trata de si...

Eu sei; mas, creia, também por mim, sinto que você tem razão. Ha doutores a mais e agricultores a menos. Ha dias, tive a demonstração de abundância de doutores nesta cidade. Descia o Chiado e houve um individuo que gritou: - "Pst, pts, ó doutor, ó doutor!" Não fazem idéia! Quási todos quantos desciam e subiam a rua eram doutores. Mais de duas duzias se voltaram para o ponto onde o outro chamava a supôr que era com eles. Felizmente que eu ainda não sou doutor!

Marilia sorriu. O senador ficou silencioso e bebeu mais um gole de chá. Pousou a chávena e dirigiu-se ao estudante:
- Minha filha tem falado de você com muito entusiasmo. Estou informado de que é um magnifico estudante, mas o que ela não lhe perdoa é você ser comunista. Já lhe disse que isso são idéias de gente môça, que se desfazem com a experiência da vida. Respondeu-me que não; sei lá, disse-me tais coisas que eu supuz vir conversar hoje com o maior ferrabraz dêste mundo...

- Papá, eu não exagerei a êsse ponto! É verdade, disse-lhe que o Carlos não precisava de andar metido em questões políticas para ter um magnifico futuro, que é dos colegas mais distintos, etc.

- Afinal, ambos se enganaram! Nem sou o ferrabraz que supunha nem o estudante distinto que a minha ilustre colega pretende que eu seja. Sou, sou, sei lá como classificar-me a mim próprio. Sou uma pessoa que desejaria ver a sociedade melhor organizada, que nela não houvesse tanta desigualdade, tanta injustiça. Ambiciono paz no mundo, concórdia, entre os homens. Sei lá o que desejaria... Talvez como Platão escreveu nas suas "Leis", eu ambiciono um mundo onde não haja muita riqueza para que não exista muita pobreza, pois quanto maior fôr a primeira maior será também a segunda.

- Mas assim têm acontecido através dos tempos. A evolução política tem trazido pouco a pouco uma melhoria constante aos povos. Nem tudo se pode realisar num dia...

- Evidentemente, não vivemos como há duzentos anos, mas podíamos viver melhor, se a ambição não dominasse, ainda hoje, a maioria dos homens, se todos fôssem mais sinceros nos seus ideais, se aplicassem nos seus actos os principios de paz das suas doutrinas. Não vemos isso e daí a razão de muita injustiça.

- Assim é em parte, não há dúvida! Veja o que acontece entre nós, o que se dá actualmente. Num regime democrático, em plena Republica, homens a pretenderem levar as coisas para principios diametralmente opostos á própria essência da idéia republicana. A furia ditatorial ha de passar e então você encontrará a fórmula mais próxima das suas aspirações.

- Se me dá licença eu discordo...

- Discorda de quê?...

- De que as idéias democráticas possam realisar a política de equidade de que os povos estão faltos.

- A doutrina democrática é mais consentanea ás necessidades das massas populares, ás próprias classes operárias, do que as idéias chamadas nacionalistas que estão em moda agora. Nisto não está em desacordo comigo, certamente!

- Eu discuto factos com factos! A democracia, melhor, os chamados principios da revolução francesa, deram-nos duas categorias para dividir os povos, criáram duas classes: - a burguesia e o proletariado. Dentro dos principios económicos arrumámos essas duas classes na designação de capital e trabalho. Estava certo! Mais não podiamos exigir a essa revolução magnifica que abriu lindos horizontes aos povos. Mas o que aconteceu? Aconteceu que a chamada democracia, em vez de acautelar os interésses das duas classes, em vez de proteger uma e outra, porque assim o exigia o interêsse comum, se colocou sómente ao lado da primeira, preterindo a segunda. Agitando a bandeira do sufrágio universal, dos principios electivos, esqueceu, propositadamente, o povo, não o educou, para que êle não pudesse medir forças com a burguesia, usando da eleição.

- Perdão, está partindo dum principio errado! O sufrágio, o direito ao voto, é concedido ao povo!

- Mas como vota o povo? Vota conscientemente? Vota como entende e quere? Não! Todos sabemos que êsse direito é uma maneira de mascarar o principio que êle representa. O povo não pode votar em quem entender. Tem de votar em quem lhe apresentam, para o que lhe dão um pedacito de papel com os nomes de individuos que nunca viu, que não conhece...

- Continua a partir dum errado principio! Seria assim, se a nação não estivésse organisada em grupos, cuja ideologia política é livremente escolhida pelos cidadãos.

- Eu sei! Mas também sei que nem esses grupos constituiram o sentir dos cidadãos que nêle se agrupavam nem os seus dirigentes se preocupavam com os interêsses da grei, os quais colocaram sempre em segundo plano.

- Nêsse caso, você defende os princípios que orientam nêste momento, a política portuguesa...

- Nem os defendo, nem os atáco! Disse-lhe que discutia factos com factos. Desta forma eu cito a falência do sistema parlamentar para o pôr em confronto com o critério da nomeação. Estou de acôrdo com um dos defensores da actual situação que afirmou que o principio electivo é apenas um critério de formação dos orgãos políticos. O mesmo acontece com o critério da nomeação. Liberdade política é aquela que permite ao individuo colaborar activa e permanentemente na governação pública. Este princípio encontra-se previsto no nosso actual sistema político, pois o individuo colabora na vida pública através do sindicato, do grémio e da corporação.

O senador Braz de Sousa estava pouco satisfeito com a directriz que o estudante dera á conversação. Se não fôra por melindre teria terminado com o diálogo. Mal humorado, mas sem o deixar perceber, respondeu-lhe:
- Não admira que defenda esses principios! Eles têm muito de comunismo. Na Russia também deve ser assim...

Carlos Duarte, ante o contentamento da colega, que sentia prazer em ver o pai contrariado, retorquiu: - Eu não defendo a política do comunismmo russo. Acho que o comunismo faliu estrondosamente com a experiência russa. Sómente por isso, bemdigo o bolchevismo. Ele veio mostrar a todos nós, áqueles que se interessam pelo bem da colectividade, áqueles que lutam por uma melhor sociedade, que a revolução social não pode ser feita pelo figurino russo.

Marilia de Sousa resolveu intervir nesse momento. estava ansiosa por falar, mas não achára oportunidade para isso. E exclamou:
- Absolutamente de acôrdo! Os povos têm de ser governados segundo as suas tradições, as suas condições. Uma nação só se governa bem, quando as leis que regem traduzam as suas aspirações, encarnem o meio em que foram concebidas e exprimam os problemas fundamentais do povo. Ora os problemas variam de povo para povo nos seus aspectos mais delicados. Como pode dar resultados um regime que imite outro, um regime que corresponda a outro meio. a outra nacionalidade?

- Tu és suspeita! - respondeu o pai. Defendes apaixonadamente o actual sistema político. O teu colega não está eivado dêsse mal... A não ser que o contamines...

- Não sou faccioso! Por isso não tenho dúvidas em modificar as minhas opiniões, quando verifique que dessa mudança advêm beneficios á colectividade.

Tenho idéias definidas, mas não as subordino a um rigorismo hermetico. Ninguém que sinceramente queira acompanhar a evolução pode dizer que as suas opiniões de hoje são as melhores daqui a alguns anos. O mundo caminha sempre, não pára.

O senador voltou a falar. A ver se vencia o estudante, exclamou:
- Mas, afinal, como quere você fazer a revolução social?

- Estabelecendo no mundo a lealdade, a sinceridade, o amor, a paz. E tudo isto só é possível desde que não se verifique a guerra entre as classes que constituem a sociedade. O principio de que o proletariado só deixará de ser explorado pelo capital quando domine este, ou o extinga, é um principio falso que apenas tem servido para aumentar o poder da burguesia.

- Mas, então, não é anti-burguês?

- Sou, desde que a burguesia criou a plutocracia. A revolução que eu desejo tem por fim libertar as massas populares da plutocracia como a revolução francesa teve por missão libertás-las do privilégios da nobresa.

- E quere conseguir tudo isso sem guerras nem lutas?

- É possivel fazê-lo, a não ser que o capital não veja o caminho errado que tem trilhado. Por isso sou pelos governos que entre o capital e o trabalho estabelecem o entendimento. O êrro da democracia foi permitir o falso conceito de que capital e trabalho são inimigos, quando constituem valores idênticos, necessários os dois á mesma obra. Desde que sejam tratados em igualdade de circunstancias, cada um no seu campo, a revolução é mais fácil e mais lucrativa. Que nos vale a guerra, a luta, se a vitória pertencerá sempre ao mais poderoso? E o mais poderoso - deixemo-no de ilusões - é sempre aquele que tem a seu lado o Estado. Desde que êste não defenda sómente o capital, o trabalho tem a sua missão facilitada.

- Seria preciso que o Estado désse garantias da sua imparcialidade!

- É verdade! Será necessária essa garantia e nunca o trabalho a teve até ha pouco. Culpa de quem? Culpa da falta de lealdade com que os governos têm usado. Perdôe que o diga, mas, nêsse capítulo, nunca se verificou tanta falta de lealdade como nos chamados governos democráticos. Constituídos por elementos que se diziam liberais, que odiavam toda a qualidade de ditaduras, cada um deles era o maior ditador, não só em suas casas, como para os seus operários. Há exemplos frisantes...

O senador mordeu os lábios. Não podia continuar a permitir uma discussão daquela natureza. E bramou cada vez mais mal humorado:
- Tive alguns operários ao meu serviço que, logo que lhes dava um lugar de mando, se tornaram mais déspotas do que os patrões. Já vê que o mal...

- Acredito que seja assim. Alguns que se dizem comunistas ou coisa parecida revelam-se dia a dia, hora a hora, autênticos ditadores para áqueles seus camaradas que trabalham sob as suas ordens. É por isso que os governos são necessários para orientar, fiscalisasr, coordenar, as relações entre operários e patrões.

- Afinal o meu presado estudante é um defensor dos principios políticos do momento...

- Defendo uma sociedade mais justa. Se isto é ser defensor da política actual, creia que não fui eu quem aderiu a essa política. Naturalmente foi a experiência que levou os homens do govêrno a ir ao encontro daqueles que tão abandonados estiveram por toda parte dum sistema que não deu á nação uma unica lei de carácter social...

O senador Braz de Sousa levantou-se. Era a indicação para o estudante se erguer. Carlos Duarte assim fez. Então o velho político exclamou:
- Eu dei o melhor do meu esforço a uma idéia que consubstanciava as aspirações mais belas de fraternidade, de igualdade. Não deram resultado? Foram mal interpretadas? O futuro o dirá! Hoje não estou em idade de lutar mais por elas, não quero estudar outras a ver se são melhores. Você é novo, vocês são novos (e incluiu a filha para a qual olhou), trabalhem pelo o futuro e verão que o melhor que ha a fazer é cada um tratar de si. Digo-lhos eu que tenho experiência própria. Não vale a pena a gente preocupar-se com os outros...

O estudante não se conteve e redarguiu:
- Foi êsse principio individualista que levou o mundo á luta, á guerra, e contribuiu para tanta injustiça, tanta desigualdade.

Pouco depois, na casa do senador Braz de Souza, havia nova conferência. Desta vez era apenas êle e a filha quem conversava:
- Afinal, o teu colega está mais situacionista do que comunista. E andávas tu aflita a querer salvá-lo, a pedir-me que lhe désse conselhos. Não é dos que tomam conselhos e eu não estou disposto a perder tempo com gente desta natureza.

- Sim, papá, é verdade! Quando lhe falei no meu colega nunca supus que êle tão depressa compreendêsse que andava mal, defendendo a desordem, a luta. E o papá quando deixa, também, os seus compromissos de carácter político? Não queira alimentar um estado de coisas que a triunfar seria a desordem, a confusão. Prometa-me que vai abandonar o partido...

- Descansa, minha filha! Não mais me verás metido em conspirações, em política. Tenho aprendido bastante nos últimos tempos. Vê tu, parece castigo, o que me aconteceu desde que alimentei esperanças de contribuir para a queda da ditadura. A filha tomou orientação política contra o pai. O estudante, que eu supunha vir a ser um cooperador da minha doutrina, está mais perto das idéias que eu combato do que daquelas que defendo. Se assim continuo, arrisco-me a ter, amanhã, um neto que também seja contra o avô...

Marilia sorriu e correu para junto do pai. Lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o muito, contente e alegre por ter vencido a batalha - a única batalha em que ela entrava: - a batalha do amor...

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EPILOGO



Naquêle ano, as termas de Monte Real foram imensamente frequentadas. Durante o mês de Agosto a pequena e encantadora aldeia viveu em grande actividade, em permanente movimento. Dir-se-ia que não estávamos numa terriola da provincia, onde não chegam os efeitos dos grandes centros. A aldeia das margens do Liz foi assaltada por centenas de famílias da cidade. E onde paravam as gentes dali? Sumiram-se, desapareceram perante a invasão das gentes de fóra? Assim parecia, sem dúvida, a quem não observásse convenientemente o caso. Afinal, tôda a gente fazia a sua vida de sempre. Se a sua presença não era tão notada como noutra época a explicação disso encontrava-se precisamente no grande número de familias da cidade, que invadira a aldeia, dando-lhe aspecto festivo, alegre, civilisado...

Um dia realisou-se cerimónia importante. Foi inaugurado o telefone. É verdade, o telefone naquela aldeia. Tôda a gente acorreu á cerimónia, a ver como seria aquilo. Foi rápido, sem aparáto. Pelo menos, assim o descrevia uma mulhersita a outras que tinham chegado tarde:
- Oh! mulheres, aquilo até parece coisa do demónio! Vejam vocês que foi assim: - deram a uma manivela, uma campainha tocou e, depois, o homem disse: "está lá, está lá". Pronto o "talifónio" começou a falar. A falar por uns fios pregados nuns paus de eucalipto. Então isto não é mesmo por artes do demónio?

Carlos Duarte que ouviu a explicação sorriu e olhou para sua esposa. Marilia de Sousa sorriu também. Então, o antigo estudante, disse:
- Vês tu, o que é a falta de educação? O progresso invade os hábitos dos povos mais depressa do que dão a estes os meios indispensáveis para compreenderem o mesmo progresso. Não é de estranhar que tivésse acontecido, ainda ha pouco, o que o meu pai nos descreveu: - meia duzia de homens destruiram a máquna de debulhar trigo, por lhe atribuirem a sua falta de trabalho.

Marilia não respondeu mas concordou. Marido e mulher seguiram em direcção ao alto da rainha santa, onde a esposa do novel advogado gostava imenso de passar uns momentos a ver o sol declinar por detrás da mancha escura do "pinhal do rei."

Quando os dois esposos iam a subir a ingreme ladeira, o sr. João Duarte e o sr. Alves encontráram-se cá em baixo. O último informou o primeiro:
- Seu filho vai aí adiante com a esposa! Um belo par, um lindo casal!

Deixe lá, meu caro amigo, sua filha e o professor não lhe ficam a dever coisa alguma. Muito amigos, os dois, quando passam, levam-nos a olhá-los com embevecimento.

- Não há dúvida! Não há dúvida! A gente gosta de ver os filhos assim. São a nossa felicidade, a nossa alegria!



Monte Real - Setembro de 1935

Tomé Vieira            




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