"Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na porta, Entre, palavra que foi rogo, não ordem, e quando a criada abriu, mal a olhando, disse, A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e calou-se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular, por pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica, e a gramática, assim, Agradecia limpasse, porém o entendeu sem mais poesia a criada, que saiu e voltou com esfregão e balde, e posta de joelhos, serpeando o corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às madeiras enceradas convém, amanhã lhes deitará uma pouca de cera, Deseja mais alguma coisa, senhor doutor, Não, muito obrigado, e ambos se olharam de frente, a chuva batia fortíssima nas vidraças, acelerara-se o ritmo, agora rufava como um tambor, em sobressalto os adormecidos acordavam, Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, poderia ter dito doutra maneira, por exemplo, e bem mais alto, Eis-me aqui, a este extremo autorizada pela recomendação do gerente, Olha lá, ó Lídia, dá tu atenção ao hóspede do duzentos e um, ao doutor Reis, e ela lha estava dando, mas ele não respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussuro, quem sabe se para não o esquecer quando precisasse de voltar a chamá-la, há pessoas assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em verdade, são papagaios umas das outras, nem há outro modo de aprendizagem, acaso esta reflexão veio fora do propósito porque não a fez Lídia, que é o outro interlocutor, deixemo-la sair então, se já tem nome, levar dali o balde e o esfregão, vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, é um jeito de lábios que não engana, quando quem inventou a ironia, teve de inventar o sorriso que lhe declarasse a intenção, alcançamento muito mais trabalhoso, Lídia, diz, e sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados ao passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira  »  , como estando, Tal seja, Lídia, o quadro  »  , Não desejemos, Lídia, nesta hora  »  , Quando, Lídia, vier o nosso outono,   »  , Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio   »  , Lídia, a vida mais vil antes que a morte,   »  , já não resta vestígio de ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os dentes, quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto agora ou doloroso esgar se diria em estilo chumbado.
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