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Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
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OUTRAS ODES DEDICADAS A LÍDIA

- de acordo com citação em O Ano da Morte de Ricardo Reis -


"Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na porta, Entre, palavra que foi rogo, não ordem, e quando a criada abriu, mal a olhando, disse, A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e calou-se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular, por pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica, e a gramática, assim, Agradecia limpasse, porém o entendeu sem mais poesia a criada, que saiu e voltou com esfregão e balde, e posta de joelhos, serpeando o corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às madeiras enceradas convém, amanhã lhes deitará uma pouca de cera, Deseja mais alguma coisa, senhor doutor, Não, muito obrigado, e ambos se olharam de frente, a chuva batia fortíssima nas vidraças, acelerara-se o ritmo, agora rufava como um tambor, em sobressalto os adormecidos acordavam, Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, poderia ter dito doutra maneira, por exemplo, e bem mais alto, Eis-me aqui, a este extremo autorizada pela recomendação do gerente, Olha lá, ó Lídia, dá tu atenção ao hóspede do duzentos e um, ao doutor Reis, e ela lha estava dando, mas ele não respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussuro, quem sabe se para não o esquecer quando precisasse de voltar a chamá-la, há pessoas assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em verdade, são papagaios umas das outras, nem há outro modo de aprendizagem, acaso esta reflexão veio fora do propósito porque não a fez Lídia, que é o outro interlocutor, deixemo-la sair então, se já tem nome, levar dali o balde e o esfregão, vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, é um jeito de lábios que não engana, quando quem inventou a ironia, teve de inventar o sorriso que lhe declarasse a intenção, alcançamento muito mais trabalhoso, Lídia, diz, e sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados ao passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira  »  , como estando, Tal seja, Lídia, o quadro  »  , Não desejemos, Lídia, nesta hora  »  , Quando, Lídia, vier o nosso outono,   »  , Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio   »  , Lídia, a vida mais vil antes que a morte,   »  , já não resta vestígio de ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os dentes, quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto agora ou doloroso esgar se diria em estilo chumbado.


José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984










Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

30 de Julho de 1914

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Bocas roxas de vinho
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa:

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternmamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Quer ir no rio das coisas.

29 de Agosto de 1915

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O sono é bom pois despertamos dele
Para saber que é bom. Se a morte é sono
            Despertaremos dela;
            Se não, e não é sono,

Conquanto em nós é nosso a refusemos
Enquanto em nossos corpos condenados
            Dura, do carcereiro,
            A licença indecisa.

Lídia, a vida mais vil antes que a morte,
Que desconheço, quero; e as flores colho
            Que te entrego, votivas
            De um pequeno destino.

19 de Novembro de 1927

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Quando, Lídia, vier o nosso Outono
Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
            Primavera, que é de outrem,
Nem para o Estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa -
O amarelo actual que as folhas vivem
            E as torna diferentes.

13 de Junho de 1930
Publicada em Presença, nº 31/32,
Março-Junho de 1931

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Ténue, como se de Éolo a esquecessem,
A brisa da manhã titila o campo,
            E há começo do sol.
Não desejemos, Lídia, nesta hora
Mais sol do que ela, nem mais alta brisa
            Que a que é pequena e existe.

13 de Junho de 1930
Publicada em Presença, nº 31/32,
Março-Junho de 1931

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