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Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
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ODES - RICARDO REIS


Selecção de acordo com O Ano da Morte de Ricardo Reis







ÍNDICE REMISSIVO


Mestre, são plácidas12-06-1914 »
Os deuses desterrados12-06-1914 »
Coroai-me de rosas12-06-1914 »
O deus Pã não morreu12-06-1914 »
De Apolo o carro rodou para fora12-06-1914 »
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio12-06-1914 »
Outras odes a Lídia citadas em "O Ano..." »
Ao longe os montes têm neve ao sol16-06-1914 »
Só o ter flores pela vista fora16-06-1914 »
A palidez do dia é levemente dourada19-06-1914 »
Não tenhas nada nas mãos19-06-1914 »
Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo19-06-1914 »
As rosas amo dos jardins de Adónis11-07-1914 »
Cuidas, ínvio, que cumpres, apertando11-07-1914 »
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo30-07-1914 »
Aqui, Neera, longe02-08-1914 »
O mar jaz; gemem em segredo os ventos06-10-1914 »
Antes de nós nos mesmos arvoredos08-10-1914 »
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia01-06-1916 »
Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo09-10-1916 »
Não quero recordar nem conhecer-me02-09-1923 »
Quão breve tempo é a mais longa vida [Cloe]24-10-1923 »
Se recordo quem fui, outrem me vejo,26-05-1930 »
Não quero, Cloe, teu amor, que oprime01-11-1930 »
Sereno aguardo o fim que pouco tarda31-07-1932 »
Saudoso já deste Verão que vejo [Marcenda]sem data »
Vivem em nós inúmeros13-11-1935 »
Aos deuses peço só que me concedam13-11-1935 »









Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o Sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

12 de Junho de 1914

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»



Os deuses desterrados,
Os irmãos de Saturno,
Às vezes, no crepúsculo
Vêm espreitar a vida.

Vêm então ter connosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
É a presença deles,
Deuses que o destroná-los
Tornou espirituais,
De matéria vencida,
Longínqua e inactiva.

Vêm, inúteis forças,
Solicitar em nós
As dores e os cansaços,
Que nos tiram da mão,
Como a um bêbedo mole,
A taça da alegria.

Vêm fazer-nos crer,
Despeitadas ruínas
De primitivas forças,
Que o mundo é mais extenso
Que o que se vê e palpa,
Para que ofendamos
A Júpiter e a Apolo.

Assim até à beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.

E o poente tem cores
Da dor dum deus longínquo,
E ouve-se soluçar
Para além das esferas...
Assim choram os deuses.

12 de Junho de 1914

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«



Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
        De rosas -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
        Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
        E basta.

Escrita em 12 de Junho de 1914
Publicada em Atena nº 1, Outubro de 1924

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»



O deus Pã não morreu
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres -
Cedo ou tarde vereis
Por lá aparecer
O deus Pã, o imortal.

Não matou outros deuses
O triste deus cristão.
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava.

Pã continua a dar
Os sons da sua flauta
Aos ouvidos de Ceres
Recumbente nos campos.

Os deuses são os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por nós,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propósito casual.

12 de Junho de 1914

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«



De Apolo o carro rodou pra fora
Da vista. A poeira que levantara
Ficou enchendo de leve névoa
        O horizonte;

A flauta calma de Pã, descendo
Seu tom agudo no ar pausado,
Deu mais tristezas ao moribundo
        Dia suave.

Cálida e loura, núbil e triste,
Tu, mondadeira dos prados quentes,
Ficas ouvindo, com os teus passos
        Mais arrastados,

A flauta antiga do deus durando
Com o ar que cresce pra vento leve,
E sei que pensas na deusa clara
        Nada dos mares,

E que vão ondas lá muito adentro
Do que o teu seio sente cansado
Enquanto a flauta sorrindo chora
        Palidamente.

12 de Junho de 1914

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Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
               (Enlacemos as mãos)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
               Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
               E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
               E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
               Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
               Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
               Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
               Pagã triste e com flores no regaço.

12 de Junho de 1914

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Outras odes dedicadas a Lídia   »



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Ao longe os montes têm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
        Que alisa e agudece
        Os dardos do sol alto.

Hoje, Neera, não nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
        Não esperamos nada
        E temos frio ao sol.

Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
        E aguardando a morte
        Como quem a conhece.

16 de Junho de 1914

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Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exactos
        Basta para podermos
        Achar a vida leve.

De todo o esforço seguremos quedas
As mãos, brincando, pra que nos não tome
        Do pulso, e nos arraste,
        E vivamos assim,

Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
        Translúcidos como água
        Em taças detalhadas,

Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
        E as rápidas carícias
        Dos instantes volúveis.

Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas luzes,
        Scolhermos do que fomos
        O melhor para lembrar

Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes de repente antigos,
        E cada vez mais sombras,
        Ao encontro fatal

Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio,
        E o regaço insaciável
        Da pátria de Plutão.

16 de Junho de 1914

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A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de Inverno faz luzir como orvalho as curvas
        Dos troncos de ramos secos.
        O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
        Aqueço-me trémulo
        A outro sol do que este.

O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
        De Aristóteles falando.
        Mas Epicuro melhor.

Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
        Sereno e vendo a vida
        À distância a que está.

19 de Junho de 1914

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Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

19 de Junho de 1914

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Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
               E ao beber nem recorda
               Que já bebeu na vida,
               Para quem tudo é novo
               E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
               Ele sabe que a vida
               Passa por ele e tanto
               Corta à flor como a ele
               De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
               Que o seu sabor orgíaco
               Apague o gosto às horas,
               Como a uma voz chorando
               O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
               E apenas desejando
               Num desejo mal contido
               Que a abominável onda
               O não molhe tão cedo.

19 de Junho de 1914

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As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas
        Que em o dia em que nascem,
        Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o Sol, e acabam
        Antes que Apolo deixe
        O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
        Que há noite antes e após
        O pouco que duramos.

Escrita em 11 de Julho de 1914
Publicada em Atena nº 1, Outubro de 1924

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Cuidas, ínvio, que cumpres, apertando,
Teus infecundos, trabalhosos dias
        Em feixes de hirta lenha,
        Sem ilusão a vida.
A tua lenha é só peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça,
        Nem sofrem peso aos ombros
        As sombras que seremos.
Para folgar não folgas; e, se legas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
        De como a vida basta
        Curta, nem também dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obras cansa, o ouro não é nosso.
        De nós a mesma fama
        Ri-se, que a não veremos
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes, de repente antigos,
        E cada vez mais sombras,
        Ao encontro fatal -
O barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços da frieza stígia
        E o regaço insaciável
        Da pátria de Plutão.

Escrita em 11 de Julho de 1914
Publicada em Atena nº 1, Outubro de 1924

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Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.

À noites, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz,
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

30 de Julho de 1914

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Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ninguém nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.

Bem sei, ó flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E não temos a mão
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes de Averno.

Mas aqui não nos prendem
Mais coisas do que a vida,
Mãos alheias não tomam
Do nosso braço, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.

Não nos sentimos presos
Senão com pensarmos nisso,
Por isso não pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais dos deuses.

2 de Agosto de 1914

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O mar jaz; gemem em segredo os ventos
        Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
        Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
        Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
        Nada,no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
        Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
        Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
        Ecoa de Saturno?

Escrita em 6 de Outubro de 1914
Publicada em Atena nº 1, Outubro de 1924

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Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

8 de Outubro de 1914

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Xadrez, Borges »
Xadrez, Saramago »


Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual não guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sóbriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indif'erentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,

Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...

O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

1 de Junho de 1916
NOTA:  Os  versos 14 e  15 parecem ser
uma variante dos versos 16 e 17

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Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo
Que aos outros deuses que te precederam
      Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.

No Panteão faltavas. Pois que vieste
No Panteão o teu lugar ocupar,
      Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.

Teu vulto triste e comovido sobre
A stéril dor da humanidade antiga
      Sim, nova pulcritude
Trouxe ao Panteão incerto.

Mas que os teus crentes te não ergam sobre
Outros, antigos deuses que dataram
      Por filhos de Saturno
De mais perto da origem igual das coisas,

E melhores memórias recolheram
Do primitivo caos e da Noite
      Onde os deuses não são
Mais que as estrelas súbditas do Fado.

Tu não és mais que um deus a mais no eterno
Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.
      Panteão que preside
      A nossa vida incerta.

Nem maior nem menor que os novos deuses,
Tua sombria forma dolorida
      Trouxe algo que faltava
      Ao número dos divos.

Por isso reina a par de outros no Olimpo,
Ou pela triste terra se quiseres
      Vai enxugar o pranto
      Dos humanos que sofrem.

Não venham, porém, stultos teus cultores
Em teu nome vedar o eterno culto
      Das presenças maiores
      Ou parceiras da tua.

A esses, sim, do âmago eu odeio
Do crente peito, e a esses eu não sigo,
      Supersticiosos leigos
      Na ciência dos deuses.

Ah, aumentai, não combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando
      Cada vez maior força
      Plo número maior.

Basta os males que o Fado as Parcas fez
Por seu intuito natural fazerem.
      Nós homens nos façamos
      Unidos pelos deuses


9 de Outubro de 1916

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Horóscopo de Ricardo Reis feito por Fernando Pesssoa



Não quero recordar nem conhecer-me
Somos demais se olhamos em quem somos.
               Ignorar que vivemos
               Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
               Quando passa connosco,
               Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
               Melhor vida é a vida
               Que dura sem medir-se.

2 de Setembro de 1923

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Quão breve tempo é a mais longa vida
E a juventude nela! Ah, Cloe, Cloe,
               Se não amo, nem bebo,
               Nem sem querer não penso,
Pesa-me a lei inimplorável, dói-me
A hora invita, o tempo que não cessa,
               E aos ouvidos me sobe
               Dos juncos o ruído
Na oculta margem onde os lírios frios
Da ínfera leiva crescem, e a corrente
               Não sabe onde é o dia,
               Sussuro gemebundo.


Escrita em 24 de Outubro de 1923
Publicada em Atena nº 1, Outubro de 1924

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Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
         Quem fui é alguém que amo
         Porém sòmente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
         Senão de quem habito
         Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
         Que quem sou e quem fui
         São sonhos diferentes.

26 de Maio de 1930

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Não quero, Cloe, teu amor, que oprime
Porque me exige o amor. Quero ser livre.

A sperança é um dever do sentimento.

1 de Novembro de 1930

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Sereno, aguarda o fim que pouco tarda.
Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.
         Quanto pensas emprega
          Em não muito pensares.

Ao nauta o mar obscuro é a rota clara.
Tu, na confusa solidão da vida,
          A ti mesmo te elege
          (Não sabes de outro) o porto.

31 de Julho de 1932

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Saudoso já deste Verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
               Na lembrança invertida
               De quando hei-de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
               Em que hei-de errar, sem flores,
               No abismo rumoroso,
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda guardo-a; murche-se comigo
               Antes que com a curva
               Diurna da ampla terra.

Não datada
Publicada em Atena nº 1, Outubro de 1924

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Os três heterónimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis,
Álvaro de Campos) e "O Menino da sua Mãe"


Desenho a esferográfica de Almada Negreiros  »



Vivem em nós inúmeros,
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou sòmente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faça-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo

13 de Novembro de 1935
(Fernando Pessoa faleceu em
30 de Novembro de 1935)

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Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
                  E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
                  Têm prazer ou dores.


13 de Novembro de 1935



Fernando Pessoa faleceu dezassete dias após a composição desta ode.
Ricardo Reis a termina, no romance de José Saramago, cerca de um mês mais tarde, em Dezembro de 1935  »  .
Assim João Gaspar Simões descreve estes últimos dias do poeta  » .




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Poemas retirados de
Odes, de Ricardo Reis - Obras Completas de Fernando Pessoa
Edições Ática, Lisboa, 1966

Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -



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