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Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
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ODES - RICARDO REIS

Fernando Pessoa, (1914/35)

"The God of the Labyrinth" - Herbert Quain
Jorge Luis Borges, (1941)

Textos de maior referência em O Ano da Morte de Ricardo Reis
José Saramago, (1984)






A Arca dos Inéditos


"E há papéis para guardar, estas folhas escritas com versos, datada a mais antiga de doze de Junho de mil novecentos e catorze, vinha aí a guerra, a Grande, como depois passaram a chamar-lhe enquanto não faziam outra maior, Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores, e seguindo concluía, Da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido. Não é assim, de enfiada, que estão escritos, cada linha leva seu verso obediente, mas desta maneira, contínuos ele e nós, sem outra pausa que a da respiração e do canto, é que os lemos, e a folha mais recente de todas tem a data de treze de Novembro de mil novecentos e trinta e cinco, passou mês e meio sobre tê-la escrito, ainda folha de pouco tempo, e diz, Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. Juntou os papéis, vinte anos dia sobre dia, folha após folha, guardou-os numa gaveta de pequena secretária, fechou as janelas, e pôs a correr a água quente para se lavar. Passava um pouco das sete horas."




      


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Xadrez, Reis »


"Ricardo Reis foi buscar à mesa-de-cabeceira The God of the labyrinth, aqui está, na primeira página, O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direcção do campo adversário, a mão esquerda numa casa branca, a mão direita numa casa preta, em todas as restantes páginas lidas do livro não há mais que este morto, logo, não foi por aqui que passaram as tropas de Badoglio. Deixa Ricardo Reis The god of the labyrinth no mesmo lugar, sabe enfim o que procura, abre uma gaveta da secretária que foi do juiz da Relação, onde em tempos dessa justiça eram guardados comentários manuscritos ao Código Civil, e retira a pasta de atilhos que contém as suas odes, os versos secretos de que nunca falou a Marcenda, as folhas manuscritas, comentários também, porque tudo o é, que Lídia um dia encontrará, quando o tempo já for outro, de insuprível ausência. Mestre, são plácidas, diz a primeira folha, e neste dia primeiro outra folhas dizem, Os deuses desterrados, Coroai-me em verdade de rosas, e outras contam, O deus Pã não morreu, De Apolo o carro rodou, uma vez mais conhecido o convite, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio, o mês é Junho e ardente, a guerra já não tarda, Ao longe os montes têm neve e sol, só o ter flores pela vista fora, a palidez do dia é levemente dourada, não tenhas nada nas mãos porque sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo. Outras e outras folhas passam como os dias são passados, jaz o mar, gemem os ventos em segredo, cada coisa em seu tempo tem seu tempo, assim bastante os dias se sucedam, bastante a persistência do dedo molhado sobre a folha, e foi bastante aqui está, Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, esta é a página, não outra, este o xadrez, e nós os jogadores, eu Ricardo Reis, tu leitor meu, ardem casas, saqueadas são as arcas e as paredes, mas quando o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças, se carne e osso nosso em penedo convertido, mudado em jogador, e de xadrez. Addis-Abeba quer dizer Nova Flor, o resto já foi dito. Ricardo Reis guarda os versos, fecha-os à chave, caiam cidades e povos sofram, cesse a liberdade e a vida, por nossa parte imitemos os persas desta história, se assobiámos, italianos, o Negus na Sociedade das Nações Unidas, cantarolemos, portugueses à suave brisa, quando sairmos a porta da nossa casa, O doutor vai bem-disposto, dirá a vizinha do terceiro andar, Pudera, doentes, é o que não falta, acrescentará a do primeiro, fez cada qual o seu juízo sobre o que lhe tinha parecido e não sobre o que realmente sabia, que era nada, o doutor do segundo andar apenas ia a falar sozinho.


José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984




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