»  »  »  O Labirinto de Ricardo Reis   
Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
»  »  Fernando Pessoa



PESSOA VISTO A 'PINTURA E CALIGRAFIA'
POR ALMADA-NEGREIROS







Retrato de Fernando Pessoa
(segunda versão, 1957)
Almada-Negreiros



FERNANDO PESSOA - O POETA PORTUGUÊS

por José de Almada-Negreiros  »



Publicado no Diário de Lisboa,
em 6 de Dezembro de 1935,
em homenagem póstuma.



         Não tenho uma carta de Fernando Pessoa. A nossa convivência de vinte cinco anos foi exclusivamente feita pela Arte. E faz-me crer que Fernando Pessoa não manteve, fora da sua família, intimidade de outra espécie com ninguém. Ou de Arte ou nenhuma.
        Na dedicatória da "Cena do Ódio" escrevi: "A Álvaro de Campos com a dedicação intensa de todos os meus avatares". Por seu lado, na mesma época (1915) Fernando Pessoa dedicava-me "A passagem das horas" com estas palavras: "Almada-Negreiros, você não imagina como eu lhe agradeço o facto de você existir". Estas dedicatórias são as das nossas próprias obras. Nunca eu admirei mais a alguém, e nunca ninguém soube ser tão francamente generoso para comigo!
        Ao entregar-lhe um exemplar do nº 1 dos meus cadernos SW, escrevi esta linha: "A Fernando Pessoa, ao melhor companheiro literário que um autor possa alguma vez encontrar".
        Fiz a citação destas dedicatórias para que melhor se veja como apenas a Arte é o bastante para fornecer a amizade.
        Quero lembrar-me nas nossas conversas de alguma coisa que melhor sirva de seu retrato para hoje, e recordo estas palavras de Fernando Pessoa:
        "Você não me verá nunca escrever sobre quem quer que seja senão literariamente acerca do literato. O espírito crítico afasta-se da convivência com os que conhecemos mais perto e chegamos a estimar. É indispensável que alguém fique de fora para julgar. Ficar fora do que se sabe que fica lá dentro é ser crítico. À parte isto, há outros sobre os quais nunca escreverei: aqueles que têm voz própria. Acho que juntar mais uma opinião à de um autor que já a tem, não é fazer crítica, é querer ser crítico. São bem raros aqueles que puseram o dedo em si próprios, e a crítica não pode ir mais longe do que isto.
        Mas quanto um poeta nasce nos seus próprios versos, devemos querê-lo através de tudo; e o crítico, sem deixar de o ser, cede espaço ao arauto. Porque a idade perigosa dos poetas é a dos versos. Quantos poetas morreram nos seus próprios versos! Quantos versos ficaram sem o seu poeta."
        Não conheci exemplo igual ao de Fernando Pessoa: o do homem substituído pelo poeta!
        Esta sobreposição do poeta ao homem, outro que não Fernando Pessoa poderia tê-la feito mal. Mas ele tinha posto efectivamente toda a sua vida na Poesia; ele é exactamente o poeta dos seus versos.
        A esta cedência do homem ao poeta, chamem-lhe renúncia, convento, morfina, clausura, segredo de resistir, chame-lhe o que quiser, mas Fernando Pessoa fê-lo bem, com inteireza, com altura e com as suas próprias posses.
        E até que um dia de 1935 o poeta foi pessoalmente enterrar o corpo que o acompanhou toda a vida. Ficou só o poeta, aceso em olhos perenes de Portugal, do Mundo e do Futuro. Ficou só o poeta, o único poeta que não viu as suas próprias aventuras naturais de homem.
        [...]
        É nestas circunstâncias que reconheço em Fernando Pessoa o melhor exemplo do português de hoje, e o menos passageiro. Um exemplo de português no mundo e no futuro, aqui no Portugal de hoje. Foram também assim desta maneira todos os melhores exemplos na História Portuguesa e nas outras.
        Mas se por ventura Portugal é uma terra de Poetas, oficialmente não o é: O heroísmo da independência espiritual do homem, só um poeta o saberá ver noutro poeta. Mais ninguém! Os portugueses parece estarem ainda no momento de não suporem a independência senão quanto à sua nacionalidade, isto é, ainda não supõem a independência da nossa nacionalidade.
        Em todo o caso eu, que sou pelo menos tão português como qualquer outro, tenho a honra de publicar que não fomos nunca nós, os seus companheiros, que, em nenhuma circunstância da vida, lhe negámos o seu primeiro lugar!
        Os mortos têm uma paz que chega a ser a inveja dos vivos. Dessa paz ergue-se o silêncio que fala a quem o escute. Aos que me possam crer aqui lhes juro ter ouvido o silêncio dizer: "A grande diferença entre Arte e Política é a de que a Arte não tem ódios."
        E não haja confusões, senhores! Fernando Pessoa foi exclusivamente poeta: o poeta português Fernando Pessoa.




Artigo retirado de
Fernando Pessoa - O Rosto e As Máscaras
Antologia de David Mourão-Ferreira
Edições Ática
Lisboa, 2ª edição - muito aumentada, 1978
Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -





Fernando Pessoa

Desenho de Almada-Negreiros, feito em 30.11.1935,
após o regresso do funeral do poeta
Publicado em PRESENÇA, 1936
Nº de homenagem póstuma




VOLTAR AO TOPO   »








Página Principal »
Pessoa - Índice »
Nota auto-biográfica (30-03-1935) »
Carta de 13-01-1935 (heterónimos, etc) »
Carta de 20-01-1935 ("não evoluo, VIAJO") »
Carta de 30-10-1935 (Salazar e o Estado Novo) »
Cronologia (1888-1935) »
Novembro 1935 (os últimos dias) »
A heteronímia vista por Saramago »
Biografia em inglês »
Bibliografia »
Hiperligações externas »
» » » O Labirinto de Ricardo Reis, 2002-11-25