»  »  »  O Labirinto de Ricardo Reis   
Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
»  »  Fernando Pessoa



NOVEMBRO 1935

- os últimos dias de Fernando Pessoa -

Segundo João Gaspar Simões









        [...] Morreu num hospital estrangeiro - o Hospital de S. Luís dos Franceses, à Rua Luz Soriano, em Lisboa - em pleno coração do Bairro Alto. Era sina da sua vida - viver português e "nascer" e morrer estrangeiro: estrangeiro à pátria que o não compreendeu, estrangeiro a si mesmo, que voluntariamente se fez desentendido. Três dias antes de morrer ainda descera à Baixa, entrara no Martinho da Arcada, bebera um café, conversara com José de Almada-Negreiros, soltara alguma das suas gargalhadas nervosas, que lhe faziam estremecer o corpo desconjuntado, e pigarreara, tossira, tossira muito, pois tinha agora um pigarro de alcoólico, que se ouvia longe. Tempos antes, em casa da irmã, em S. João do Estoril, fora acometido de um breve ataque de delirius tremens. O mal estava implantado fundo na sua natureza corroída. E alguns amigos já o tinham encontrado, a desoras, bêbedo e enxovalhado. Bebia, bebia, bebia - para se asfixiar. Quando voltava para casa à noite, com a pasta debaixo do braço, entrava na leitaria da esquina da sua rua, no "Trindade", o seu amigo Trindade, rechonchudo e bom rapaz, que lhe vendia fiado (quando recebeu o prémio literário parte dele foi para o Trindade e quando morreu lá devia ainda seiscentos mil réis) e, nas pontas dos pés, com o seu ar cada vez mais dependurado, as calças a fugirem-lhe pelas pernas acima, pigarreando, enigmaticamente dizia:
        « - 2, 8 e 6.»
        O Trindade retirava-se. E daí a pouco poisava em cima do mármore do balcão uma caixa de fósforos, um maço de cigarros e um cálice de Macieira 60, ou seja, 2, 8 e 6 tostões. O poeta recolhia os fósforos, rasgava o maço de cigarros e virava, de um trago, o cálice de Macieira. Depois abria a pasta, retirava dela uma garrafinha preta, e punha-a em cima do balcão. O Trindade, discretamente, pegava nela, levava-a dentro e voltava daí a pouco com ela rolhada já. Fernando Pessoa tornava a guardá-la na pasta de cabedal e, sem pagar, saía porta fora, depois de se despedir cordialmente do amigo Trindade. Às vezes, pela manhã, o sr. Manacés, o mestre barbeiro da rua, que tanto o "servia" a ele, poeta, como ao moço de fretes da esquina ou ao marçano do amigo Trindade, deslocava-se até ao prédio número 16, primeiro direito, para "servir" o seu cliente. Ocasiões havia em que o encontrava ainda diante da mesa de trabalho, com cara de quem se não deitara, rodeado de papéis, de livros, de pontas de cigarro e a garrafinha preta completamente vazia ao lado. E, então, o poeta, antes que o sr. Manacés assestasse a navalha, pedia-lhe que lhe fizesse a fineza - "era um senhor muito delicado, o Sr. Pessoa" -, pedia-lhe que lhe fizesse a fineza de ir ao Trindade encher a garrafa.
        Passava longas temporadas completamente só naquele primeiro andar. A irmã, quando saía para a sua casa de S. João do Estoril, pedia ao Sr. Trindade que olhasse por ele e que lhe telefonasse, caso houvesse novidade. De facto, já uma noite lhe dera qualquer coisa, que o prostrara no chão, à porta da casa de banho, sem sentidos. Fora preciso arrombar a porta, pois ele não dava acordo de si. E teimava em continuar só, em fumar, em beber: tudo fazia para se evadir, para não estar onde estava, para acabar com a náusea da vida - "raios partam a vida e quem lá ande!" O Dr. Jaime Neve, primo do poeta, que o vira ultimamente, proibira-o de beber: um cálice mais de aguardente, e seria o fim. E o poeta, serenamente, como quem, na verdade, está persuadido de que a morte não existe:


Neófito não há morte,


continuava a beber. Em frente do balcão do Val do Rio, à Rua dos Correeiros, bebeu pela última vez.



Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E-xis-tir...

Dêem-me de beber, que não tenho sede!


         Não era a morte que ele procurava - "não há morte" - mas a existência, o "e-xis-tir", esse existir que ele nunca conhecera.
         "Não escrevi história nem histórias, e, por isso, não uso protagonistas, a não ser a variedade de pessoas que tenho sido", dissera Álvaro de Campos um dia a um jornalista. "Nenhuma delas tem existência real, porque nada tem, cientificamente falando, existência real. As cousas são sensações nossas, sem objectividade determinável, e eu, sensação também para mim mesmo, não posso crer que tenha mais realidade que as outras cousas. Sou, como toda a gente, uma ficção do "intermezzo" falso como as horas que passam e as obras que ficam no rodopio subatómico deste inconcebível universo".
         Aliás, certo da única coisa certa que tinha na vida, certo de que, ao contrário do "Alves, o "dono da tabacaria", cuja morte alterara a monotonia da cidade - "desde ontem a cidade mudou" - a sua própria morte em nada a alteraria:



Mas ao menos, a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou


transgredindo a imposição do médico, desafiando a própria morte, ei-lo que avança para a melhor maneira de se conquistar a si próprio, a forma mais decisiva para realizar o seu mais fundo anelo, esse anseio de "ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos", ou seja, a própria "força universal que envolve e penetra a rotação dos seres", já que enquanto neste lado de cá do mundo, no "rodopio subatómico deste inconcebível universo", nada mais pudera ser que "uma consciência audível dela", da rotação dos seres, "um brilho momentâneo no choque nocturno das cousas"..., isto é, poeta, já que o "resto é delírio e podridão", "cadáveres adiados que procriam" todos quantos neste mundo se limitam apenas a viver.
         A crise veio rápida. Nessa mesma noite, sózinho no seu quarto, completamente só em casa - a irmã estava de cama, no Estoril, com uma perna partida, e com ela estava o marido e os filhos -, foi acometido de uma fulminante cólica hepática. Era a noite de 27 para 28 de Novembro. Quando deram com ele, o seu estado era tal que chamaram, imediatamente, o Dr. Jaime Neves. Este ordenou que o transportassem com urgência para o hospital. Mas o poeta, apesar de completamente prostrado, opunha-se: que era uma crise como qualquer outra, já tivera mais assim. O médico, porém, impôs a sua autoridade. E ficou assente que ele fosse conduzido para o Hospital de S. Luís. Então Fernando Pessoa, apesar da sua prostração, quis barbear-se. E o Sr. Manacés veio "servi-lo" pela última vez. Nessa mesma manhã uma automaca transportava-o ao Hospital de S. Luís dos Franceses. No entanto, pormenor a reter, lembrando-se, no meio do seu sofrimento, de que sua irmã Henriqueta Madalena fazia anos, pediu a um dos amigos, que o viera buscar para o conduzir ao hospital, que lhe fizesse o obséquio de deitar um telegrama de felicitações, em seu nome, para ela. No dia seguinte - só no dia seguinte o telegrama chegaria ao seu destino - , à hora em que a irmã recebia, atrasados apenas algumas horas, os parabéns pelo seu aniversário, Fernando Pessoa, numa cama de hospital, entrava no "abismo" e no "silêncio". Junto dele havia apenas três pessoas: o capelão, a enfermeira e o médico. Morria só, como sempre vivera. "Considero-me feliz por não ter já parentes", dissera poucos anos antes. "Não me vejo assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém." E embora não se tivesse esquecido, nos transes já da agonia, da irmã que fazia anos - era só que morria, sem parentes, pois é sempre assim que vivem e morrem os homens como Fernando Pessoa.
         Ei-lo que entrava, finalmente, no paraíso que perdera. Agonizava, e no meio da sua agonia, repuxando a dobra do lençol, teve, de súbito, uma pausa de estranha quietação. Abriu os olhos, olhou em roda, e vendo que não via, serenamente, como quem não esquece que os míopes, para ver, precisam de óculos, pediu que lhe dessem as suas lentes:
         "Dá-me os óculos!", murmurou, semicerrandos os olhos enevoados.
         Foram estas as suas últimas palavras. Como Goethe, mas sem espalhafato nem solenidade, com a modéstia de um "correspondente estrangeiro em casas comerciais", o poeta pedia a única coisa que em verdade lhe tornava o mundo mais claro, na sua ilusória aparência, os óculos que o oftalmologista lhe receitara e o oculista manipulara.





Texto retirado de

Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração
João Gaspar Simões
Livraria Bertrand, Lisboa, 2ª edição s/d, (1ª edição 1950)

12ª Parte (última): "Regresso ao Paraíso"
Divisão II: "Morte e Ressurreição"

Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -




VOLTAR AO TOPO   »








Página Principal »
Pessoa - Índice »
Nota auto-biográfica (30-03-1935) »
Carta de 13-01-1935 (heterónimos, etc) »
Carta de 20-01-1935 ("não evoluo, VIAJO") »
Carta de 30-10-1935 (Salazar e o Estado Novo) »
Cronologia (1888-1935) »
Pessoa visto por Almada »
A heteronímia vista por Saramago »
Biografia em inglês »
Bibliografia »
Hiperligações externas »
» » » O Labirinto de Ricardo Reis, 2002-11-26