transgredindo a imposição do médico, desafiando a própria morte,
ei-lo que avança para a melhor maneira de se conquistar a si próprio, a forma mais decisiva para realizar o seu mais fundo anelo, esse anseio de "ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos", ou seja, a própria "força universal que envolve e penetra a rotação dos seres", já que enquanto neste lado de cá do mundo, no "rodopio subatómico deste inconcebível universo", nada mais pudera ser que "uma consciência audível dela", da rotação dos seres, "um brilho momentâneo no choque nocturno das cousas"..., isto é, poeta, já que o "resto é delírio e podridão", "cadáveres adiados que procriam" todos quantos neste mundo se limitam apenas a viver.
         A crise veio rápida. Nessa mesma noite, sózinho no seu quarto, completamente só em casa - a irmã estava de cama, no Estoril, com uma perna partida, e com ela estava o marido e os filhos -, foi acometido de uma fulminante cólica hepática. Era a noite de 27 para 28 de Novembro. Quando deram com ele, o seu estado era tal que chamaram, imediatamente, o Dr. Jaime Neves. Este ordenou que o transportassem com urgência para o hospital. Mas o poeta, apesar de completamente prostrado, opunha-se: que era uma crise como qualquer outra, já tivera mais assim. O médico, porém, impôs a sua autoridade. E ficou assente que ele fosse conduzido para o Hospital de S. Luís. Então Fernando Pessoa, apesar da sua prostração, quis barbear-se. E o Sr. Manacés veio "servi-lo" pela última vez. Nessa mesma manhã uma automaca transportava-o ao Hospital de S. Luís dos Franceses. No entanto, pormenor a reter, lembrando-se, no meio do seu sofrimento, de que sua irmã Henriqueta Madalena fazia anos, pediu a um dos amigos, que o viera buscar para o conduzir ao hospital, que lhe fizesse o obséquio de deitar um telegrama de felicitações, em seu nome, para ela. No dia seguinte - só no dia seguinte o telegrama chegaria ao seu destino - , à hora em que a irmã recebia, atrasados apenas algumas horas, os parabéns pelo seu aniversário, Fernando Pessoa, numa cama de hospital, entrava no "abismo" e no "silêncio". Junto dele havia apenas três pessoas: o capelão, a enfermeira e o médico. Morria só, como sempre vivera. "Considero-me feliz por não ter já parentes", dissera poucos anos antes. "Não me vejo assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém." E embora não se tivesse esquecido, nos transes já da agonia, da irmã que fazia anos - era só que morria, sem parentes, pois é sempre assim que vivem e morrem os homens como Fernando Pessoa.
         Ei-lo que entrava, finalmente, no paraíso que perdera. Agonizava, e no meio da sua agonia, repuxando a dobra do lençol, teve, de súbito, uma pausa de estranha quietação. Abriu os olhos, olhou em roda, e vendo que não via, serenamente, como quem não esquece que os míopes, para ver, precisam de óculos, pediu que lhe dessem as suas lentes:
         "Dá-me os óculos!", murmurou, semicerrandos os olhos enevoados.
         Foram estas as suas últimas palavras. Como Goethe, mas sem espalhafato nem solenidade, com a modéstia de um "correspondente estrangeiro em casas comerciais", o poeta pedia a única coisa que em verdade lhe tornava o mundo mais claro, na sua ilusória aparência, os óculos que o oftalmologista lhe receitara e o oculista manipulara.