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NOME INTERESSES OUTROS TEXTOS |
FELIPE VALE Iluminismo, Idealismo Alemão, Estética, Autonomia, Teorias de massas, Heidegger, Religião 'O Sistema dos Objetos' de Jean Baudrillard | Heidegger sobre seus problemas | Religião e autonomia | Autonomia e Vigilância da Vontade | "Em algum momento a realidade não foi hiperreal?" |
@ Sobre o anônimo |
RELIGIÃO E AUTONOMIA INTRODUÇÃO Este não é um ensaio cético, a princípio. Pode parecer pouco usual expor um texto através da definição do que ele não é, mas meu cuidado se justifica. Quando abrimos um livro contemporâneo de filosofia que fale sobre religião, geralmente o pressuposto de que ela é uma prática cultural imprestável torna-se visível logo nos primeiros parágrafos, antes que os argumentos para se afirmar isso sejam dados. Parece-me que ateístas e religiosos entravaram uma batalha de defesa de partidos, e que nada de muito útil irá sair disto. Eu tenho três livros do gênero a minha frente no momento: God Delusion, God is not Great e Everything you know about God is wrong. Todos os três, sem dúvida, ótimas formas de colocar a religião praticada em uma posição crítica, ao mostrar o que há por trás de sua face de bondade e complacência; mas há algo nesse tipo de retórica que nos sugere que, só por partirem de títulos bombásticos como estes, eles já conseguiram suportar a tese de que religião institucionalizada é algo nocivo no nosso mundo antes de dar as justificativas. Seu conteúdo é espetacular, como são as pregações religiosas de canais abertos na TV. O formato argumentativo do novo ateísmo é estritamente empírico, disseca fatos escolhidos pelos autores com maestria, remonta a história de certas práticas, calcula o sofrimento de muitos humanos a partir dessas formas coercitivas de prática religiosa. Isso sem dúvida é verdade não só na prática da religião, mas da democracia (algo que, por acaso, todos os três autores defendem com fervor), do socialismo, de teorias filosóficas éticas. Em outras palavras, eles são unidimensionais tratando de tipos de religiosidade bem pontuais, de uma época específica, não nos dão respostas de peso filosófico satisfatório acerca do assunto: “o que seria uma prática religiosa ausente dos malefícios institucionais da religião?”, “como lidar com o fato de que todas as pessoas têm algum sistema de crença, coerente ou não, que os guia a viver e como isso se difere de uma religião”, “em que medida poderia-se mudar o formato da prática religiosa, a fim de separá-lo totalmente da vida política e social”, etc. Ainda que a intenção dos três seja legítima – e realmente eu concordo que religião seja um assunto preocupante, um campo aberto para imbecilização de uns a troco da corrupção de outros – chega-se a um nível delicado em que, para eles, é possível pensar democracia como um ideal a ser tomado como referencial (não importa se sua prática é violenta, coercitiva, repressora), mas jamais pensar como religião pode ser colocada como ideal de auto-conhecimento e ação ética: elas sempre deve ser calculadas pelo seu poder de tirar autonomia de indivíduo, atender suplício de pessoas débeis e reprimidas, pela violência que gera entre membros de profissões diferentes. Isso deve ser relativizado de certa forma.[1] Negarei aqui, portanto, um ceticismo gratuito. Ao escolher acima, entre tantas outras citações possíveis, a bela imagem de Heinrich Heine acerca de sua visão da religião, estou de certa forma pondo em jogo a representação que a Modernidade tem da religião – suporte ela uma religião como prática social dedicada aos domingos e feriados santos, como verdade absoluta, ou ainda como algo que deve ser extirpado. Heine avalia a religião através dessa imagem fortíssima do guia, onde em determinado ponto de uma suposta jornada (já que, em sua imagem, supõe-se que alguém está indo a algum lugar), o sentido desse guia, cego porém sensitivo, desvanece pela própria clareza da época. A atuação do guia, da religião, é minada conforme uma consciência é inoculada em cada um de nós para continuarmos nossa própria jornada guiados por nossos próprios olhos, já desvendados. Tudo que tenho a declarar é que retorno a esta mesma jornada como indivíduo em meio a uma massa que se guiou pelos próprios olhos assim como outros indivíduos foram guiados por um cego, séculos atrás. E os resultados parecem ser tão frustrantes quanto o de meus predecessores: não se chegou a lugar algum. Eu me retiro da horda cética e proponho algo diferente neste ponto. De que estas jornadas e caminhos descritos por Heine podem estar traçando apenas o caminho de nossa redundância, nos levando não a algum lugar, mas a lugar algum. Nos ateremos, assim, de entrar nesse embate contraditório de ateus e religiosos pela verdade última do mundo, pela verdade acerca de como a religião é praticada e afeta a (e é domada pela) ordem social. Seguindo os passos de Foucault, eu acabaria dizendo que não importa a verdade, mas relações dos indivíduos com suas verdades. Como isso vai definir nossa relação com os valores suscitados pela religião é o que vai realmente importar aqui. B. Prospecto: Um
dos pontos onde vou estacionar será este aspecto da teologia e também do
ceticismo que rodeia de certa forma a opinião comum, que se
esforça por tirar praticidade da religião – e de como a religião mesma
se envolve neste jogo, de forma que ela mesma, vendo a si mesma sendo
inutilizada pela tendência imediatista e
funcionalista sob cujo eixo gira o projeto cultural da Modernidade esclarecida, passa a se moldar a tais tendências, divulgar-se como saciadora de perguntas existenciais, uma verdadeira prestadora
de serviços espirituais, ela que foi durante toda história a despótica senhora
das almas, nunca tendo se dado ao trabalho de justificar-se perante um tribunal
que não fosse um que se pronunciasse em sua própria língua, expelindo sentenças
previamente resolvidas dentro de seu campo de valores, domesticamente
circunscrito. Aqui forjo um tribunal clandestino que reconta e reavalia brevemente a forma que a religião é sentida e
empunhada, sob o ponto de vista crítico dessa sua transição de juíza para réu, para
que tal fenômeno seja esclarecido aos olhos de um júri dividido, e reavaliação
do sentido de nossos sentimentos religiosos, assim como fervores
anti-religiosos, siga-se daí. Ainda que este ensaio lide quase exclusivamente com monoteísmos – sobretudo o cristianismo protestante, em cujo meio eu mesmo cresci e tive contato com aspectos metafísicos, morais e políticos da religião – isso não elimina outros segmentos religiosos da análise, já que os monoteísmos milenares são muitas vezes modelos para seitas e cultos menores que seguiram a partir deles. Religiões panteístas (algumas mais antigas que o cristianismo) carregam os mesmos atributos metafísicos e políticos tratados aqui. Uma próxima consideração: religiosos podem questionar a seriedade de um ensaio como este que se propõe a analisar a fé secularmente, fora de sua construção de significados e contexto; que já renega a discussão da religião considerando se seus preceitos metafísicos (existência de Deus, da alma, de um mundo além deste) sejam verdadeiros ou não. Realmente, pouco importa para o que vamos observar aqui: analisar a mutação à qual a religião institucional vem se submetido para se adaptar ao mundo e suas tendências, ainda que ela se julgue uma verdade eterna e independente da sociedade secular. A tese, note, é menos pretensiosa do que parece; não quero dar nenhuma teoria geral da religião, ou dizer porque as pessoas atendem seminários religiosos ao invés de entrarem para um curso de natação, ou o que leva alguém a se explodir em um avião contra um prédio comercial em função de um pretenso mandamento de seu deus, (...). Ao contrário, e aqui já expresso uma justifica a mim mesmo por estar escrevendo este ensaio, o que busco é um prefácio para um projeto maior de análise de como a cultura cristaliza suas normas e constitui gestos sociais, sob quais condições e com quais intenções; em como pessoas aceitam gestos pré-definidos pela cultura e se conformam a se ajoelharem perante o mesmo Deus, utilizarem o mesmo jargão de culto ao tratar de assuntos elevados, se interessarem pelas mesmas coisas, pensarem os mesmos pensamentos. Isso coloca também a ciência e o racionalismo em posição crítica (como veremos em seguida), que são eles mesmos instituições com seus próprios paradigmas e limitações para o conhecimento e um exercício do pensamento liberto de potestades do pensamento especulativo e teleológico. Tanto nas
religiões quanto nas ciências, o que vem sido buscado na pesquisa para este
ensaio se expressa pela seguinte cena: há um momento no qual aquilo que criamos
para servir à nossa vida individual ou em sociedade se transforma em um
imperativo pelo qual vivemos e matamos. O mesmo princípio de impraticidade se aplica à religião, à ciência, no momento
em que elas viram parâmetro em si para agirmos. Uma comunidade cria religiões
que acompanham o processo de civilização unindo pessoas sob o julgo de uma
unidade cultural coesa, com práticas sociais previstas e suportadas pela
religião, até o momento em que religiões começam a separar pessoas, crenças,
partidos e ilhar outras dentro de seu grupo, com suas certezas divinas em mãos.
Ou ainda, investe-se em pesquisa e meios para ciência afim de que a sociedade seja
provida de seus benefícios, até o momento em que a ciência é utilizada contra a
sociedade (como suporte técnico para atos genocidas,
por exemplo), ou se torna ela mesma um objeto de adoração fetichista por
entusiastas semi-educados em suas disciplinas (gerando essa forma contemporânea
tosca de progressismo através de uma mitologia científica;
adestrando o corpo à manipulação de acessórios tecnológicos; transportando
comunidades inteiras de volta à infância ao servirem de pretexto para liberação
de suas fantasias acerca de clonagem, manipulação de DNA, imortalidade, etc). Seguindo a
forma que muitos cientistas acusam a religião de retirar pessoas deste mundo
factual, a própria ciência acaba por servir em certos casos de utopia imbecilizante para as massas, com seu próprio messias
esperando a humanidade passivizada em algum ponto do
futuro (um messias chamado ‘progresso técnico’) e dogmas comportamentais. Portanto, um bom uso deste ensaio estenderia seu significado e método de análise para quaisquer formas de crença e busca de condução para além de si próprio, para além deste mundo – sejam elas institucionais ou não. C. Por um método antiteleológico Uma última consideração: a mutação inerente à história das religiões (que se supõe serem verdades extratemporais) não é um argumento válido para negar-se ou aceitar-se religião – isso eu quero frisar desde já. A questão é muito mais complexa. Meu primeiro ponto neste ensaio será traçar como as várias formas de lidar com a religião se inseriram no tempo e coexistem hoje em nossa sociedade – de forma que temos teístas como os do século XVI cuja revelação da Divindade é inquestionável e deve ser aplicada ao pé da letra, e neocristãos que tentam apoiar sua crença através de ciência e revisão de suas regras morais. Ou seja, se trata da representação de cada período não pelo ponto no tempo (ano, década), mas tendência tornada pública na vida cívica. Aqui entra uma proposta anti-historicista de análise; não é porque estamos em 2008 que não é possível haver pessoas que lidam com religião como se lidava normalmente no século XVI; é um caso até recente o fato de grupos islâmicos extremistas terem proibido a população de seus países aceitarem a gotas imunização de poliomielite cedida pela UNICEF para crianças, alegando uma suposta ‘conspiração americana’ que tornaria as crianças impotentes por compactuarem com o inimigo cristão.[2] O mesmo obscurantismo era comum na Idade Média quando o poder de cura de ervas medicinais era atribuído ao diabo, e seu uso, até mesmo nas várias grandes pestes da época, era proibido; melhor ter a população dizimada a compactuar com o desconhecido, que desde então assumia a face do diabo através de manipulação simbólica. A tendência crescente de medievalismo, que agora se reapresenta nos rótulos fundamentalistas do século XX, deveria ter sido deixada no passado; não é o caso. Não somos otimistas a ponto de deixarmos esse detalhe passar despercebido. Deixo, portanto, qualquer leitura sob paradigmas teleológicos de lado aqui; não há avanço nenhum em nível cultural simplesmente porque de certa forma as ciências e filosofia avançam conforme seus edifícios de entendimento são incrementados com novas visões sobre questões discutidas desde o passado. A cultura geral é afetada por diversas forças e tendências, sendo as ciências (exatas e humanas) apenas uma delas. Há o outro nível de atuação da filosofia e ciências de análise que é: todas chegam tarde demais para explicar com clareza um processo histórico ou evento[3]. Portanto ciências contemplativas sempre estarão alguns passos depois da atuação imediata dos fatos; ao pensarmos em como propostas éticas se põem em teoria e sua relação com a prática social, devemos considerar este deferendo. Capítulo I - Da origem da religiosidade aos fins da irreligiosidade Quis custodiet ipsos custodes? Eu considero o assunto, a
matéria bruta da religião, sendo tão pouco claro, mesmo para pessoas que
dedicaram todas suas vidas para a religiosidade, que vejo necessidade em não
começar o ensaio sem uma resposta clara para as questões[4]: A. Origem Dois
indivíduos chamados Daniel Dennett e Hans-Peter Burmeister definem a origem das religiões de um modo que nos
daria uma resposta para a primeira e segunda questões:
as religiões são “empreendimentos para a autocompreensão do gênero humano”, “é um daqueles instrumentos culturais mediante os quais o
ser humano tenta entender a sua posição insegura dentro da criação”[5].
O curioso é que Dennett é um crítico virulento da
religião, ao passo que Burmeister poderia ser chamado
de um entusiasta de uma visão pós-secular da religião. Para ambos ela surge de
uma época onde o homem desfruta de meios escassos para explicar sua presença no
mundo e controla poucas ferramentas técnicas para garantir um destino seguro de
sua espécie perante o fluxo da natureza; narrativas de textos sagrados das mais diversas
são povoadas com sociedades ameaçadas por pestes, guerras, escassez e terror. Monoteísmos
surgiram na infância da civilização humana, em um momento da cultura onde
coincidiu a transmissão de sabedoria dos grandes povos da Antiguidade tanto via
narração mítica quanto via imperativos práticos, como princípios de legislação
moral e cívica de povos em formação. Todas as narrativas míticas das religiões
não se saciam em definir os deveres e origens da espécie humana e sua
subjugação a um ser supremo em termos realistas; ao contrário, elas trazem um caráter mágico, repleto não só de fenômenos
sobrenaturais como também de um rol imenso de criaturas que povoaram a
imaginação dos primitivos. O simbólico sempre foi utilizado como,
simultaneamente, proliferador de significado e
simplificador do mesmo; coincidentemente não há religiosidade sem um apelo ao
simbólico, sem a sublimação do banal e material pela
ramificação de significados mágicos latentes em cada aspecto de nossa
relação com a Natureza. A imagem traz em si esse poder de espelho de projeções,
“nelas procuramos provas daquilo que queremos ver com os nossos próprios
olhos”.[6] A religião em seu estágio primordial é a concretização deste caráter
auto-reflexivo de uma comunidade na própria expressão de sua humanidade. B. Meio A diferença
é que nossos antepassados eram ignorantes por serem pouco informados; hoje
somos ignorantes por sermos super-informados, como
diz Baudrillard. Se antes o deserto semântico desesperava o homem, fazendo-o buscar o
significado de sua existência, atualmente as preocupações
deste mesmo protótipo de homem mora na multiplicidade de propostas que
se oferecem a ele. Ele se encontra perdido, desorientado pela
infinidade de sinais apontando para caminhos diferentes, pisando em um solo
cultural em estágio de semiorragia. Chegamos a um
ponto da história de nosso conhecimento onde não conseguiremos ter contato com
todas as ramificações virtuais de um assunto, seja qual ele for, em sua
completude. Por não vivermos suficientemente para isso, por não vivermos rápido
o suficiente para transpassar a insaciabilidade que o maquinário devorador de
assuntos gerais por trás de tudo – que manipula as cordas presas aos membros da
humanidade, como um ventriloquista – opera seu
instrumento avidamente. Haverá um
momento, entretanto, em que ambos religiosos e seculares irão chegar a
conclusões destoantes a respeito da efetividade dessa normatividade religiosa; consideremos apenas, grossamente, que religião hoje em dia é o
melhor pretexto para guerras e terrorismo. Irreligiosos se enxergam em vantagem
nesta altura do debate: eles mostram que as verdades religiosas dependem na
realidade de uma metodologia que produza congruência com o contexto histórico
em que se encontram, para então poderem gerar algum nexo para si mesmas, e que, no
nosso contexto histórico, essa metodologia é uma forma eficaz e silenciadora de
coerção – o conteúdo de religiões (tomemos como exemplo calvinismo e
luteranismo) indica para um caminho de contentamento com situação social,
obediência quase servil a autoridades, domesticação do corpo e sexualidade,
supervalorização de êxitos como graça alcançada e minimização dos
fracassos através de contentamento com a situação do todo, permeação de
elementos ideológicos burgueses em áreas que deveriam ser espirituais,
resignação e vingança contida ao posicionarmos o mal na figura do infiel, e
controle dos membros das religiões uns aos outros, como um grupo de reprimidos
que repetem a repressão, fazem do uso dela contra um outro um referencial de auto-policiamento. Entretanto, a utilidade cívica da religião – que é real – geralmente é refutada ou esquecida com facilidade em função de seus malefícios e sua apropriação por histéricos fundamentalistas. Alguns afirmam que a velha religião, como unificadora da identidade cultural de um povo, não cabe em um mundo a caminho do globalismo, como sugerimos acima. O teor da irreligiosidade mora no apelo por autonomia humana fora de estruturas de controle e sintetização de respostas rápidas, de soluções fáceis (que nunca funcionam, obviamente). Assumindo esta pretensão, a própria irreligiosidade passa a carregar uma responsabilidade que antes era da religião: deve provar que ela própria está livre da coerção que ela critica, ou ainda deve reposicionar as questões existenciais de forma a criar uma visão de mundo onde a autonomia humana seja uma proposta palpável. Em outras palavras, as duas propostas em suas formas ideais terminam por defender fins éticos semelhantes, apenas via métodos e em contextos distintos. Resta observar como uma é alegadamente falha por sua própria estrutura repressora (religião), e em que nível isso é verdadeiro. C. Fins Definimos a origem das religiões como um estágio cultural onde uma organização civilizatória se faz necessária em termos de (1) desenvolvimento de uma auto-reflexão da condição do gênero humano ligada à unificação da cultura de um povo sob preceitos justificados por seu peso tradicional ou qualidades onto-teo-lógicas (gerando assim meios civilizatórios que o permitirão se recolocar perante a natureza e o mistério de sua posição) e (2) estabelecimento de leis e costumes que constituirão o parâmetro pelo qual aquela cultura definirá caráter e qualificará, explicita ou implicitamente, seus integrantes. As recentes
propostas de irreligiosidade, divulgadas através de toda uma nova mídia de
acusação de ações violentas feitas sob julgo da religião, têm aberto, junto com
as próprias teorias pós-modernas, um espaço onde fica-se a definir “o que entra no lugar de Deus?”. Em outras palavras, se
realmente os homens abandonarem a religião e passarem a buscar seus
significados em formas não dogmáticas de cultura ou conhecimento, que
formas poderão prover este conhecimento ou informação necessários? É assim que alguns teólogos[7] atuais de renome
argumentam. Porém, se trata de uma forma de argumentação criada somente para defender uma conclusão postulada; sua pressuposição é que nada
é suficiente para substituir Deus. CAPÍTULO II. Religião versus ciência? ‘Many years ago […] I was strongly advised by a friend Urbanization and industrialization had encouraged “Nossa
época é essencialmente uma época de entendimento e reflexão, sem paixão,
momentaneamente explodindo em entusiasmo e então se relegando acanhadamente ao
repouso”, escreveu Kierkegaard no início de seu ensaio The Present age[10].
De fato Kierkeegard, escrevendo em Copenhagen, uma cidade burguesa relativamente afastada do
que havia de mais tecnológico no mundo do século XIX, acerta em apontar que o
conhecimento técnico da humanidade nunca foi tão grande e nunca pode conquistar
seu espaço como pode naquela época, ao menos na Europa cristã. E incrivelmente
a ciência e filosofia jamais teriam conseguido se libertar do paradigma imposto
pela fé se a própria fé não houvesse sido revolucionada com as reformas
religiosas de Lutero e Calvino[11]. A definição que
temos da Idade Média como ‘Idade das Trevas’ é em si um indício de que nosso
parâmetro hoje acaba por ser científico, ele mede e dá determinado valor para
práticas sociais e épocas. Isso não significa necessariamente que a religião perde o jogo – isso suporia que há um jogo, em primeiro lugar, e depois que é
possível uma uniformidade de tendências que na verdade atendem determinadas
camadas e grupos em determinados contextos. Certamente um fazendeiro no
interior do Wyoming não terá tanto interesse em revisar
as crenças que ele mantém desde criança acerca da existência de Deus por meios científicos;
é ilusória a mania de dar nuances conspiratórios para ciência e religião como
se as duas fossem duas grandes potências lutando pela mesma coisa.
B. tanto religião quanto ciências trazem em diferentes níveis a construção de um todo da história do ser humano como ponto nodal na narrativa do universo[18] – de forma que toda existência é datada e coordenada ao redor do desenvolvimento da espécie humana, como se todo universo tivesse adaptado e manejado ambientes e condições favoráveis para que o auge da criação fosse propiciado em nós, os protagonistas da trama da existência. De certa forma é importante que religiões e, sobretudo, as ciências, posicionem o eixo sobre o qual elas irão girar para fins práticos, para não se perder na abstração de outras formas de realidade diferentes da nossa humana. Portanto não caiamos no erro de pensar que acharemos todas as respostas do universo nessas duas instituições centradas em uma idéia de universo tecida durante a gestação da espécie humana para culminar em seu florescimento. Caso contrário teremos respostas ao nível das dadas no livro de Gênesis na Bíblia Sagrada: os animais de pasto foram colocados lá para servir de alimento para o homem, assim como os vegetais[19]. Voltaire foi o único no mundo a ter um humor suficientemente afiado para repetir a unilateralidade dessa lógica, ao dizer o nariz foi feito para servir de apoio para os óculos. Esse tipo de explicação tem seu valor mítico e simbólico, mas entra em um campo perigoso quando serve como justificativa para mantermos uma vida segundo a moral religiosa, e vale como único motivo para tal, como se segue no próximo ponto. C. O que busca a questão (‘por que estamos aqui?’), portanto, dificilmente dará uma resposta significativa à questão ética (‘o que devemos fazer?’). Que é a última, para fins civilizatórios, a que realmente importa. Aqui o argumento de que a religião é válida essencialmente como conjunto de leis morais (judaísmo e maometanismo mais que cristianismo aqui) cai por terra. Ao mesmo tempo que a questão ética por via religiosa se baseia em uma série de pressuposições (refutáveis, como visto acima) que suportam a conduta ética do homem sobrenaturalmente, e impõe seus fundamentos quase que gratuitamente de acordo com a sabedoria inquestionável de Deus, algo se revela daqui: de que essa ética não dá conta de guiar alguém. Em outras palavras, para fins civilizatórios e seculares, a melhor coisa que pode haver para a civilização humana foi ter a lei religiosa separada da cívica. Muitos americanos, justificando o poder de suas bases tradicionais cristãs, argumentam que os dez mandamentos definiram toda lei que permite este Estado ser uma democracia, a justiça dele dependendo de uma base moral cristã coesa. O contraditório é que, com um pouco de comparação, notamos que apenas dois dos dez mandamentos são leis constitucionais: ‘não matarás’ e ‘não roubarás’. Não há lei que me impeça de ‘cobiçar a mulher de meu vizinho’, nem uma que me obrigue a amar todos a minha volta. Mesmo estes dois mandamentos e leis são as coisas mais básicas no que se refere ao estatuto de ser num contexto social; códigos de lei sumérios e egípcios (ou seja, mais antigos que o judaico) já traziam ambas em seus fundamentos básicos. Como conclusão, religião e ciência, por mais que sejam independentes uma da outra, acabam por disputar lugar na resposta a questões comuns advindas de um nexo existencial presente na consciência humana. A fundamentação de um sistema de crenças, valores ou teorias necessariamente adquire ou cria para si uma malha teórica sob a qual sua lógica irá funcionar – é possível responder inúmeras questões sob o vasto material científico que temos disponível hoje ou sob as respostas ultra-abrangentes fornecidas magicamente pela religião. Nossa atenção, ao lidar com um estatuto tão sensível quanto o da realidade, é ter em mente que as instituições e forças sociais que propuseram uma interpretação definitiva da realidade foram simplesmente substituídas por outras novas com suas próprias interpretações da realidade. Isso vale para revelar a inefetividade em lutas entre ‘versões de realidade’ no contexto social; Ambrose Bierce faz uma piada que é bem válida em seu Devil’s Dictionary: religião é a crença no único deus possível, seja ela no único deus possível dos cristãos, ou no único deus possível dos hindus, ou no único deus possível dos mulçumanos, (...)[20]. Há certos motivos que me
levam a dizer que não faz muito sentido entrar em um embate entre propostas
radicalmente opostas a respeito de questões como esta, caso um dos debatedores seja do tipo que acha que sua crença é a única verdadeira e
tudo que existe no resto do mundo é fruto de alguma enganação programática e
conspiratória que, por acaso, só não o afetou. Lidamos com argumentações racionalistas
e irracionalistas-sobrenaturais para a existência da
vida: escolhe-se seja qual for, esta questão é terminantemente de importância
meramente individual, volto a afirmar. Para partimos para o próximo capítulo
precisamos encarar a fase realmente importante e discutível da religião – a
pragmática e ética. Em questões concernentes à realidade das coisas, tudo que
posso fazer é lavar minhas mãos e reafirmar o que Harold Bloom já disse em outro contexto: “Reality is shared hallucination”.[21] Este não é de forma alguma um convite a um ceticismo total, mas o reconhecimento de que algumas
verdades são meramente subjetivas, e os problemas que as envolvem são irrelevantes em
uma discussão filosófica. CAPÍTULO III . Religião da racionalidade à sentimentalidade “For theists to accuse non-theists of being
atheists is analogous Antes de
Darwin embarcar na jornada que o levou à teoria de evolução, em um lugar remoto
da Prússia já surgiu uma força que nega a possibilidade de compreendermos e
provar a existência de Deus por meios da razão (ou seja, por quaisquer meios
que temos em mãos). Vou utilizar a imagem de Immanuel Kant, pontuando sua Crítica
da Razão Pura, embora no lugar poderia colocar várias outras personagens do
Iluminismo que levaram o criacionismo e teísmo, assim como eles são imaginados
pelos três grandes monoteísmos, a uma emboscada. O próprio
Hegel se enxergou como uma espécie de revisor e reformulador do estrago que Kant
começou a fazer na história da filosofia. No que toca o assunto da religião, ele
adquiriu o mesmo pudor (para não dizer dissimulação) que antes dele Kant e Fichte mantiveram ao tratar dele. O assunto da religião na
Alemanha era bastante delicado, para resumir. Se na França os revolucionários
haviam negado completamente o cristianismo, se na Escócia David Hume e outros afirmavam seu ceticismo aos quatros ventos, vemos
nessa época da história alemã casos de homens públicos claramente não-cristãos
terem que ocultar suas convicções religiosas para evitarem complicações com os
príncipes (o próprio Goethe é um exemplo claro); e outros vários sendo
julgados, expulsos, ameaçados por ousarem tocar na questão da coerência da
religião cristã neste novo mundo sob imperativo da razão, como o professor Gottlieb Fichte (expulso de seu
posto na Universidade de Jena por seu ensaio sobre
religião), o professor Immanuel Kant (que teve ele próprio que abafar a
polêmica gerada por seus escritos a respeito). Hegel foi visto tanto como materialista
quanto como cristão ortodoxo ou panteísta, pela ambigüidade de suas visões
religiosas, mas nunca deixou de rodear sua estranha visão do Absoluto de
elementos culturais cristãos. E mesmo ele não fugiu de ameaças e acusações por
suas visões religiosas. É curioso ver como Hegel passou de um crítico virulento do Cristianismo em sua juventude para um verdadeiro reformador da fé cristã – quer essa reforma tenha lhe guiado para uma versão prática do cristianismo mais fiel aos ensinamentos de Jesus, especificamente, ou para uma distorção panteísta da doutrina cristã (como Kierkegaard acusará Hegel)[27]. O fato é que Hegel serve como figura limítrofe e resposta à inefetividade do Iluminismo para lidar com religião via uma redução de toda forma de cultura a termos de verdade factual – mesmo aquelas simbólicas e mais ligadas à prática. Hegel de fato em momento algum foi convencido por alguém que sua oposição ao cristianismo deixava de ver uma face da doutrina cristã muito positiva em termos de desenvolvimento intelectual (geistliche Entwicklung) do homem. O próprio movimento de seu pensamento o levou a tais conclusões. O primeiro ponto que consideraremos é como Hegel enxerga o cristianismo de sua época, em segundo lugar como enxerga o anti-sobrenaturalismo do Iluminismo atuando em sua época, e como levará seu pensamento, por fim, para um rumo que fará dele uma espécie de reformador da religião na Alemanha do século XIX, unindo aquilo que ele enxergou como o lado positivo do cristianismo e do Iluminismo[28]. Hegel inscreveu-se
em 1788 em uma fundação teológica protestante na Universidade de Tübingen. Ele tinha, então, 18 anos, e para alguém de sua
condição social, a única chance de ter uma educação formal decente para sua
época era se subordinando a este tipo de instituição suportada pelo governo do
príncipe local. Lá adquiriu fluência em latim e grego e, em termos do que nos
interessa aqui, foi neste ambiente que Hegel foi ter contato com a teologia
professada na época no grande Império romano germânico, uma teologia adaptada
das idéias do Iluminismo, circundada por um teísmo racionalista com certo toque
de sobrenaturalismo bíblico[29]. 1. Teologia racional: advinda do Iluminismo de um discípulo de Leibniz chamado Wolff, principalmente, onde se enxerga uma tentativa de provar a existência divina e das tais verdades religiosas. Hegel critica aqui a atitude de Wolff de não derivar sua reflexão a partir das representações culturais religiosas, mas simplesmente usar tais representações como objetos externos, cindidos de nós mesmos: o exemplo aqui é o uso de Deus como algo externo[33] ao qual devemos todo louvor por suas propriedades divinas (benevolência, justiça, grandeza); sendo que, sendo algo externo a nós e pertencente a uma esfera extra-mundana, não temos conhecimento dele! A teologia racional jamais será tão racional como se propõe; todo conhecimento dessa divindade é relativo, refutável e puramente ideal (como Kant irá afirmar em sua primeira crítica, como resposta a Leibniz, Wolff e outros Iluministas alemães). 2. Redução de religião a moralidade (Moralität) – que nos liga diretamente à interpretação
kantiana da religião. Há dois pontos críticos aqui para Hegel: (a) Kant reduz
tudo a uma ordem social que ele liga a uma moralidade ideal. Ao afirmar
que todos temos um senso de moral nítido em nossas mentes, todos sabemos o que
é certo e errado, ele desconsidera que isso é primeiramente falso (senso moral
é algo com nuances culturais), mas, mais perigosamente, que se eu tenho senso
moral, não significa que eu precise obedecer minha ‘voz da consciência’.
Criminosos não são apenas pessoas ignorantes e incapazes de saber o que estão
fazendo; a noção de consciência social kantiana é bastante provinciana, para
resumir. Para Hegel a religião traz muito mais potencialidade em si do que uma
consciência social ética (expressa pela Sitten,
e não imperativos da Moralität), simplesmente[34]. A religião para Hegel é uma forma reflexiva que vai nos levar à um posicionamento determinado perante a totalidade das coisas. A noção de Deus ou Absoluto em Hegel diz muito mais respeito à totalidade do universo com suas leis (Kräfte) de funcionamento e devir do que propriamente um ser transcendente com identidade própria. Em suas aulas sobre filosofia da religião, Hegel diferencia bem a teologia (como derivação de conteúdos reflexivos do objeto divino) de uma filosofia dos conteúdos da religião, guiando tais conteúdos para esta visão totalizante da realidade: “No simples conceito de Religião está a determinação de conteúdo, que aparece como conteúdo, sendo este apenas o Todo (Absoluto, Allgemeine). A determinidade (Bestimmheit) e especificidade como tal não é dada. O fundamento (Grundbestimmung), o caráter dessa primeira parte da filosofia da religião é, daí, a determinação da Totalidade (Allgemeinheit)”.[35] Por isso a religião
dos iluministas está morta em sua essência, e se torna meramente um instrumento
político quando nos vemos em uma época de crescente racionalidade, na qual
indivíduos passam a se guiar por este comando interno que é a
razão – bem ilustrado pelo desafio posto por Kant do sapere aude! [36] Hegel compara em
seu texto a religião positiva dos cristãos, que nada mais dizia à vida prática
no contexto germânico, e a religião imaginativa dos gregos,
cuja mitologia estava totalmente integrada com sua intensa vida cultural.
O grego não questionava a existência de seus deuses pois via a efetividade deles como o todo de sua cultura e modos de vida. Porque era
implícito que sua própria civilização havia criado aquelas formas de vida e
vinha aperfeiçoando-as conforme tal formas eram vivenciadas. Ao invés de uma moral
normativa (Moralität), encontramos neste
ambiente algo que Hegel chamou de Sittlichkeit – uma ética (Sitten no alemão = costumes). 3. O Eudemonismo constitui um terceiro tipo de teologia criticado por Hegel, foi inclusive o principal
alvo de toda crítica tecida por Hegel no extenso ensaio de 1802, lançado no
jornal que ele publicava com Schelling, ensaio
intitulado Glaube und Wissen (Fé e Saber)[41].
O curioso de mencionar o eudemonismo da época é que em qualquer pessoa que
tenha tido algum tipo de contato com as formas atuais de cristianismo irá
prontamente identificá-lo com o pentecostalismo e várias denominações cristãs carismáticas
dos tempos atuais. A definição dessa linha de religião é que “a religião
baseia-se no sentimento ou conhecimento imediato [de Deus]”[42],
linha teológica que Hegel identifica no pensamento de Jacobi e seu colega Schleiermacher. A deturpação aqui é que um tipo de consciência
que se entrega à sentimentalidade e identifica qualquer estado de afecção
passageiro (i.e. emoção de cultos sensacionalistas) como conhecimento imediato
daquilo que há de absoluto no universo, está aberta a todo tipo de equívoco. É
uma religião que “traçou linhas em um espaço vazio”.[43] E aqui não me foco apenas no cristianismo, religião com a qual Hegel teve contato. Existem incontáveis casos de práticas cujo argumento mais forte é a “arrebatação sentimentalista”, como a que descrevemos acima, em diversos países espalhados pelo mundo[44]. Parece uma forma injusta de explicar a “religião sentimental” por aquilo que há de mais extremo e absurdo nela, mas servirá para enxergamos várias facetas de um sistema de crenças que permeia o pensamento religioso de nossas sociedades atuais. Eu gostaria de dar um salto no tempo e parar em um texto publicado em 2006 por Juliana Ströbele-Gregor sobre a presença dessa forma de religiões na América Latina.[45] A. O problema social da religião A pergunta que circunda o texto de Ströbele-Gregor é: Por que motivo evangélicos (pentecostais) têm êxito com suas propostas absurdistas mesmo hoje, na época onde o espírito científico de certa forma é o guia oficial de nossas ideologias? Ao invés de resolver facilmente a questão afirmando que “a conversão se deve a promessas materiais e a uma hábil manipulação dos pregadores[46]”, a autora toca um ponto importante de análise. Um tipo de resposta rápida como esta indicada é primeiramente uma generalização reducionista que nada nos explica acerca de intenções humanas envolvidas na aceitação da religiosidade que tratamos aqui, além de negar às pessoas envolvidas suas subjetividades; ela contenta-se em colocar o ser humano como vítima, “objeto de engodo”. Portanto fujamos dessa via de análise sistemática para elevar a problemática a um nível mais revelador (visto que não queremos uma solução aqui, mas ampliar ao máximo nossa visão sobre esta problemática). A triste notícia que tenho aqui é a que não podemos dar nenhuma resposta totalmente certa para a pergunta suscitada no início do parágrafo acima. O ensaio de Ströbele-Gregor joga com várias manifestações atuais do cristianismo evangélico na América Latina como conjunto de formulações que tem êxito porque cobre os déficits sociais dessas sociedades[47]. “As confissões evangélicas tornam-se tão atraentes porque transmitem a sensação de que levam a sério os problemas e necessidades cotidianas das pessoas”; na medida em que entramos em um ambiente onde as minorias étnicas são historicamente relegadas a uma camada social desprivilegiada, o crente – seja ele índio ou negro – pode “se colocar acima dos incrédulos”. O valor do indivíduo não está mais em signos, sejam eles raciais e classistas, cujos valores são explícitos e decisivos no campo do social. Ao contrário, os fiéis possuem valor igual perante Deus. Estes elementos da religião cristã criam uma vivência comunitária no seio da comunidade evangélica que “proporciona uma trama espessa de relações sociais; preenche o desejo de segurança, de calor humano e de assistência mútua[48]”. Mas isto pode ser contestado, e nada explica formas mais individuais de religiosidade, mesmo dentro da categoria de religiões fundamentalistas e de forte apelo ao sentimento. Ao mesmo tempo em que essas religiões possuem um forte caráter coletivo, a experiência individual e cotidiana dela em escalas menores – na família ou mesmo na individualidade de cada fiel – é algo definitivamente enfatizado em todo protestantismo. Essa regra não muda no caso do pentecostalismo. E em troca de quê este
êxito indiscutível na integração de comunidades mais carentes se dá? Digo, se
há algo tão claramente contestável no pentecostalismo, ainda que ele tenha um
lado positivo em escala social, o que é tão negativo nele? Somente o fato de
ser uma visão de mundo irracionalista que não coincide com uma tendência geral
do pensamento atual? Certamente não. São claros os benefícios do
fundamentalismo cristão ao menos nas comunidades sul-americanas, mas não se
deve ignorar a aversão dessa manifestação religiosa à propostas emancipatórias (da mulher, por exemplo) e relação com a esfera
política (definitivamente mundana, secundária ao que realmente importa
na vida, que é a existência no mundo para além deste). Como explicar o fato de que nos anos 60 e 70 cristãos estavam apoiando a emancipação racial nos Estados Unidos, mas não a de homossexuais e das mulheres? Não se explica este tipo de coisa; o cristianismo, judaísmo, seja qual religião for, são todos sistemas de valores bem datados, delimitados por certas visões sociais das épocas em que foram criados, mas que de certa forma tentam contornar por ora ou outra seus fundamentos através de aberturas a reintepretações de tal ou tal passagem em seus livros sagrados. Se a ênfase no século XIX de que a mulher deve se submeter à vontade do homem da casa era algo praticamente indiscutível, hoje não se vê essa prática em famílias cristãs como se dava no período anterior: mulheres cristãs modernas trabalham, possuem até mesmos grupos de aconselhamento religioso próprio para elas nos seios de muitas comunidades evangélicas atuais. E o princípio de submissão da mulher ao homem foi retirado de livros religiosos? De forma alguma, ele está lá. Só acrescentou-se uma problematização à passagem, uma nota de rodapé, um senão. É curioso, se pegarmos pregações antigas que passam por esta questão há 50 anos, como os pregadores passam reto pela questão, sem muita preocupação em justificar o que o texto quer dizer: o que ele quer dizer está lá, que uma mulher em uma sociedade claramente patriarcalista deve se submeter ao marido, e ponto final. Agora observe a mesma cena nos tempos de hoje. Haverá uma boa dose de interpretações e tratamentos especiais à questão: do que significa submeter-se, de quais situações estamos falando, e assim por diante. O que quero apontar aqui não é se textos religiosos perderam sua vigoração conforme o tempo e comportamento social foi mudando (ainda que este seja argumento forte de muitos críticos), mas que qualquer manifestação religiosa não foge de outras manifestações sociais: suas discussões e direcionamentos serão fortemente marcados pelo contexto histórico em que se inserem. Se voltarmos agora para o que discutíamos antes de entrarmos nessa questão da religião na história, notaremos que a utilidade dela para causas sociais variará de acordo com as forças históricas que a circundam, ao tipo de grupo com o qual ela se relaciona, com quais ideologias compactua, com o nível de envolvimento com o governo, etc. Portanto foge de nossas pretensões dizer se religião é ou não útil por si só para o meio social. Sua aplicação deve ser investigada a cada momento. B. O problema intelectual da religião Filósofos geralmente devotam desprezo especial ao
imaginário religioso de raiz judaica pelo fato de ele se ater a um pensamento metafísico que ficou na Idade Média. Esta visão de
mundo se expressa pelo gosto bem evangélico por pintar um quadro do mundo onde
tudo é redimido – isto é, em que o mal feito neste mundo deverá ser
expurgado pelo mal-feitor no mundo para além deste, que o desemprego e
infelicidade do presente são conseqüências do pecado no seio da família (este é
um discurso bastante comum de igrejas pentecostais), etc. Mas esta deve ser negada como a verdade última da prática religiosa – é onde Freud, Nietzsche e Marx aparentemente tropeçam. Os três são responsáveis por uma modalidade crítica de pensamento que os caracteriza como ‘mestres da suspeita’; e é isso que vai se caracterizar como base para o pensamento da Modernidade[50]. Para resumir, os grandes pilares da vida do pensamento ocidental são demolidos pelo questionamento das três figuras: Sujeito, substância e verdade. Primeiramente a questão da vida intelectual do sujeito
introduzida por Descartes, de que o estatuto de ser está ligado à minha
atividade mental e que tudo que passível de existência para mim se deriva do cogito, é demolida por Nietzsche e Freud que
colocam a vida consciente como somente ponta de um iceberg da vida mental.
Freud foi mais fundo ao dividir a consciência em três áreas (o consciente,
pré-consciente e subconsciente), e ambos contribuíram para uma visão
aparentemente irreversível de que grande parcela de nossas pulsões se dá fora
de nossa escolha consciente, sejam elas impulsos mecanísticos (como pulsões de defesa a situações de perigo) ou naturais de nossa espécie.
Como isso vai afetar a visão que o homem tem de si irreversivelmente: sua
ação perde a liberdade romantizada pelos racionalistas, de que há um controle total de nossos empreendimentos
mentais, de que tudo pode ser conhecido e devidamente domado através de treino
adequado de nossas mentes. Até mesmo de nossas vontades – a reversão
dessa suposição vai gerar um grande questionamento acerca da volição. Marx entra aqui com uma idéia paralela a essa na
medida em que tira o sujeito de uma posição autônoma, intocável pelo que lhe há
de externo ao desenvolver certas idéias de Hegel: em primeiro lugar, o sujeito
não é uma substância cartesiana, mas parte de um corpo que perfaz a
totalidade do universo, (de sua comunidade, de sua nação, em diferentes níveis
de participação na composição mútua destes). Em segundo lugar, há uma permeação
do que é a identidade e pensamentos da comunidade (posicionamento
histórico em um ponto) onde o sujeito se encontra em suas próprias idéias;
somos interpenetrados por forças sociais e históricas que ao mesmo tempo
contribuímos para formar. A famosa expressão ‘a religião é o
ópio do povo’ a põem como forma cultural que o povo, se vendo vítima de
desigualdade e desprovidos de respostas concretas para (e contra) a desigualdade
social, vai despejar seus desejos por justiça eterna e dignidade. Nesta medida
ela é um ópio – não como algo que destitui o povo de sua realidade, mas um
remédio que ele buscará visto que seu meio social não justifica suas
necessidades por condições de vida decentes. C. O problema de enxergar religião como um problema Visto o problema acima, o filósofo francês Ricoeur, um cristão, reconhece que essas formas de suspeita
que a religião vem sofrendo via a teoria dos três filósofos mencionados são
passos pelos quais toda fé legítima deve passar. Em outras palavras, para eu me
dignar de ser um indivíduo com fé, eu necessariamente devo ter posto toda minha
crença em posição de investigação – ver se eu só quero assumir um sistema de
crenças sob um interesse narcisista de me justificar como parte do plano de
Deus, ou ainda como remédio para minha solidão e falta de sentido na vida (que
equivaleria com a crítica de Freud), ou se eu só assumo a religião de forma a
me fazer vingar da sujeição que outros exercem sobre
mim, imaginando um mundo celestial onde os ricos e opressores irão sofrer
eternamente (equivale à crítica de Nietzsche contra a resignação do
Cristianismo, que para ele é uma Sklavenreligion, “religião de escravos”). D. Para o início de uma problematização da autonomia Minha dificuldade em estabelecer um ponto que nos guie
para fora desse paradoxo atinge o ponto de difusão aqui. Paramos de lidar com um ser
humano que encara face a face suas escolhas religiosas por via de como ele se
relaciona com o mundo – o que descrevemos na religiosidade do Iluminismo – e
passamos a lidar com fatores externos que influenciam a escolha de uma vida
religiosa (abandonando uma ‘vida mundana’, para usar um termo corrente na
linguagem de igrejas evangélicas) e constituem verdadeiros fenômenos históricos
de aumento maciço de manifestações místico-religiosas. ”Esse homem e a humanidade são o seu ponto de vista absoluto, a saber, como uma finitude insuperável e fixa da razão; não como reflexo da beleza eterna, como foco espiritual do universo, mas como uma sensibilidade absoluta que todavia tem a capacidade da fé de se revestir aqui e acolá com um supra-sensível que lhe é estranho. [...] a filosofia não deve exibir a idéia do homem, mas o abstractum da humanidade empírica misturada com a limitação, e trazer a estaca da posição absoluta fincada em si mesma imóvel”.[51] É preciso
apontar para a invalidez de uma suposição muito comum em interpretações
metafísicas de Hegel – de que todo seu sistema é subordinado a uma noção
teológica cristã, de que seu conceito de Absoluto corresponde ao Deus
cristão. Essa afirmação é falsa. Hegel não fez
uma metafísica do espírito, mas uma fenomenologia. Phainomen no grego pode significar tanto aparência (Vorstellung, aqui em um sentido kantiano) quanto aquilo que há de evidente – a fenomenologia sendo, portanto, a apresentação
daquilo que é efetivo, que é o pensamento e o todo do universo. A lógica superficial da religião que vem sido desmontada por filósofos analíticos é (1) o suporte que conceitos-subordinados dão ao maior (Deus), que inicialmente os justificava. Por exemplo, o conceito de céu e inferno saem de Deus como formas concretizadas da salvação e perdição, respectivamente, provida por Deus dependendo do caminho que se toma em sua vida. Entretanto, uma vez que essas formas se internalizam no próprio mecanismo cultural, passa-se a convencer, direta ou indiretamente, que aceitar Deus como real e provedor de uma proposta ética digna de minha servidão na visão de ir ou não ir para este inferno, o que é no mínimo cômico. O ponto (2) é o que Dennett suscitou em sua obra “Breaking the Spell”: a própria estrutura de um sistema de crença como o da religião (em oposição a outros sistemas de crença) em que certos dogmas são estabelecidos para proteger a lógica da religião como um todo; não se toca em determinadas questões e postulados religiosos – afirmando que o próprio questionamento é uma transgressão dentro do rol de regras morais. Essa seria a ‘spell’ que coloca a religião em posição suspeita, em oposição a outros sistemas de crença que estão a todo momento se renovando e questionando sua validade a fim de atender às demandas presentes – este último é o sistema de crença que eu defenderia aqui. O ponto que os novos ateístas americanos tocam já desconsidera que questões dignas ligadas à religião sejam aquelas referentes à existência das entidades e preceitos religiosos – já que isso é nunca ir além da própria lógica do objeto de estudo, não ver além de sua miopia que é a formalização de qualquer visão de mundo, seja científica, ortodoxa religiosa, filosófica, sociológica. Deus, portanto, não precisa ser justificado – esse é algo que se nota claramente nos escritos religiosos de Hegel. Seu conceito de Absoluto é ambivalente, seu foco ao lidar com religião é completamente alheio à intenção de provar existência de algo. O suficiente é que a religião está aí como uma força social que acompanhou todo o processo civilizatório com importância considerável e é como tal – como processo social, sob um escopo antropológico – que ele a observará. Ao dizer que Kant, Jacobi e Fichte não entenderam exatamente do que se trata religião ao dividir suas análises dela em termos epistemológicos para nossa visão racional. Em outras palavras, em ‘como podemos saber se Deus e alma existem’. Ao fazerem isso, eles se divorciam de antemão dos termos práticos e mais gerais da religião, que remeteriam a um aspecto da religião que vai de encontro com princípios de manutenção da ordem moral em uma comunidade, e muito além disso, com um aspecto de conjunção e conhecimento do mundo através de elucidações sobre o Todo do mundo, a origem e unidade dele através da figura de Deus. No final da Fenomenologia do Espírito fica bem claro que religião é um modo e passo no processo de conhecimento do mundo – o saber religioso não consiste em termos de conhecimento de mistérios sobrenaturais, da estrutura e intenções de Deus, mas da conceptualização da totalidade das coisas, do entendimento d funcionamento da totalidade do processo como parte formadora do todo e como todo que forma cada parte – por mais reprovável que possa ser essa pretensão, nota-se que o tipo de alcance que Hegel busca em sua formulação da religião foge bastante da idéia que Kant suportava dela, típica de quem pretende conhecer o mundo de sua biblioteca: formular aspectos teóricos de processos sociais que muitas vezes carregam simbologias imanentes de significado e história, ou são em si a própria simbologia de anseios e buscas humanas. Todo questionamento religioso produtivo será relegado ao campo das questões subjetivas; como escolha individual eu vou sugerir (seguindo uma formulação muito mais complexa que não será exposta aqui, a de Kierkegaard) que não há conhecimento que guie as escolhas possíveis aqui para um alvo certo e verdadeiro. A filosofia da religião, assim, encontra um campo fecundo para conclusões somente no auto-questionamento. Seguindo o projeto de Foucault, nos interessa a forma como lidamos com nossas verdades, mas não as verdades mesmas. Não se trata de qualquer auto-questionamento; a questão exige um nível de despreendimento de si muito maior, muito mais fiel à realidade de minha subjetividade como esfera munida de uma configuração própria de valores e julgamentos. Eles devem ser, na medida do possível, para fins inicialmente experimentais, postos de lado. Estamos lidando aqui com um plano em que trabalha a especulação e o jogo de espelhos da subjetividade, onde eu penso minha situação para além das crenças que assumo e readmitido para mim a cada momento, onde minha ação se revela em toda sua crueza como resultado determinadas assunções. Esta ação que afetará minha relação com o mundo fora de mim, e construírá algo que mais tarde mentalizarei como narrativa da minha vida, daí a importância de vê-la desnudada. Neste momento do processo de auto-conhecimento eu já ganharei olhos que contemplarão uma projeção de minha própria ação no tempo em um novo ser em devir, um Eu como um Outro, uma auto-imagem desprendida. Na imediatidade do instante que exige de nós uma posição (um pôr-se), o caráter próprio de nossa imagem de si é aquele de imagens fugidias, advindas de momentos de improviso, de externalização inesperada de mim mesmo sob a ameaça iminente do momento em que se deve construir minha face para o mundo, selecionar uma dentre inúmeras imagens do jogo de espelhos para me expor ao mundo como um valor, como um signo. Este signo é o agente no mundo em si, ele que será a sombra que se desprende de mim e toma vida própria como acontece com todos aqueles que estabelecem um pacto com o diabo; aqui o pacto se realiza com um mundo que violentamente suga minha imagem, minha projeção imediata de mim mesmo, cravejando este reflexo incerto e incompleto em sua narrativa para todo sempre. Note
que uma tentativa como esta não está em busca de um sujeito transcendental,
que terminantemente não existe. Nossas crenças e sistemas de auto-defesa contra universos de pensamento diferentes não formam a ‘casca’ de
subjetividades (ligo aqui a imagem à de uma fruta qualquer), de forma em que, se
nos livrássemos da casca protetora conseguiríamos atingir um núcleo vivo e
pulsante daquilo que somos verdadeiramente, livres da repressão de nossas
certezas e pré-conceitualizações. Ao contrário, nossa
subjetividade se ateria muito mais à imagem de uma cebola, onde, após
retirarmos todas as cascas protetoras, não encontraríamos um núcleo vivo, mas
um nada. O estatuto do Eu está muito mais próximo de ser a totalidade de
suas crenças e informações que ele se dá por serem conhecimentos ou verdades (quando eu falo que tenho certos ‘conhecimentos’, sempre
estou assumindo algum nível de verdade na informação que tenho). A religião
funcionará como uma dessas camadas que nos responderá certas perguntas
necessárias para nos manter de pé ou gerar identidade comum com determinado
meio social; somente isso. Ela é a formalização do caráter de nossa informação
a respeito de Deus, da alma, do destino. E essa informação é intransferível,
ela só deixa de ser uma mera informação e vira um conhecimento, uma verdade,
enquanto morar dentro de nós e se ligar ao conjunto de outras crenças e ações
que eu como unidade subjetiva produzo. Isso nos coloca na obrigação de lidar com nossa teoria do ser a cada momento em que agimos – diferentemente de uma suposta obrigação para desenvolver conhecimentos de gramática estrutural ou funcionamento de nossas pernas. Não temos obrigação nenhuma com essas coisas, elas vão ocupar nossa preocupação somente no momento em que pararem de funcionar (se perdermos a articulação na fala ou movimento das pernas, para seguir o exemplo dado). Quando tratamos, porém, de ser, a exigência de se re-colocar e reinventar através de nossas ações se renova a cada instante. Ela só deixará de ser uma preocupação quando parar de funcionar, quando morrermos. Neste ponto que algumas formas de encarar religião são perigosas, ela coloca toda esperança no momento em que não existe mais vida e possibilidade de lidar com as coisas. Podemos escolher repetir nossas certezas e hábitos durante a vida inteira; mesmo assim cada segundo de nossa vida será feito de escolhas (ainda que sejam as mesmas escolhas). E, para seguir uma formulação existencialista, a responsabilidade por cada uma dessas escolhas será total. Não se trata de dar uma resposta programática para o que se deve fazer com nossas crenças, portanto. Mas muito mais atentar para a importância de seu papel na medida que nossas crenças são tudo o que somos, na condição de codificadoras do caráter de nossas ações. Bibliografia BELTING, Hans.”A Imagem
Autêntica” in: Humboldt 92. München: Goethe-Institut, 1996,
pp.28-31. Vídeos e conferências TTC The Self under siege Notas de Rodapé [1] Contra essa minha colocação eu já espero ataques: democracia nos Estados Unidos (por exemplo) é coercitiva e violenta pois não é de fato uma democracia! Ouve-se o mesmo do comunismo: o comunismo na Rússia, China e Coréia do Norte nunca foram comunismos, mesmo tendo se fundado sob preceitos e teorias comunistas; todos são desvirtuados de uma forma pura de comunismo. E se não houver forma pura de prática social teórica como comunismo e democracia, as teorias irem simplesmente contra tudo o que há de plausível nas manifestações sociais humanas?! De fato a Igreja tentou durante muito tempo justificar os malefícios da religião acusando pessoas específicas de determinadas práticas; hoje em dia este tipo de argumento não funciona, estão todos cansados disso. Vamos imaginar como o corpo da religião – que inclui suas teorias metafísicas, morais e sociais – é potencialmente causador de certos efeitos. [2] Hitchens, 2007: 49-51. [3] HEGEL, 1977. [4] Obviamente que se trata de um convite a uma análise genealógica, já que um simples remonte histórico da religião nos trará conclusões ambivalentes. Porém devemos tomar cuidado para não cair na velha crença do século XIX de que o caráter presente na origem de um determinado fenômeno social nos liga necessariamente ao caráter atual do fenômeno (este é o apelo da genealogia da moral de Nietzsche). A sugestão é que tal pressuposição não é necessariamente correta. Mais considerações a respeito seguem-se no corpo do texto. [5] Burmeister, 2006: 16. [6] Belting, 2006, 28. [7] Aqui estou pensando em Ravi Zacarias e Dinesh D’Souza. [8] Darwin apud Sloan, 2003: 38. [9] Brooke, 2003: 207-208. [10] Kierkegaard, 1962: 33. A fonte diz: “Our age is essentially one of understanding and reflection, without passion, momentarily bursting into enthusiasm, and shrewdly relapsing into repose”. [11] Aqui não é a voz de Kierkegaard falando, mas uma assunção minha. Essa perspectiva cairia mais em uma linha de pensamento hegeliano, para quem o protestantismo ponto essencial da evolução (em rumo à liberdade do indíviduo) do cristianismo medieval. Ver Phänemologie des Geistes Kap.IV §- e Philosophie der Religion. [12] Hitchens, 2007: 103-4. [13] Aqui há discordância entre teóricos, “Huxley referiu-se às ciências como nem cristãs, nem anti-cristãs, mas extra-cristãs” (Brooke, 2003: 204). Pioneiros da ciência ocidental, como Copérnico, Kepler e Newton certamente pensavam, a respeito de si próprios, como estando desvendando a harmonia matemática presente na natureza, esta sendo produto não do acaso, mas de escolha divina (ver Brooke, 2003: 209-10). [14] Kant, 2006: 450-456. [15] A pergunta é retórica; pouco importa a origem. O problema será recolocado adiante. [16] Dennett complains to the mysterians: ‘You must not expect me to go along with your defense of faith as a path to truth if at any point you appeal to the very dispensation you are supposedly trying to justify. Before you appeal to faith when reason has you backed into a corner, think about whether you really want to abandon reason when reason is on your side.’ (350, ver nota 70). [17] “On several occasions he said that he could not believe so wonderful a universe is the product of chance alone. He was attracted to the formula that it was the result of designed laws, with the details left to chance. But then the distinctiveness of his agnosticism shines through. He had convictions that the universe in its main lines of development was not the product of chance. Convictions of that sort were what agnostics were not supposed to have. Yet, disarming as ever, Darwin asked whether he should trust his own convictions – especially if his own mind was the product of evolution: ‘Can the mind of man, which has . . . been developed from a mind as low as that possessed by the lowest animals, be trusted when it draws such grand conclusions?’” – Brooke, 2003: 202. [18] A primeira contradição aqui é que exista de fato uma narrativa como história coesa, onde o fim justifica os meios. Ambas formas de enxergar as respostas metafísicas básicas – religião e ciência – irão de certa forma desenvolver suas respostas de forma a adaptar o funcionamento do universo a algum fim que elas tentarão deduzir. [19] . [20] BIERCE, Ambrose. The Devil's Dictionary. Entry: religion. [21] BLOOM, 2001. [22] Nietzsche, no desenvolvimento de seu perspectivismo, irá substituir a palavra Wahrheit (verdade) por Für-wahr-haltend (aquilo que se toma por verdade, aqui continuando o projeto hegeliano de destruir a noção metafísica de identidade, substituindo-a por um devir). Em face disso, o ato de constituir um sistema de pressuposições e crenças passa a ser guiado pela necessidade e conclusões que eu tomo para o problema que enfrento no momento em que o encaro; aqui a verdade assume um caráter transitório que Hegel já afirmara no capítulo I da Fenomenologia do Espírito. [23] Culler, 1997: 2-3. [24] Hitchens, 2007: 100. [25] HITCHENS, 2007: 101. “[it] is not even a theory. In all its well-financed propaganda, it has never even attempted to show how one single piece of the natural world is explained better by ‘design’ than by evolutionary competition”. [26] Hegel, 2007:173. [27] Há em Kierkegaard críticas a Hegel espalhadas por seus escritos, mas o mais coeso e destinado ao desmonte do tipo de Cristianismo herético, segundo Kierkegaard, que Hegel vinha defendendo consta no Concluding Unscientific Postscript. [28] ”What Kant and Jacobi have done, however, should not be understood as the failure of a couple of individuals; rather, they represent the consummation of Protestantism” (Kaufmann, 1966: 77). [29] Copleston, 1994: 162. [30] O “Amai teu próximo…” se traduz no imperativo moral de Leibniz, a partir do qual Kant foi desenvolver seu problemático imperativo categórico. Se Leibniz afirmava “Não faças nada que não quiseres que os outros façam contigo” (o ‘amai teu próximo’ em termos diferentes), Kant o substitui pelo “Aja de forma que tua ação possa ser praticada universalmente”. Kant irá discutir a vantagem de sua formulação sobre à de Leibniz, dizendo que a boa ação de Leibniz é implicitamente voltada para o próprio sujeito que a pratica, ele só fará algo bom para que nada mal lhe aconteça, resultando em uma forma de postura egoísta. LaRochefoucault porá em questão posteriormente: qual ação humana não é movida por algum interesse? O próprio bem-fazer do cristão visa a salvação da alma e é movido por algum interesse. LaRochefoucault não aponta essa característica como algo imoral, mas simplesmente humano. [31] “Hegel went straight on from the rational justification of the Gospel to the question of how it had become the foundation for a "positive religion" (i.e., a faith that accepts the revelation of an external "law of God" and attaches itself to external fetishes of all kinds). This was completely contrary to Jesus' own gospel; but even when He was alive, He could not escape from the conceptual net of the Jewish tradition, and the dead Savior became the supreme fetish of the new faith” (Harris, 1993: 30). [32] Inwood, 1997: 284. [33] Ver a Fenomenologia do Espírito §123. [34] A religião inclusive ocupa um degrau acima da Moralidade na Fenomenologia. “[...] no mundo ético nós vemos uma religião [...] do submundo [Unterwelt].”. Ver §§674-677 da Fenomenologia do Espírito. [35] „Im dem einfachen Begriff der Religion ist das, was als Inhalt erscheint, die Inhaltsbestimmung, nur das Allgemeine. Die Bestimmtheit, Besonderheit als solche ist noch nicht vorhanden. Die Grundbestimmung, der Charakter dieses ersten Teiles der Philosophie der Religion ist daher die Bestimmung der Allgemeinheit“, ver Vorlesungen über die Philosophie der Religion, no segundo item da seção Religionsphilosophie (Hegel, 1955:175). [36] Kant, 1985: 100-117. [37] Harris, 1993: 31. [38] Daqui vem uma importante distinção em Hegel de Moralität (moral) e Sittlichkeit (ética): a primeira normativa, imutável e inquestionável, a segunda prática, mutável e necessariamente questionável. Defender uma disciplina filosófica chamada ética, que é a teorização de formas de como viver individualmente e em sociedade, nos põe contra a frieza de um código moral, que é a realidade de nossas legislações atuais e os poderes ligados a elas (polícia, por exemplo). [39] “[...] se a bem-aventurança é compreendida como idéia, ela deixa de ser algo empírico e contingente, bem como algo sensível. O fazer racional e o deleite supremo são unos na existência suprema, e querer apreender a existência suprema pelo lado de sua idade [...] é completamente indiferente quando a bem-aventurança suprema é a idéia suprema, pois o fazer racional e o deleite supremo, a idealidade e a realidade, estão ambos de igual maneira nela e são idênticos” (Hegel, 2007:24-5). [40] It must be reintegrated into a public-spirited educational power. The great advantage of Christianity was that, unlike the public religion of the Greeks, it was a religion of universal love and brotherhood. In this sense, its doctrines were already "grounded on universal Reason." If the principle of love is what appears, while Reason remains the ground behind it, there is no need for "fancy, heart and sensibility to go empty away" (Harris, 1993: 29). [41] Hegel, 2007. [42] Inwood, 1997: 284. [43] Ibid. [44] Na realidade houveram períodos inteiros de proliferação de seitas religiosas bizarras pela América, todos eles bastante curiosos, retratados por Philip Jenkins em seu livro Mystics and Messiahs: Cults and New Religions in American History. Sobre o livro ver Kick, 2001: 286-9. [45] Ströbele-Gregor, 2006: 18-19. [46] Ibid.: 18. [47] Ibid.: 19. [48] Ibid.: 18. [49] Freud, 1927. [50] Não me refiro à modernidade filosófica que se inicia com Descartes, mas cultural, como resultado de processos de industrialização e burocratização da vida social e econômica, tendo seu início mais ou menos nas últimas décadas do século XIX. [51] Hegel, 2007: 32. [52] Hegel, Glaube und Wissen ao invés de Glaube oder Verstand. O conceito de fé faz sentido aqui não como uma crença encarada como formulação cindida daquilo que somos (como Freud imagina), mas aquilo próprio que se deixa revelar em nossa posição de si mesmos no mundo, como estágio precedente ao da consciência (Gewissen) da congruência do Absoluto como parte de minha unidade e identidade.
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