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FELIPE VALE
Iluminismo, Idealismo Alemão, Estética, Autonomia, Teorias de massas, Heidegger, Religião
'O Sistema dos Objetos' de Jean Baudrillard | Heidegger sobre seus problemas | Religião e autonomia | Autonomia e Vigilância da Vontade | "Em algum momento a realidade não foi hiperreal?"
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Sobre o anônimo

RELIGIÃO E AUTONOMIA
FELIPE VALE
1 ed. Jun/2008
Texto publicado em Informativo SEMCP #19 (Jun/2008)

INTRODUÇÃO
A. Repensando o papel da prática religiosa e de sua crítica

Em idades de trevas as pessoas são melhor guiadas por religião, da mesma forma que em uma noite negra um cego vale como o melhor guia; ele conhece as ruas e caminhos melhor que um homem capaz de enxergar. Contudo, quando a luz irrompe é tolice utilizar-se de homens cegos como guias.”

    – Heinrich Heine, Gedanken und Einfalle.
(Minha fonte diz: In dark ages people are best guided by religion, as in a pitch-black night a blind man is the best guide; he knows the roads and paths better than a man who can see. When daylight comes, however, it is foolish to use blind old men as guides).

            Este não é um ensaio cético, a princípio. Pode parecer pouco usual expor um texto através da definição do que ele não é, mas meu cuidado se justifica. Quando abrimos um livro contemporâneo de filosofia que fale sobre religião, geralmente o pressuposto de que ela é uma prática cultural imprestável torna-se visível logo nos primeiros parágrafos, antes que os argumentos para se afirmar isso sejam dados. Parece-me que ateístas e religiosos entravaram uma batalha de defesa de partidos, e que nada de muito útil irá sair disto. Eu tenho três livros do gênero a minha frente no momento: God Delusion, God is not Great e Everything you know about God is wrong. Todos os três, sem dúvida, ótimas formas de colocar a religião praticada em uma posição crítica, ao mostrar o que há por trás de sua face de bondade e complacência; mas há algo nesse tipo de retórica que nos sugere que, só por partirem de títulos bombásticos como estes, eles já conseguiram suportar a tese de que religião institucionalizada é algo nocivo no nosso mundo antes de dar as justificativas. Seu conteúdo é espetacular, como são as pregações religiosas de canais abertos na TV.

O formato argumentativo do novo ateísmo é estritamente empírico, disseca fatos escolhidos pelos autores com maestria, remonta a história de certas práticas, calcula o sofrimento de muitos humanos a partir dessas formas coercitivas de prática religiosa. Isso sem dúvida é verdade não só na prática da religião, mas da democracia (algo que, por acaso, todos os três autores defendem com fervor), do socialismo, de teorias filosóficas éticas.  Em outras palavras, eles são unidimensionais tratando de tipos de religiosidade bem pontuais, de uma época específica, não nos dão respostas de peso filosófico satisfatório acerca do assunto: “o que seria uma prática religiosa ausente dos malefícios institucionais da religião?”, “como lidar com o fato de que todas as pessoas têm algum sistema de crença, coerente ou não, que os guia a viver e como isso se difere de uma religião”, “em que medida poderia-se mudar o formato da prática religiosa, a fim de separá-lo totalmente da vida política e social”, etc.

Ainda que a intenção dos três seja legítima – e realmente eu concordo que religião seja um assunto preocupante, um campo aberto para imbecilização de uns a troco da corrupção de outros – chega-se a um nível delicado em que, para eles, é possível pensar democracia como um ideal a ser tomado como referencial (não importa se sua prática é violenta, coercitiva, repressora), mas jamais pensar como religião pode ser colocada como ideal de auto-conhecimento e ação ética: elas sempre deve ser calculadas pelo seu poder de tirar autonomia de indivíduo, atender suplício de pessoas débeis e reprimidas, pela violência que gera entre membros de profissões diferentes. Isso deve ser relativizado de certa forma.[1]

Negarei aqui, portanto, um ceticismo gratuito. Ao escolher acima, entre tantas outras citações possíveis, a bela imagem de Heinrich Heine acerca de sua visão da religião, estou de certa forma pondo em jogo a representação que a Modernidade tem da religião – suporte ela uma religião como prática social dedicada aos domingos e feriados santos, como verdade absoluta, ou ainda como algo que deve ser extirpado.

Heine avalia a religião através dessa imagem fortíssima do guia, onde em determinado ponto de uma suposta jornada (já que, em sua imagem, supõe-se que alguém está indo a algum lugar), o sentido desse guia, cego porém sensitivo, desvanece pela própria clareza da época. A atuação do guia, da religião, é minada conforme uma consciência é inoculada em cada um de nós para continuarmos nossa própria jornada guiados por nossos próprios olhos, já desvendados. Tudo que tenho a declarar é que retorno a esta mesma jornada como indivíduo em meio a uma massa que se guiou pelos próprios olhos assim como outros indivíduos foram guiados por um cego, séculos atrás. E os resultados parecem ser tão frustrantes quanto o de meus predecessores: não se chegou a lugar algum. Eu me retiro da horda cética e proponho algo diferente neste ponto. De que estas jornadas e caminhos descritos por Heine podem estar traçando apenas o caminho de nossa redundância, nos levando não a algum lugar, mas a lugar algum.

Nos ateremos, assim, de entrar nesse embate contraditório de ateus e religiosos pela verdade última do mundo, pela verdade acerca de como a religião é praticada e afeta a (e é domada pela) ordem social. Seguindo os passos de Foucault, eu acabaria dizendo que não importa a verdade, mas relações dos indivíduos com suas verdades. Como isso vai definir nossa relação com os valores suscitados pela religião é o que vai realmente importar aqui.

 B.

Prospecto: Um dos pontos onde vou estacionar será este aspecto da teologia e também do ceticismo que rodeia de certa forma a opinião comum, que se esforça por tirar praticidade da religião – e de como a religião mesma se envolve neste jogo, de forma que ela mesma, vendo a si mesma sendo inutilizada pela tendência imediatista e funcionalista sob cujo eixo gira o projeto cultural da Modernidade esclarecida, passa a se moldar a tais tendências, divulgar-se como saciadora de perguntas existenciais, uma verdadeira prestadora de serviços espirituais, ela que foi durante toda história a despótica senhora das almas, nunca tendo se dado ao trabalho de justificar-se perante um tribunal que não fosse um que se pronunciasse em sua própria língua, expelindo sentenças previamente resolvidas dentro de seu campo de valores, domesticamente circunscrito. Aqui forjo um tribunal clandestino que reconta e reavalia brevemente a forma que a religião é sentida e empunhada, sob o ponto de vista crítico dessa sua transição de juíza para réu, para que tal fenômeno seja esclarecido aos olhos de um júri dividido, e reavaliação do sentido de nossos sentimentos religiosos, assim como fervores anti-religiosos, siga-se daí.

Ainda que este ensaio lide quase exclusivamente com monoteísmos – sobretudo o cristianismo protestante, em cujo meio eu mesmo cresci e tive contato com aspectos metafísicos, morais e políticos da religião – isso não elimina outros segmentos religiosos da análise, já que os monoteísmos milenares são muitas vezes modelos para seitas e cultos menores que seguiram a partir deles. Religiões panteístas (algumas mais antigas que o cristianismo) carregam os mesmos atributos metafísicos e políticos tratados aqui.

Uma próxima consideração: religiosos podem questionar a seriedade de um ensaio como este que se propõe a analisar a fé secularmente, fora de sua construção de significados e contexto; que já renega a discussão da religião considerando se seus preceitos metafísicos (existência de Deus, da alma, de um mundo além deste) sejam verdadeiros ou não. Realmente, pouco importa para o que vamos observar aqui: analisar a mutação à qual a religião institucional vem se submetido para se adaptar ao mundo e suas tendências, ainda que ela se julgue uma verdade eterna e independente da sociedade secular. A tese, note, é menos pretensiosa do que parece; não quero dar nenhuma teoria geral da religião, ou dizer porque as pessoas atendem seminários religiosos ao invés de entrarem para um curso de natação, ou o que leva alguém a se explodir em um avião contra um prédio comercial em função de um pretenso mandamento de seu deus, (...).

Ao contrário, e aqui já expresso uma justifica a mim mesmo por estar escrevendo este ensaio, o que busco é um prefácio para um projeto maior de análise de como a cultura cristaliza suas normas e constitui gestos sociais, sob quais condições e com quais intenções; em como pessoas aceitam gestos pré-definidos pela cultura e se conformam a se ajoelharem perante o mesmo Deus, utilizarem o mesmo jargão de culto ao tratar de assuntos elevados, se interessarem pelas mesmas coisas, pensarem os mesmos pensamentos. Isso coloca também a ciência e o racionalismo em posição crítica (como veremos em seguida), que são eles mesmos instituições com seus próprios paradigmas e limitações para o conhecimento e um exercício do pensamento liberto de potestades do pensamento especulativo e teleológico.

            Tanto nas religiões quanto nas ciências, o que vem sido buscado na pesquisa para este ensaio se expressa pela seguinte cena: há um momento no qual aquilo que criamos para servir à nossa vida individual ou em sociedade se transforma em um imperativo pelo qual vivemos e matamos. O mesmo princípio de impraticidade se aplica à religião, à ciência, no momento em que elas viram parâmetro em si para agirmos. Uma comunidade cria religiões que acompanham o processo de civilização unindo pessoas sob o julgo de uma unidade cultural coesa, com práticas sociais previstas e suportadas pela religião, até o momento em que religiões começam a separar pessoas, crenças, partidos e ilhar outras dentro de seu grupo, com suas certezas divinas em mãos. Ou ainda, investe-se em pesquisa e meios para ciência afim de que a sociedade seja provida de seus benefícios, até o momento em que a ciência é utilizada contra a sociedade (como suporte técnico para atos genocidas, por exemplo), ou se torna ela mesma um objeto de adoração fetichista por entusiastas semi-educados em suas disciplinas (gerando essa forma contemporânea tosca de progressismo através de uma mitologia científica; adestrando o corpo à manipulação de acessórios tecnológicos; transportando comunidades inteiras de volta à infância ao servirem de pretexto para liberação de suas fantasias acerca de clonagem, manipulação de DNA, imortalidade, etc). Seguindo a forma que muitos cientistas acusam a religião de retirar pessoas deste mundo factual, a própria ciência acaba por servir em certos casos de utopia imbecilizante para as massas, com seu próprio messias esperando a humanidade passivizada em algum ponto do futuro (um messias chamado ‘progresso técnico’) e dogmas comportamentais.
            Essa visão de ciência e religião pode carregar uma boa dose de dramaticidade, focando-se no que há de pior tanto em uma quanto em outra, desconsiderando o uso de religião e ciência como pretexto para livre veiculação de imbecilidade e má fé tão comum nas práticas humanas. Mas note que somente o fato de as duas gozarem de um estatuto que favorece práticas diversas sob suas asas nos dá motivos de sobra para repensarmos ambas com suspeita.

            Portanto, um bom uso deste ensaio estenderia seu significado e método de análise para quaisquer formas de crença e busca de condução para além de si próprio, para além deste mundo – sejam elas institucionais ou não.

C. Por um método antiteleológico

            Uma última consideração: a mutação inerente à história das religiões (que se supõe serem verdades extratemporais) não é um argumento válido para negar-se ou aceitar-se religião – isso eu quero frisar desde já. A questão é muito mais complexa. Meu primeiro ponto neste ensaio será traçar como as várias formas de lidar com a religião se inseriram no tempo e coexistem hoje em nossa sociedade – de forma que temos teístas como os do século XVI cuja revelação da Divindade é inquestionável e deve ser aplicada ao pé da letra, e neocristãos que tentam apoiar sua crença através de ciência e revisão de suas regras morais. Ou seja, se trata da representação de cada período não pelo ponto no tempo (ano, década), mas tendência tornada pública na vida cívica. Aqui entra uma proposta anti-historicista de análise; não é porque estamos em 2008 que não é possível haver pessoas que lidam com religião como se lidava normalmente no século XVI; é um caso até recente o fato de grupos islâmicos extremistas terem proibido a população de seus países aceitarem a gotas imunização de poliomielite cedida pela UNICEF para crianças, alegando uma suposta ‘conspiração americana’ que tornaria as crianças impotentes por compactuarem com o inimigo cristão.[2] O mesmo obscurantismo era comum na Idade Média quando o poder de cura de ervas medicinais era atribuído ao diabo, e seu uso, até mesmo nas várias grandes pestes da época, era proibido; melhor ter a população dizimada a compactuar com o desconhecido, que desde então assumia a face do diabo através de manipulação simbólica. A tendência crescente de medievalismo, que agora se reapresenta nos rótulos fundamentalistas do século XX, deveria ter sido deixada no passado; não é o caso. Não somos otimistas a ponto de deixarmos esse detalhe passar despercebido.

              Deixo, portanto, qualquer leitura sob paradigmas teleológicos de lado aqui; não há avanço nenhum em nível cultural simplesmente porque de certa forma as ciências e filosofia avançam conforme seus edifícios de entendimento são incrementados com novas visões sobre questões discutidas desde o passado. A cultura geral é afetada por diversas forças e tendências, sendo as ciências (exatas e humanas) apenas uma delas. Há o outro nível de atuação da filosofia e ciências de análise que é: todas chegam tarde demais para explicar com clareza um processo histórico ou evento[3]. Portanto ciências contemplativas sempre estarão alguns passos depois da atuação imediata dos fatos; ao pensarmos em como propostas éticas se põem em teoria e sua relação com a prática social, devemos considerar este deferendo.

Capítulo I  - Da origem da religiosidade aos fins da irreligiosidade

Quis custodiet ipsos custodes?
(Quem vigia o vigilante? – dito romano)

            Eu considero o assunto, a matéria bruta da religião, sendo tão pouco claro, mesmo para pessoas que dedicaram todas suas vidas para a religiosidade, que vejo necessidade em não começar o ensaio sem uma resposta clara para as questões[4]:
           i - De onde vêm as religiões?
           ii - Com que pretensão e necessidade elas surgiram?
           iii - De onde vêm a anti-religiosidade?
           iv - Com que pretensão e necessidade ela surgiu?

A. Origem

              Dois indivíduos chamados Daniel Dennett e Hans-Peter Burmeister definem a origem das religiões de um modo que nos daria uma resposta para a primeira e segunda questões: as religiões são “empreendimentos para a autocompreensão do gênero humano”, “é um daqueles instrumentos culturais mediante os quais o ser humano tenta entender a sua posição insegura dentro da criação”[5]. O curioso é que Dennett é um crítico virulento da religião, ao passo que Burmeister poderia ser chamado de um entusiasta de uma visão pós-secular da religião. Para ambos ela surge de uma época onde o homem desfruta de meios escassos para explicar sua presença no mundo e controla poucas ferramentas técnicas para garantir um destino seguro de sua espécie perante o fluxo da natureza; narrativas de textos sagrados das mais diversas são povoadas com sociedades ameaçadas por pestes, guerras, escassez e terror.
              A religião e a ciência possuem daí uma raiz comum: Dennett faz uma genealogia dos empreendimentos culturais humanos de grande porte onde uma proto-religião e uma protociência se confundem, elas simplesmente são a mesma coisa e trabalham para os mesmos fins. O conhecimento que o xamã ou líder religioso que seja da tribo primitiva imaginada aplicava na execução dos rituais (sintetizados por ele) reflete o conhecimento que aquela tribo, aquele microcosmo de civilização, adquiriu a respeito de sua própria existência até aquele momento. A religião aqui é a expressão das reações comuns daquela tribo perante a incomensurabilidade de tudo que a rodeava, formulando gestos comuns das técnicas desenvolvidas contra a natureza assustadora da qual eles se entendiam como parte ínfima. O que há de simbólico no ritual religioso da tribo, aqui – suponhamos, sacrificar algo para o Deus Serpente – assume um teor pedagógico, em um contexto onde todo conhecimento deve ser cuidadosamente transmitido e tornado compreensível já que o maior problema daquele mundo primevo é justamente a escassez de conhecimento.

              Monoteísmos surgiram na infância da civilização humana, em um momento da cultura onde coincidiu a transmissão de sabedoria dos grandes povos da Antiguidade tanto via narração mítica quanto via imperativos práticos, como princípios de legislação moral e cívica de povos em formação. Todas as narrativas míticas das religiões não se saciam em definir os deveres e origens da espécie humana e sua subjugação a um ser supremo em termos realistas; ao contrário, elas trazem um caráter mágico, repleto não só de fenômenos sobrenaturais como também de um rol imenso de criaturas que povoaram a imaginação dos primitivos. O simbólico sempre foi utilizado como, simultaneamente, proliferador de significado e simplificador do mesmo; coincidentemente não há religiosidade sem um apelo ao simbólico, sem a sublimação do banal e material pela ramificação de significados mágicos latentes em cada aspecto de nossa relação com a Natureza. A imagem traz em si esse poder de espelho de projeções, “nelas procuramos provas daquilo que queremos ver com os nossos próprios olhos”.[6] A religião em seu estágio primordial é a concretização deste caráter auto-reflexivo de uma comunidade na própria expressão de sua humanidade.
              Estendendo este princípio relacional dos primitivos na imagem acima, nos espantaríamos a nos deparar ao espelho com a mesma face inquiridora do passado de nossa espécie: vive ainda, na profundidade labiríntica de nossos olhos, aquele mesmo princípio que nos move a buscar conhecimento de qualquer natureza a qualquer custo. Este brilho nos olhos é o resplendor que enxergamos na história da filosofia e ciências como ápice de nosso edifício de saber: um impulso de querer abarcar o que está à nossa volta de forma a podermos manipular tais objetos com vivacidade maior, fazê-los agir em nosso favor. As várias formas de auto-reflexão do gênero humano, (seja ciência, filosofia ou religião), advém do desejo de justificação da própria vida, de construção de um solo semântico sob o qual podemos calcar os pés. Este passo faz parto de um processo necessário de definição do que somos, do que iremos fazer de nossas vidas. Porém, este processo está intimamente ligado às circunstâncias de nossa época: durante os anos 50 nos Estados Unidos da América podia ser satisfatório para muitos comprar uma casa, ter um bom emprego e criar uma família virtuosa dentro dos padrões morais dessa época; para gerações posteriores isto é tudo que foge da vida. Talvez a vida seja o que comece quando já temos estes alvos burgueses eliminados ou atingidos. A religião, como parcela de nossa definição do que queremos ser, irá estar permeada por todos os lados destes momentos históricos.

B. Meio

              A diferença é que nossos antepassados eram ignorantes por serem pouco informados; hoje somos ignorantes por sermos super-informados, como diz Baudrillard. Se antes o deserto semântico desesperava o homem, fazendo-o buscar o significado de sua existência, atualmente as preocupações deste mesmo protótipo de homem mora na multiplicidade de propostas que se oferecem a ele. Ele se encontra perdido, desorientado pela infinidade de sinais apontando para caminhos diferentes, pisando em um solo cultural em estágio de semiorragia. Chegamos a um ponto da história de nosso conhecimento onde não conseguiremos ter contato com todas as ramificações virtuais de um assunto, seja qual ele for, em sua completude. Por não vivermos suficientemente para isso, por não vivermos rápido o suficiente para transpassar a insaciabilidade que o maquinário devorador de assuntos gerais por trás de tudo – que manipula as cordas presas aos membros da humanidade, como um ventriloquista – opera seu instrumento avidamente.
              Suas propostas “auto-reflexivas da humanidade enquanto gênero” acabam por perder seu caráter especial quando, para onde quer que se olhe, há uma proposta de salvação e explicação de nosso destino – aqui já me refiro ao contexto moderno onde estilos de vida dos mais variados tipos tentam nos ser vendidos sob as mesmas promessas de satisfação. O modelo religioso mesmo virou só mais um no rol de inúmeras possibilidades do ser. E pela sua imediati(ci)dade, ele vira como que uma oferta terapêutica barata dentre tantas. Há programas de 12 passos para levar uma vida religiosa a sério, programas de televisão que dão, num período de uma hora, respostas para todos os mistérios do ser; o mecanismo de salvação e redenção da própria angústia (numa perspectiva kierkegaardiana) se torna aqui viciado, desgastado.
              O rápido crescimento do secularismo e ateísmo é conseqüência óbvia desse contexto espetacular, onde a antiga força imanente à imagem do religioso é supersaturada pela exposição obscena de milhares de propostas idênticas em roupagens diferentes, em todos os níveis de intensidade possíveis. Este é um primeiro aspecto a ser considerado acerca da origem genealógica da antireligiosidade.

              Já é claro que a religião, tendo surgido na infância de culturas humanas, carrega um caráter unificador de sua cultura; ela própria é metaespiritual, lida com ordenação moral de uma comunidade ditando um referencial de justiça e punição na mesma. É aqui que identifico os meios pelos quais a religião tem seu valor calcado, mesmo nas culturas mais seculares. Entretanto, o resultado da contradição dessa comunidade que mantém práticas unificadoras da religião, sendo ela não mais uma unidade social, é a anti-religiosidade em si.
              O segundo aspecto embrionário no surgimento das grandes culturas religiosas é um teor normativo no conjunto de seus preceitos, da religião como suporte do exercer de determinadas leis e estabelecedora de determinados comportamentos e gestos sociais, que vai se refletir diretamente em peculiaridades de um povo e suas práticas sociais mais pontuais (o enterro, o matrimônio, o nascimento). A discussão acerca deste importantíssimo aspecto em nossa sociedade já secularizada é guiada pelo momento em que religiosos passaram a ignorar de certa forma o argumento da sobre-naturalidade de Deus (como justificativa per se de que devemos nos submeter a Ele) por aspectos beneficentes da prática religiosa para a civilização.

              Haverá um momento, entretanto, em que ambos religiosos e seculares irão chegar a conclusões destoantes a respeito da efetividade dessa normatividade religiosa; consideremos apenas, grossamente, que religião hoje em dia é o melhor pretexto para guerras e terrorismo. Irreligiosos se enxergam em vantagem nesta altura do debate: eles mostram que as verdades religiosas dependem na realidade de uma metodologia que produza congruência com o contexto histórico em que se encontram, para então poderem gerar algum nexo para si mesmas, e que, no nosso contexto histórico, essa metodologia é uma forma eficaz e silenciadora de coerção – o conteúdo de religiões (tomemos como exemplo calvinismo e luteranismo) indica para um caminho de contentamento com situação social, obediência quase servil a autoridades, domesticação do corpo e sexualidade, supervalorização de êxitos como graça alcançada e minimização dos fracassos através de contentamento com a situação do todo, permeação de elementos ideológicos burgueses em áreas que deveriam ser espirituais, resignação e vingança contida ao posicionarmos o mal na figura do infiel, e controle dos membros das religiões uns aos outros, como um grupo de reprimidos que repetem a repressão, fazem do uso dela contra um outro um referencial de auto-policiamento.

              Entretanto, a utilidade cívica da religião – que é real – geralmente é refutada ou esquecida com facilidade em função de seus malefícios e sua apropriação por histéricos fundamentalistas. Alguns afirmam que a velha religião, como unificadora da identidade cultural de um povo, não cabe em um mundo a caminho do globalismo, como sugerimos acima. O teor da irreligiosidade mora no apelo por autonomia humana fora de estruturas de controle e sintetização de respostas rápidas, de soluções fáceis (que nunca funcionam, obviamente). Assumindo esta pretensão, a própria irreligiosidade passa a carregar uma responsabilidade que antes era da religião: deve provar que ela própria está livre da coerção que ela critica, ou ainda deve reposicionar as questões existenciais de forma a criar uma visão de mundo onde a autonomia humana seja uma proposta palpável. Em outras palavras, as duas propostas em suas formas ideais terminam por defender fins éticos semelhantes, apenas via métodos e em contextos distintos. Resta observar como uma é alegadamente falha por sua própria estrutura repressora (religião), e em que nível isso é verdadeiro.

C. Fins

              Definimos a origem das religiões como um estágio cultural onde uma organização civilizatória se faz necessária em termos de (1) desenvolvimento de uma auto-reflexão da condição do gênero humano ligada à unificação da cultura de um povo sob preceitos justificados por seu peso tradicional ou qualidades onto-teo-lógicas (gerando assim meios civilizatórios que o permitirão se recolocar perante a natureza e o mistério de sua posição) e (2) estabelecimento de leis e costumes que constituirão o parâmetro pelo qual aquela cultura definirá caráter e qualificará, explicita ou implicitamente, seus integrantes.

              As recentes propostas de irreligiosidade, divulgadas através de toda uma nova mídia de acusação de ações violentas feitas sob julgo da religião, têm aberto, junto com as próprias teorias pós-modernas, um espaço onde fica-se a definir “o que entra no lugar de Deus?”. Em outras palavras, se realmente os homens abandonarem a religião e passarem a buscar seus significados em formas não dogmáticas de cultura ou conhecimento, que formas poderão prover este conhecimento ou informação necessários? É assim que alguns teólogos[7] atuais de renome argumentam. Porém, se trata de uma forma de argumentação criada somente para defender uma conclusão postulada; sua pressuposição é que nada é suficiente para substituir Deus.
              Ravi Zacarias, em sua palestra “Post-Modernism” (2006) discorre acerca de temas centrais da história da teoria pós-moderna: a da perda da referencialidade estável da linguagem em Paul de Man e Jacques Derrida, no constante teste e reinvenção da subjetividade em Michel Foucault, etc. Sua conclusão se delinea sobre essas rupturas pontuais de pós-modernos específicos, afirmando que pós-modernidade é pura perda de referencialidade e qualquer fonte de respostas para nossas vidas. Sua conclusão, claro, ou é precipitada – advinda de má leitura – ou feita de forma a cumprir com o conteúdo ideológico que ele estava defendendo na ocasião, na frente de uma platéia cristã.
              As teorias da pós-modernidade aqui serão icônicas para explicarmos o ateísmo que mencionávamos acima: não constitui um sistema de crenças em si e não tem assim obrigação a oferecer modos de vida (ou macronarrativa); ateísmo é simplesmente uma ausência de cuidado, interesse e convicção pelo que se alega ser divino. Ateístas, entretanto, irão recorrer a outras formas de valoração da vida, sejam elas puramente práticas ou institucionais: engajamento social e materialismo, naturalismo, humanismo [...], da mesma forma que pós-modernistas deixaram – querendo ou não – em suas formulações pequenos trechos de visão de mundo e convicções. Em suma: eliminemos antes de tudo que ateísmo (e irreligiosidade em geral) seja a mesma coisa que niilismo, uma ausência total de valores e referencial ético. Ao contrário, as manifestações de irreligiosidade que iremos discutir aqui ao lado da religiosidade mostrarão grande cuidado ao assunto humano.

              Aqui elementos destes dois pólos opostos se misturam. Note que poderíamos voltar para a temática do ponto a) e dizer que irreligiosidade ou agnosticismo, como expresso em livros de filosofia atuais e organizações de combate à opressão exercida pelas religiões, é justamente uma força cultural com finalidade de gerar auto-compreensão crescente dos indivíduos humanos! A que ponto certas formas de religião não podem estar lutando pela mesma coisa que estas formas específicas de irreligiosidade estão? O próximo capítulo será, logicamente, uma proposta para irmos além deste ponto onde discussões religiosas aterrissaram no meio não-acadêmico, observando o embate de ciência versus religião.
               A primeira pergunta a ser respondida seria: são de fato as propostas aqui analisadas tão opostas como elas se pronunciam?

CAPÍTULO II. Religião versus ciência?

‘Many years ago […] I was strongly advised by a friend
never to introduce anything about religion in my works, if I
wished to advance science in England .’ – Charles Darwin[8]

Urbanization and industrialization had encouraged
the spread of new secular values. An expanding
literacy and a voracious demand for reading matter
had created a situation in which, by 1853, one
clergyman estimated that 28.5 million publications
were appearing annually from secular presses
against 24.5 million from religious publishers.
It looked as if the devil was winning – Hedley
[9]

            “Nossa época é essencialmente uma época de entendimento e reflexão, sem paixão, momentaneamente explodindo em entusiasmo e então se relegando acanhadamente ao repouso”, escreveu Kierkegaard no início de seu ensaio The Present age[10]. De fato Kierkeegard, escrevendo em Copenhagen, uma cidade burguesa relativamente afastada do que havia de mais tecnológico no mundo do século XIX, acerta em apontar que o conhecimento técnico da humanidade nunca foi tão grande e nunca pode conquistar seu espaço como pode naquela época, ao menos na Europa cristã. E incrivelmente a ciência e filosofia jamais teriam conseguido se libertar do paradigma imposto pela fé se a própria fé não houvesse sido revolucionada com as reformas religiosas de Lutero e Calvino[11].
              Uma vez que, através do crescimento do luteranismo e calvinismo, o trabalho e busca individual (e não-mediada) do conhecimento de Deus ganham um valor maior do que a mediação da instituição cristã e mistérios divinos, a tendência é que a fé se adapte aos moldes do conhecimento humano, e que, todo mistério que seja possível expurgar da religião seja expurgado. O movimento prepara de certo forma para uma crescente participação do subjetivo nas visões de mundo que serão propostas a partir de então. Se Galileu foi coagido a negar suas teses heliocêntricas que ameaçariam a suposta configuração espacial da Terra como centro do universo escolhido por Deus e palco da manifestação de Sua glória e encarnação de Jesus, hoje se vê cômicas cenas de teólogos tentarem justificar, através de métodos científicos e técnicos, a existência histórica de personagens e eventos bíblicos (veja as escavações anuais do monte Sinai, na atual Turquia, como tentativa de achar resquícios da Arca de Noé[12]), de uma origem mítica para o mundo e raça humana. A própria teoria da evolução de Darwin vem sido adaptada de forma a atender necessidades de resposta (já dadas de antemão) pelos livros sagrados de várias religiões acerca do plano divino para o homem, com alguns desdobramentos de certa forma excêntricos – de que o macaco ganhou uma alma no exato momento em que evolui para homo sapiens, por exemplo.
              Analisaremos aqui de que forma a ciência está vencendo a fé, e de que forma nenhuma das duas estão vencendo coisa alguma (aqui, já antecipando a conclusão).

              A definição que temos da Idade Média como ‘Idade das Trevas’ é em si um indício de que nosso parâmetro hoje acaba por ser científico, ele mede e dá determinado valor para práticas sociais e épocas. Isso não significa necessariamente que a religião perde o jogo – isso suporia que há um jogo, em primeiro lugar, e depois que é possível uma uniformidade de tendências que na verdade atendem determinadas camadas e grupos em determinados contextos. Certamente um fazendeiro no interior do Wyoming não terá tanto interesse em revisar as crenças que ele mantém desde criança acerca da existência de Deus por meios científicos; é ilusória a mania de dar nuances conspiratórios para ciência e religião como se as duas fossem duas grandes potências lutando pela mesma coisa.
              Outro fator que compete para estender a idéia acima é: ao falarmos de como a religiosidade afeta a vida de sociedades inteiras, estamos falando de um aspecto da cultura que mostrou sobreviver em períodos onde a popularidade das ciências assumiu formas das mais diversas. A religião é, portanto, independente da ciência e vice-versa, mas elas se esbarram e vêm se digladiando na arena da história como duas forças culturais fornecedoras de respostas em comum, embora através de métodos diferentes e com finalidades diferentes[13]. Revisaremos quais questões são estas.

  1. respostas para o passado, presente e futuro (de onde viemos?, o que devemos fazer?, para onde iremos?), de onde advém especulações metafísicas e éticas, e se seguem destas todas as outras – O famoso paradoxo referente ao problema da origem do universo se põe da seguinte forma: o religioso argumenta que a maior prova para existência de Deus é a inconcebível complexidade e harmonia de todas as coisas no universo, sobretudo da vida. É impossível não crer que uma inteligência tenha criado tudo isso, argumenta. O argumento é terminantemente falho pois:
    –  justifica a criação via uma necessidade de causalidade (tudo deve ser criado e ter uma origem), na qual o próprio Deus criador de tudo irá tropeçar (quem criou um Deus tão complexo, então?[14]), ponto no qual ele evocará um princípio paradoxal da natureza divina, como afirmou Santo Agostinho: Deus é uma entidade criadora de si própria, estando assim fora do tempo e qualquer devir; ele é tudo que existe e somos parte integrantes de seu Ser. O tempo e a finitude obedecem a uma lógica causal à qual Ele não está submetido, lógica esta que delinea o próprio caráter finito das coisas. O argumento é uma bela elaboração de propriedades mágicas, sob tais condições de argumentação simplesmente tudo pode ser ‘comprovado’, até mesmo a velha alegoria hindu de que a Terra é uma planície segurada por quatro elefantes que se apóiam no casco de uma tartaruga gigante; repito o que já disse em outro lugar, a teodicéia hindu, o Big Bang, o Deus cristão; as três propostas têm a mesma possibilidade de serem válidas neste tipo de construção do problema.
    – segundo ponto: a necessidade de causalidade descrita acima pressupõe, sobretudo, que a tal causalidade inerente a todos os processos do universo seja abarcável pela razão humana; a suposição de que o universo funciona sob leis harmônicas também é contestável, tanto ciências como religião só vão afirmar harmonia naquilo que conseguem entender e dar uma fórmula geral de funcionamento, e só vão entender aquilo que funciona sob este tipo de fórmula exata. Por exemplo, sabe-se o modo como células cancerígenas se espalham pelo corpo, como modificam a estrutura de outras células terminando por matá-las; mas não se sabe por que (falo de origem, não funcionamento) células cancerígenas surgem em um corpo saudável para adiantar sua destruição como um todo. Que tipo de entendimento de harmonia é esse que enxerga um mecanismo sem saber o porquê de tudo?[15] As respostas a isso terão necessariamente que postular uma lógica ou governo para além do mundo que dará uma narrativa coesa que explica porque há destruição, dispêndio, aleatoriedade, caos e afins. A artificialidade da resposta não mostra nada de excepcional, só mostra que essa tentativa forçada de enxergar harmonia no universo e tentar justificar Deus por estes meios contém uma formulação epistemológica implícita que nos supõe como conhecedores de certas coisas, além de constituir um oportunismo rasteiro, um ato desesperado de usar da razão enquanto ela estiver ao meu lado[16] (isso resume o criacionismo científico); quando eu chego em um momento em que a razão não me apóia mais, eu jogo uma causa sobrenatural além da compreensão e atribuo sua existência pela glória divina. Mas eu ainda não provei a existência de algo divino para começar a falar sobre sua atuação milagrosa(!).

                  A ciência cai na mesma questão: daremos o exemplo das teorias de evolução de Darwin. Apesar do fato do próprio Charles Darwin ter sido um agnóstico, o darwinismo de forma alguma nega um criador inteligente do universo – ele vai, pelo contrário, afirmar leis complexas que vão se aplicar no aperfeiçoamento de espécies no cenário biológico[17]. Este é o motivo de existirem vários teólogos darwinistas. Ainda que certas implicações no darwinismo neguem terminantemente aspectos da religião cristã em específico – por exemplo, de que o medo que o ser humano sente de Deus é virtualmente o mesmo medo que o macaco sente de uma cobra – na questão da existência de uma força superior provida de inteligência e criatividade, ele está em dias com a igreja cristã. A única diferença é que essa busca por uma resposta e formulação das origens de tudo não vai tirar o sono de tantos cientistas; mesmo que eles falem de Big Bang e origens do universo, eles estarão lidando sempre com o momento primordial que possa ser abarcado em termos da mecanística humana. O que causou o Big Bang, quer seja uma aleatoriedade e determinadas reações entre partículas (?), e até o que veio antes disso, irá assumir um caráter mitológico aqui bastante semelhante ao da religião, e nenhuma das duas fugirão dessa questão que terminantemente não tem importância nenhuma; é preciso deixar claro. Essa obsessão por encontrar soluções ou indícios delas no mundo exterior nega todo princípio subjetivo de ação, nega toda fé (ela não é justamente acreditar no absurdo?) que os próprios religiosos suportam. A diferença é que para fins religiosos, afirmar que existe um Deus terá implicações até no que eu devo fazer com minha esposa ou aos domingos de manhã, sendo que afirmar que um monte de poeira cósmica não me diz nada a respeito a minha vida ética – está aí a diferença clara entre algo que se professa como doutrina e outro se mantém como teoria;

               O ponto que chegamos aqui já nos coloca no meio de um campo de batalhas onde mal se sabe contra o que se está lutando. Religiosos (principalmente teólogos cristãos) vão abrir este momento, como em um culto, para propor “que tal admitirmos que nosso conhecimento é limitado e nos leva a um momento em que temos de reconhecer que a idéia de Deus é maior que nós próprios?” A proposta da conversão é, aqui em um plano intelectual, de humildade perante algo que é incomensurável para nosso entendimento. Ateístas irão reconhecer aqui, e essa é uma analogia fácil, o medo do primitivo perante uma natureza que ele desconhece: em situação de ameaça, ele se ajoelha a ela com a esperança de estar sob sua graça. Mantenhamos este impasse em mente para partirmos para alguma conclusão a respeito, sem antes analisar o ponto B.

B. tanto religião quanto ciências trazem em diferentes níveis a construção de um todo da história do ser humano como ponto nodal na narrativa do universo[18] – de forma que toda existência é datada e coordenada ao redor do desenvolvimento da espécie humana, como se todo universo tivesse adaptado e manejado ambientes e condições favoráveis para que o auge da criação fosse propiciado em nós, os protagonistas da trama da existência. De certa forma é importante que religiões e, sobretudo, as ciências, posicionem o eixo sobre o qual elas irão girar para fins práticos, para não se perder na abstração de outras formas de realidade diferentes da nossa humana. Portanto não caiamos no erro de pensar que acharemos todas as respostas do universo nessas duas instituições centradas em uma idéia de universo tecida durante a gestação da espécie humana para culminar em seu florescimento. Caso contrário teremos respostas ao nível das dadas no livro de Gênesis na Bíblia Sagrada: os animais de pasto foram colocados lá para servir de alimento para o homem, assim como os vegetais[19]. Voltaire foi o único no mundo a ter um humor suficientemente afiado para repetir a unilateralidade dessa lógica, ao dizer o nariz foi feito para servir de apoio para os óculos. Esse tipo de explicação tem seu valor mítico e simbólico, mas entra em um campo perigoso quando serve como justificativa para mantermos uma vida segundo a moral religiosa, e vale como único motivo para tal, como se segue no próximo ponto.

C. O que busca a questão (‘por que estamos aqui?’), portanto, dificilmente dará uma resposta significativa à questão ética (‘o que devemos fazer?’). Que é a última, para fins civilizatórios, a que realmente importa. Aqui o argumento de que a religião é válida essencialmente como conjunto de leis morais (judaísmo e maometanismo mais que cristianismo aqui) cai por terra. Ao mesmo tempo que a questão ética por via religiosa se baseia em uma série de pressuposições (refutáveis, como visto acima) que suportam a conduta ética do homem sobrenaturalmente, e impõe seus fundamentos quase que gratuitamente de acordo com a sabedoria inquestionável de Deus, algo se revela daqui: de que essa ética não dá conta de guiar alguém. Em outras palavras, para fins civilizatórios e seculares, a melhor coisa que pode haver para a civilização humana foi ter a lei religiosa separada da cívica. Muitos americanos, justificando o poder de suas bases tradicionais cristãs, argumentam que os dez mandamentos definiram toda lei que permite este Estado ser uma democracia, a justiça dele dependendo de uma base moral cristã coesa. O contraditório é que, com um pouco de comparação, notamos que apenas dois dos dez mandamentos são leis constitucionais: ‘não matarás’ e ‘não roubarás’. Não há lei que me impeça de ‘cobiçar a mulher de meu vizinho’, nem uma que me obrigue a amar todos a minha volta. Mesmo estes dois mandamentos e leis são as coisas mais básicas no que se refere ao estatuto de ser num contexto social; códigos de lei sumérios e egípcios (ou seja, mais antigos que o judaico) já traziam ambas em seus fundamentos básicos.

      Como conclusão, religião e ciência, por mais que sejam independentes uma da outra, acabam por disputar lugar na resposta a questões comuns advindas de um nexo existencial presente na consciência humana. A fundamentação de um sistema de crenças, valores ou teorias necessariamente adquire ou cria para si uma malha teórica sob a qual sua lógica irá funcionar – é possível responder inúmeras questões sob o vasto material científico que temos disponível hoje ou sob as respostas ultra-abrangentes fornecidas magicamente pela religião. Nossa atenção, ao lidar com um estatuto tão sensível quanto o da realidade, é ter em mente que as instituições e forças sociais que propuseram uma interpretação definitiva da realidade foram simplesmente substituídas por outras novas com suas próprias interpretações da realidade. Isso vale para revelar a inefetividade em lutas entre ‘versões de realidade’ no contexto social; Ambrose Bierce faz uma piada que é bem válida em seu Devil’s Dictionary: religião é a crença no único deus possível, seja ela no único deus possível dos cristãos, ou no único deus possível dos hindus, ou no único deus possível dos mulçumanos, (...)[20].

              Há certos motivos que me levam a dizer que não faz muito sentido entrar em um embate entre propostas radicalmente opostas a respeito de questões como esta, caso um dos debatedores seja do tipo que acha que sua crença é a única verdadeira e tudo que existe no resto do mundo é fruto de alguma enganação programática e conspiratória que, por acaso, só não o afetou. Lidamos com argumentações racionalistas e irracionalistas-sobrenaturais para a existência da vida: escolhe-se seja qual for, esta questão é terminantemente de importância meramente individual, volto a afirmar. Para partimos para o próximo capítulo precisamos encarar a fase realmente importante e discutível da religião – a pragmática e ética. Em questões concernentes à realidade das coisas, tudo que posso fazer é lavar minhas mãos e reafirmar o que Harold Bloom já disse em outro contexto: “Reality is shared hallucination”.[21] Este não é de forma alguma um convite a um ceticismo total, mas o reconhecimento de que algumas verdades são meramente subjetivas, e os problemas que as envolvem são irrelevantes em uma discussão filosófica.
              
Agora, a história mostrou que a religião cada vez mais cede lugar às ciências. De certa forma, se existe algo próximo de uma consciência coletiva ou ao menos tendências difundidas em escala universal, essa consciência é mais cientificista do que ortodoxamente religiosa nos dias de hoje. Se realidade é alucinação compartilhada, a alucinação é necessária para que formulemos nossas crenças mais básicas[22], e a alucinação em voga hoje gosta de ciências.
              A diferença básica das duas, no que concerne o tratamento das questões consideradas durante este capítulo, aponta para a natureza doutrinária da religião – que, num primeiro momento, não se dá ao trabalho de justificar seus princípios, mas depende da crença incondicional de seus fiéis – contra a natureza teórica da ciência. Uma teoria não é uma palavra final. “Para contar como uma teoria, não apenas precisa uma explicação não ser óbvia; deve envolver certa complexidade [...] Uma teoria deve ser mais do que uma hipótese: não pode ser óbvia; ela envolve relações complexas de tipo sistemático dentre um número de outros fatores; e elas não será facilmente confirmada ou desaprovada.”[23] Uma teoria é algo posto em desenvolvimento [evolved] para se adaptar aos fatos. Temos sucesso em uma teoria se ela sobrevive à introdução de fatos até aqui desconhecidos. E ela se torna uma teoria aceita se puder fazer previsões exatas sobre coisas ou eventos que ainda não foram descobertos, ou ainda não ocorreram[24]. Isso a leva a várias outras implicações: aquela, por exemplo, em que a teoria está na ciência como apunhado de idéias coesas porém sob constante vigilância – não só de sua coerência com o factual como também com o que há de pragmático em uma teoria. A própria natureza do trabalho científico renega que uma teoria permaneça a mesma, a tarefa do cientista e do intelectual é testar suas teorias e as teorias de outros, abrangendo seu campo de validade ao demonstrar aplicabilidade em novos campos ou destruindo seus argumentos e apontando falhas. Isso não implica necessariamente que o saber científico segue uma linha progressiva, necessariamente, ou que o que a ciência busca vai realmente de encontro com o que o homem necessita. Em um período da história onde teístas viram todos seus argumentos teológicos refutados, eles irão apelar para necessidades humanas que o saber não preenche (como veremos a frente).
            A crença na criação de um Deus inteligente e arquiteto do universo, por exemplo, “não é nem mesmo uma teoria. Em toda sua propaganda bem financiada, nunca foi tentado demonstrar como uma única fatia do mundo natural é melhor explicada pelo criacionismo do que pela competição evolucionária”
[25] No próximo capítulo pretendo pontuar cada passo à frente que tanto religião quanto ciência deram no embate por domínio a partir da Idade Média, até chegar aos dias de hoje.

CAPÍTULO III . Religião da racionalidade à sentimentalidade

 “For theists to accuse non-theists of being atheists is analogous
to soccer players accusing baseball players of lacking goal posts.
When asked if I am an a-theist, I can honestly respond that I am
and also that I am an a-vegetarian, an a-Texan, and an a-transgendered
person. In short, I am not many things, although it escapes me
why anyone should be interested in what  I am not.

Warren Allen Smith (Disinfo’s You are being lied to: 293).

              Antes de Darwin embarcar na jornada que o levou à teoria de evolução, em um lugar remoto da Prússia já surgiu uma força que nega a possibilidade de compreendermos e provar a existência de Deus por meios da razão (ou seja, por quaisquer meios que temos em mãos). Vou utilizar a imagem de Immanuel Kant, pontuando sua Crítica da Razão Pura, embora no lugar poderia colocar várias outras personagens do Iluminismo que levaram o criacionismo e teísmo, assim como eles são imaginados pelos três grandes monoteísmos, a uma emboscada.
              Kant defendia o cristianismo por convenção. Na verdade sua religião era a ordem moral mesma, de fundo humanista. Como Russell afirma, ele era epistemologicamente cético, mas que, em termos de moral, ainda não abandonara as saias da própria mãe. Resumindo a situação na época: a Crítica da Razão Pura traz uma inovadora visão epistemológica, muda para sempre a história da filosofia, justamente para mostrar a impossibilidade de conhecermos qualquer coisa que não se manifeste empiricamente; podemos imaginar ou estabelecer uma idéia disso, meramente. Isso vai de encontro com todo cristianismo místico da época que propunha uma intuição divina de verdades absolutas em nós, mortais afortunados. Ainda que Kant, em sua teoria moral, irá reapresentar toda teologia cristã que ele renegou em sua epistemologia, ainda assim Kant faz uma proposta interessante e desmistificadora: ele separa a razão prática (aquilo que devemos fazer) do conhecimento das coisas divinas, ele de certa forma dá início a uma desvalorização de discussões infinitas acerca da existência divina e se foca na prática da religião, que ele enxergou ter sua eficácia no imperativo moral.
              Há diversos deslizes em Kant; não discutiremos muitos deles. O motivo de resumir o efeito de sua revolução no campo da teologia será ligá-lo ao que Hegel foi desenvolver anos depois. Na figura deste filósofo enxergo a manifestação efetiva de um conceito de religião praticada civicamente eclipsando quase que totalmente a religião intelectualizada.

              O próprio Hegel se enxergou como uma espécie de revisor e reformulador do estrago que Kant começou a fazer na história da filosofia. No que toca o assunto da religião, ele adquiriu o mesmo pudor (para não dizer dissimulação) que antes dele Kant e Fichte mantiveram ao tratar dele. O assunto da religião na Alemanha era bastante delicado, para resumir. Se na França os revolucionários haviam negado completamente o cristianismo, se na Escócia David Hume e outros afirmavam seu ceticismo aos quatros ventos, vemos nessa época da história alemã casos de homens públicos claramente não-cristãos terem que ocultar suas convicções religiosas para evitarem complicações com os príncipes (o próprio Goethe é um exemplo claro); e outros vários sendo julgados, expulsos, ameaçados por ousarem tocar na questão da coerência da religião cristã neste novo mundo sob imperativo da razão, como o professor Gottlieb Fichte (expulso de seu posto na Universidade de Jena por seu ensaio sobre religião), o professor Immanuel Kant (que teve ele próprio que abafar a polêmica gerada por seus escritos a respeito). Hegel foi visto tanto como materialista quanto como cristão ortodoxo ou panteísta, pela ambigüidade de suas visões religiosas, mas nunca deixou de rodear sua estranha visão do Absoluto de elementos culturais cristãos. E mesmo ele não fugiu de ameaças e acusações por suas visões religiosas.
              Vamos estacionar neste ponto – Hegel –nesta nossa varredura da história intelectual da religião, já que aqui dois fenômenos consideráveis podem ser elencados: primeiro, de termos um verdadeiro reformador da maneira como a questão acerca da religião deve ser posta; pouco interessa a questão ‘existe um Deus cristão com as características apontadas pela Bíblia’ se Hegel se mostrava desde seus escritos de juventude exclusivamente preocupado com um aspecto antropológico da religião, de como a religião era praticada e permeava a vida cultural do mundo cristão.
              Hegel viu, com a proeminência do kantismo nas novas interpretações da cultura religiosa que surgiam no contexto acadêmico e popular alemão, uma fé um tanto artificial sendo defendida pelo apelo kantiano à razão prática. Essa fé partia de questionamentos sobre a existência de Deus e sua plausibilidade (como um Deus ontológico em cujas mãos está a história do homem), uma fé não participativa no corpus Christi, alheia a qualquer entendimento maior do universo e passivamente colocada em relação à divindade. Ao lado do ceticismo kantiano perante a existência de Deus, estava uma fé totalmente deslocada e gratuita, separada de uma racionalidade honesta, do falar franco. Essa fé não só se tornava facilmente contestável (minando assim, o futuro da religião cristã), como também se relegava a um campo teórico, se afastando da vivência dos aspectos práticos e éticos da religião, terminando por gerar uma situação generalizada de mal-estar, um sentimento de que “Deus ele mesmo está morto” – é este o modo que Hegel acaba um de seus ensaios religiosos chamado Glaube und Wissen, de 1802[26]. Algumas décadas depois, Nietzsche em seu célebre Fröhliche Wissenschaft confirmaria isso que Hegel considerou ‘um sentimento’ – que não parece que Deus está morto, mas de fato a crença em Deus está morta, vivendo os últimos espasmos de uma morte causada por nós mesmos sob fachada de hipocrisia, ou mantida ritualisticamente sob justificação de que “essa é a nossa cultura”. Porém não nos deteremos neste ponto sem antes analisarmos o que Hegel irá propor contra essa extrema racionalização da religião, que nos apontará para uma atitude bastante comum de nossos contemporâneos religiosos.

              É curioso ver como Hegel passou de um crítico virulento do Cristianismo em sua juventude para um verdadeiro reformador da fé cristã – quer essa reforma tenha lhe guiado para uma versão prática do cristianismo mais fiel aos ensinamentos de Jesus, especificamente, ou para uma distorção panteísta da doutrina cristã (como Kierkegaard acusará Hegel)[27]. O fato é que Hegel serve como figura limítrofe e resposta à inefetividade do Iluminismo para lidar com religião via uma redução de toda forma de cultura a termos de verdade factual – mesmo aquelas simbólicas e mais ligadas à prática. Hegel de fato em momento algum foi convencido por alguém que sua oposição ao cristianismo deixava de ver uma face da doutrina cristã muito positiva em termos de desenvolvimento intelectual (geistliche Entwicklung) do homem. O próprio movimento de seu pensamento o levou a tais conclusões. O primeiro ponto que consideraremos é como Hegel enxerga o cristianismo de sua época, em segundo lugar como enxerga o anti-sobrenaturalismo do Iluminismo atuando em sua época, e como levará seu pensamento, por fim, para um rumo que fará dele uma espécie de reformador da religião na Alemanha do século XIX, unindo aquilo que ele enxergou como o lado positivo do cristianismo e do Iluminismo[28].

              Hegel inscreveu-se em 1788 em uma fundação teológica protestante na Universidade de Tübingen. Ele tinha, então, 18 anos, e para alguém de sua condição social, a única chance de ter uma educação formal decente para sua época era se subordinando a este tipo de instituição suportada pelo governo do príncipe local. Lá adquiriu fluência em latim e grego e, em termos do que nos interessa aqui, foi neste ambiente que Hegel foi ter contato com a teologia professada na época no grande Império romano germânico, uma teologia adaptada das idéias do Iluminismo, circundada por um teísmo racionalista com certo toque de sobrenaturalismo bíblico[29].
              Kant, Lessing e já Malenbranche haviam balançado a teologia de forma irreversível. Este teísmo mantido por Kant, circundado de uma crença de um Deus que se pôs distante da capacidade humana de conhecê-lo, acabará por ter seu lado prático restrito a um imperativo frio, antinatural e vago que resume toda moral a ser seguida pelo homem: amai teu próximo como a ti mesmo[30].
              Tal entendimento de religião pareceu para Hegel “divorciado do espírito e necessidades de sua geração”. E, isso é importante, não é por falta de imperativos. Na verdade a história do Luteranismo até o século XIX é a história de um fortalecimento de imperativos e apelo para envolvimento espiritual do homem com a religião, como resposta à formalização e conseqüente esvaziamento do gesto de devoção pelo Catolicismo, que se preocupou em sua história em assomar rituais e deixou de lado o envolvimento do sujeito com o divino. Ao trazer Deus para o homem comum, sem mediação necessária de padres, Lutero irá realizar um gesto que precederá o gesto (ou intenção, ao menos) de Hegel ao tirar a religião dos grilhões de seu lado institucional, apelando para uma necessidade de abandonar formalidade dogmática para por em funcionamento sua práxis incorporando-a na educação e vida cívica.
           O texto central para explicar essa fase do pensamento hegeliano é Positivität der christlichen Religion iniciado em 1795 e reformulado repetidas vezes até encontrar sua versão final em 1799. Ao contrário do que parece, ao dizer que o cristianismo é uma religião positiva, Hegel está criticando-o. Positivo aqui é algo negativo. Uma religião é positiva quando ela precisa colocar suas bases como doutrina para funcionar; o cristianismo, no caso, é indissociável de vários aspectos sobrenaturais: que existe um Deus com x e y características, que colocou o homem como plano principal de sua criação, que enviou seu filho encarnado como homem para salvar a humanidade já previamente condenada, afim de que sua glória fosse manifesta, etc. De fato, em termos do Cristianismo praticado então, se Deus não existe, tudo é possível. Por inversão, Deus assume um papel coercitivo aqui; aparece como uma entidade no mínimo egoísta e histriônica, que criou o sofrimento e desgraça gratuitamente no mundo para aqueles que ousarem não obedecê-la. Pode-se vir uma objeção a isso de que o senso de justiça de Deus é diferente do humano, mas – a religião que Hegel via ser praticada como instituição de poder não poderia exercer seu comando sem tomar uma forma autoritária, positiva, externa ao que há de espiritual[31]. Inclusive, essas abstrações sobre o quão justo esse tipo de Deus pode ser traz um correlato em como a instituição da Igreja revela sua face.
              O tipo de mentalidade apoiada por tal prática de religião é terminantemente falível. Hegel já irá descrever aspectos do fracasso dessa mentalidade em sua Fenomenologia que nos remeterá diretamente à mentalidade da religião positiva, ainda que ele não explicite a relação. O conhecimento das coisas divinas (que servem como imperativo para minha ação) deve ser apenas uma “reflexão profunda sobre as verdades consubstanciadas na religião”.[32] Os alvos de críticas são quatro tipos de teologia presentes na época de Hegel, observemos três deles:

1. Teologia racional: advinda do Iluminismo de um discípulo de Leibniz chamado Wolff, principalmente, onde se enxerga uma tentativa de provar a existência divina e das tais verdades religiosas. Hegel critica aqui a atitude de Wolff de não derivar sua reflexão a partir das representações culturais religiosas, mas simplesmente usar tais representações como objetos externos, cindidos de nós mesmos: o exemplo aqui é o uso de Deus como algo externo[33] ao qual devemos todo louvor por suas propriedades divinas (benevolência, justiça, grandeza); sendo que, sendo algo externo a nós e pertencente a uma esfera extra-mundana, não temos conhecimento dele! A teologia racional jamais será tão racional como se propõe; todo conhecimento dessa divindade é relativo, refutável e puramente ideal (como Kant irá afirmar em sua primeira crítica, como resposta a Leibniz, Wolff e outros Iluministas alemães).

2. Redução de religião a moralidade (Moralität) – que nos liga diretamente à interpretação kantiana da religião. Há dois pontos críticos aqui para Hegel: (a) Kant reduz tudo a uma ordem social que ele liga a uma moralidade ideal. Ao afirmar que todos temos um senso de moral nítido em nossas mentes, todos sabemos o que é certo e errado, ele desconsidera que isso é primeiramente falso (senso moral é algo com nuances culturais), mas, mais perigosamente, que se eu tenho senso moral, não significa que eu precise obedecer minha ‘voz da consciência’. Criminosos não são apenas pessoas ignorantes e incapazes de saber o que estão fazendo; a noção de consciência social kantiana é bastante provinciana, para resumir. Para Hegel a religião traz muito mais potencialidade em si do que uma consciência social ética (expressa pela Sitten, e não imperativos da Moralität), simplesmente[34].

              A religião para Hegel é uma forma reflexiva que vai nos levar à um posicionamento determinado perante a totalidade das coisas. A noção de Deus ou Absoluto em Hegel diz muito mais respeito à totalidade do universo com suas leis (Kräfte) de funcionamento e devir do que propriamente um ser transcendente com identidade própria. Em suas aulas sobre filosofia da religião, Hegel diferencia bem a teologia (como derivação de conteúdos reflexivos do objeto divino) de uma filosofia dos conteúdos da religião, guiando tais conteúdos para esta visão totalizante da realidade: “No simples conceito de Religião está a determinação de conteúdo, que aparece como conteúdo, sendo este apenas o Todo (Absoluto, Allgemeine). A determinidade (Bestimmheit) e especificidade como tal não é dada. O fundamento (Grundbestimmung), o caráter dessa primeira parte da filosofia da religião é, daí, a determinação da Totalidade (Allgemeinheit)”.[35]

              Por isso a religião dos iluministas está morta em sua essência, e se torna meramente um instrumento político quando nos vemos em uma época de crescente racionalidade, na qual indivíduos passam a se guiar por este comando interno que é a razão – bem ilustrado pelo desafio posto por Kant do sapere aude! [36] Hegel compara em seu texto a religião positiva dos cristãos, que nada mais dizia à vida prática no contexto germânico, e a religião imaginativa dos gregos, cuja mitologia estava totalmente integrada com sua intensa vida cultural. O grego não questionava a existência de seus deuses pois via a efetividade deles como o todo de sua cultura e modos de vida. Porque era implícito que sua própria civilização havia criado aquelas formas de vida e vinha aperfeiçoando-as conforme tal formas eram vivenciadas. Ao invés de uma moral normativa (Moralität), encontramos neste ambiente algo que Hegel chamou de Sittlichkeit – uma ética (Sitten no alemão = costumes).
              Gregos não eram de forma alguma morais, como o senso moderno entende a palavra, como Hegel mesmo, um entusiasta da Revolução Francesa e igualdade social, a entendia. A própria leitura da literatura e relatos históricos da civilização helênica nos põe em contato com uma natureza humana aparentemente desregrada, titânica, onde homicídio, traição e escravização são atitudes que os próprios deuses, criados à imagem e semelhança dos homens, cometem. A Sittlichkeit grega se trata de uma “harmonia de desejo e auto-asserção sob a Razão como guia” o que não é de forma alguma o mesmo que “respeito pela lei moral”.[37] Em outros termos: a moral kantiana depende de um constante policiamento do sujeito sobre suas atitudes, ao passo que nos gregos a razão funciona como soberana, as atitudes são justificáveis (e nem por isso não submetidas à lei da polis) pela própria autonomia humana. A ética é intuída e expressa em forma imaginativa que se mistura com o próprio poder de criação estética (artes) e pensar da ação humana no social (filosofia).[38] Este primeiro momento em Hegel precede a formulação da Fenomenologia do Espírito (seu texto de 1807) onde os últimos estágios de consciência humana, precedendo somente sua total dissolução no Absoluto em um pacto de autoconsciência universal, é justamente o da religião, artes e filosofia. A atitude social ligada à religião aqui não tem nada a ver com uma assimilação de regras como Kant propõe em seu imperativo categórico, mas com uma vivência da Sittlichkeit que Hegel já vinha formulando desde os escritos de 1795. [39]
            Como fazer este tipo de religião ética exercer uma influência como aquela que o Cristianismo iluminista exercera até então? – esta com certeza foi uma questão com a qual Hegel se deparou. Tal religião “deve ser reintegrada num poder educacional de caráter público. A grande vantagem do Cristianismo era que, diferentemente da religião pública dos gregos, ele era uma religião de amor universal e fraternidade. Neste sentido, suas doutrinas eram já ‘fundadas na Razão universal’. Se o princípio de amor é o que aparece, enquanto a Razão permanece em seu pano de fundo, não há necessidade para ‘coração e sensibilidade’” – e aqui ele se refere a uma curiosa doutrina chamada Eudemonismo – “para que ele se esvazie”.[40]

            3. O Eudemonismo constitui um terceiro tipo de teologia criticado por Hegel, foi inclusive o principal alvo de toda crítica tecida por Hegel no extenso ensaio de 1802, lançado no jornal que ele publicava com Schelling, ensaio intitulado Glaube und Wissen (Fé e Saber)[41]. O curioso de mencionar o eudemonismo da época é que em qualquer pessoa que tenha tido algum tipo de contato com as formas atuais de cristianismo irá prontamente identificá-lo com o pentecostalismo e várias denominações cristãs carismáticas dos tempos atuais. A definição dessa linha de religião é que “a religião baseia-se no sentimento ou conhecimento imediato [de Deus]”[42], linha teológica que Hegel identifica no pensamento de Jacobi e seu colega Schleiermacher. A deturpação aqui é que um tipo de consciência que se entrega à sentimentalidade e identifica qualquer estado de afecção passageiro (i.e. emoção de cultos sensacionalistas) como conhecimento imediato daquilo que há de absoluto no universo, está aberta a todo tipo de equívoco. É uma religião que “traçou linhas em um espaço vazio”.[43]
              Para pôr essa atitude religiosa de forma bastante simples: é aquela das massas contagiadas e ligadas por um transe ‘espiritual’ que não é nada além de uma fabricação de reações emotivas em cadeia, inclusive bastante primitivas. Semelhantes estados de transe presente em todos os formatos de fundamentalismo religioso se encontram em formas tribais de cultos. Hegel não está se referindo exatamente a isto; isto é um gancho que vou usar pra dar nuances atuais para a discussão filosófica presente em seu ensaio (mesmo porque ele talvez jamais tenha tido contato com fundamentalismo religioso semelhante ao pentecostalismo; a Alemanha de sua época era demasiada conservadora para permitir tal coisa). O que está em jogo para nós não é se transe e glossolalia são hipocrisia ou não, se a experiência espiritual é de fato autêntica, mas aqui está em jogo o estado de uma religião que diminui seu potencial ético e de auto-conhecimento a este tipo de trivialidades, que não são nada além de irracionalismo.

              E aqui não me foco apenas no cristianismo, religião com a qual Hegel teve contato. Existem incontáveis casos de práticas cujo argumento mais forte é a “arrebatação sentimentalista”, como a que descrevemos acima, em diversos países espalhados pelo mundo[44]. Parece uma forma injusta de explicar a “religião sentimental” por aquilo que há de mais extremo e absurdo nela, mas servirá para enxergamos várias facetas de um sistema de crenças que permeia o pensamento religioso de nossas sociedades atuais. Eu gostaria de dar um salto no tempo e parar em um texto publicado em 2006 por Juliana Ströbele-Gregor sobre a presença dessa forma de religiões na América Latina.[45]

A. O problema social da religião

              A pergunta que circunda o texto de Ströbele-Gregor é: Por que motivo evangélicos (pentecostais) têm êxito com suas propostas absurdistas mesmo hoje, na época onde o espírito científico de certa forma é o guia oficial de nossas ideologias? Ao invés de resolver facilmente a questão afirmando que “a conversão se deve a promessas materiais e a uma hábil manipulação dos pregadores[46]”, a autora toca um ponto importante de análise. Um tipo de resposta rápida como esta indicada é primeiramente uma generalização reducionista que nada nos explica acerca de intenções humanas envolvidas na aceitação da religiosidade que tratamos aqui, além de negar às pessoas envolvidas suas subjetividades; ela contenta-se em colocar o ser humano como vítima, “objeto de engodo”. Portanto fujamos dessa via de análise sistemática para elevar a problemática a um nível mais revelador (visto que não queremos uma solução aqui, mas ampliar ao máximo nossa visão sobre esta problemática).

              A triste notícia que tenho aqui é a que não podemos dar nenhuma resposta totalmente certa para a pergunta suscitada no início do parágrafo acima. O ensaio de Ströbele-Gregor joga com várias manifestações atuais do cristianismo evangélico na América Latina como conjunto de formulações que tem êxito porque cobre os déficits sociais dessas sociedades[47]. “As confissões evangélicas tornam-se tão atraentes porque transmitem a sensação de que levam a sério os problemas e necessidades cotidianas das pessoas”; na medida em que entramos em um ambiente onde as minorias étnicas são historicamente relegadas a uma camada social desprivilegiada, o crente – seja ele índio ou negro – pode “se colocar acima dos incrédulos”. O valor do indivíduo não está mais em signos, sejam eles raciais e classistas, cujos valores são explícitos e decisivos no campo do social. Ao contrário, os fiéis possuem valor igual perante Deus. Estes elementos da religião cristã criam uma vivência comunitária no seio da comunidade evangélica que “proporciona uma trama espessa de relações sociais; preenche o desejo de segurança, de calor humano e de assistência mútua[48]”. Mas isto pode ser contestado, e nada explica formas mais individuais de religiosidade, mesmo dentro da categoria de religiões fundamentalistas e de forte apelo ao sentimento. Ao mesmo tempo em que essas religiões possuem um forte caráter coletivo, a experiência individual e cotidiana dela em escalas menores – na família ou mesmo na individualidade de cada fiel – é algo definitivamente enfatizado em todo protestantismo. Essa regra não muda no caso do pentecostalismo.

            E em troca de quê este êxito indiscutível na integração de comunidades mais carentes se dá? Digo, se há algo tão claramente contestável no pentecostalismo, ainda que ele tenha um lado positivo em escala social, o que é tão negativo nele? Somente o fato de ser uma visão de mundo irracionalista que não coincide com uma tendência geral do pensamento atual? Certamente não. São claros os benefícios do fundamentalismo cristão ao menos nas comunidades sul-americanas, mas não se deve ignorar a aversão dessa manifestação religiosa à propostas emancipatórias (da mulher, por exemplo) e relação com a esfera política (definitivamente mundana, secundária ao que realmente importa na vida, que é a existência no mundo para além deste).
              
Esta é uma regra geral? Não, definitivamente não é. A relação das comunidades religiosas com a política é ambígua: vemos uma tendência onde religiosos se distanciam de preocupações do tipo, ou até apoiam regimes ditatoriais (como as igrejas pentecostais chilenas apoiaram a ditadura de Pinochet durante muito tempo) e simultaneamente assistimos a luta de outros grupos de mesmos princípios pela liberdade e igualdade social, como a rebelião de escravos de 1830 na Jamaica reivindicando a abolição da escravatura e o movimento anti-racista do sul americano cujo representante mais conhecido foi Martin Luther King, de grande importância para igualdade racial naquele país.
              A qual conclusão chegar, então? A religião é ou não positiva como guia de várias comunidades espalhadas pelo mundo? A resposta é: não há regra geral. Grupos religiosos estão definitivamente subordinados a outras formas históricas maiores, e não há nada neles, em suas propostas estritamente religiosas, que justifique sua utilidade ou nocividade no que concerne à sua atuação política. Aqui cai a seriedade de argumentos de inúmeros religiosos e irreligiosos que justificam sua postura com exemplos da implicação social da religião. É certo que o cristianismo, por exemplo, por muitas vezes carregará a tendência de levar em conta, em suas manifestações sociais que sejam, que todas as raças são iguais perante Deus (ainda que isso pode muito bem ser passado despercebido em comunidades cristãs, vide as americanas), mas nada nos garante isso.

              Como explicar o fato de que nos anos 60 e 70 cristãos estavam apoiando a emancipação racial nos Estados Unidos, mas não a de homossexuais e das mulheres? Não se explica este tipo de coisa; o cristianismo, judaísmo, seja qual religião for, são todos sistemas de valores bem datados, delimitados por certas visões sociais das épocas em que foram criados, mas que de certa forma tentam contornar por ora ou outra seus fundamentos através de aberturas a reintepretações de tal ou tal passagem em seus livros sagrados. Se a ênfase no século XIX de que a mulher deve se submeter à vontade do homem da casa era algo praticamente indiscutível, hoje não se vê essa prática em famílias cristãs como se dava no período anterior: mulheres cristãs modernas trabalham, possuem até mesmos grupos de aconselhamento religioso próprio para elas nos seios de muitas comunidades evangélicas atuais. E o princípio de submissão da mulher ao homem foi retirado de livros religiosos? De forma alguma, ele está lá. Só acrescentou-se uma problematização à passagem, uma nota de rodapé, um senão. É curioso, se pegarmos pregações antigas que passam por esta questão há 50 anos, como os pregadores passam reto pela questão, sem muita preocupação em justificar o que o texto quer dizer: o que ele quer dizer está lá, que uma mulher em uma sociedade claramente patriarcalista deve se submeter ao marido, e ponto final. Agora observe a mesma cena nos tempos de hoje. Haverá uma boa dose de interpretações e tratamentos especiais à questão: do que significa submeter-se, de quais situações estamos falando, e assim por diante.

              O que quero apontar aqui não é se textos religiosos perderam sua vigoração conforme o tempo e comportamento social foi mudando (ainda que este seja argumento forte de muitos críticos), mas que qualquer manifestação religiosa não foge de outras manifestações sociais: suas discussões e direcionamentos serão fortemente marcados pelo contexto histórico em que se inserem. Se voltarmos agora para o que discutíamos antes de entrarmos nessa questão da religião na história, notaremos que a utilidade dela para causas sociais variará de acordo com as forças históricas que a circundam, ao tipo de grupo com o qual ela se relaciona, com quais ideologias compactua, com o nível de envolvimento com o governo, etc. Portanto foge de nossas pretensões dizer se religião é ou não útil por si só para o meio social. Sua aplicação deve ser investigada a cada momento.

B. O problema intelectual da religião

              Filósofos geralmente devotam desprezo especial ao imaginário religioso de raiz judaica pelo fato de ele se ater a um pensamento metafísico que ficou na Idade Média. Esta visão de mundo se expressa pelo gosto bem evangélico por pintar um quadro do mundo onde tudo é redimido – isto é, em que o mal feito neste mundo deverá ser expurgado pelo mal-feitor no mundo para além deste, que o desemprego e infelicidade do presente são conseqüências do pecado no seio da família (este é um discurso bastante comum de igrejas pentecostais), etc.
              Há uma pressuposição demasiadamente otimista e infantil de que há uma ordem nos fundamentos do mundo, que tornam nossas ações e o extremo esforço da fé válidos, por seus resultados benéficos, para os bons fiéis. Boa parte da crítica freudiana à religião se faz nesta veia. A religião é para ele uma projeção infantil de nós a nosso mundo ideal, advinda de nossa incapacidade ou medo de lidarmos de frente com as dificuldades e complexidade da vida adulta, configurando uma irresponsabilidade[49]. Começamos a olhar com desconfiança pra este tipo de mistificação da vida ainda mais quando pregadores evangélicos, vendo-se não conseguirem dar provas concretas para esta suposição, (como no caso de pessoas de boa índole que sofrem a vida inteira, por exemplo), buscarem uma resposta no mundo além deste (isto é, numa mistificação), que o fiel jamais pode questionar por se tratar uma esfera divina. O absurdo é dado, mas não sem uma garantia que seu absurdismo jamais será questionado. O mundo do além é a dádiva que simboliza a justiça divina, que justifica o fiel, dá sentido para os esforços que mantém sua vida. Note, portanto, que o sentido dessa vida só irá se encontrar no momento em que ela acaba – quando minha alma for transportada deste mundo para uma zona onde toda existência dá contas com suas incongruências. Minha sugestão é que em algum momento da vida de cada um tocado pela religião será essencial pensar na seriedade dessa visão de mundo.

              Mas esta deve ser negada como a verdade última da prática religiosa – é onde Freud, Nietzsche e Marx aparentemente tropeçam. Os três são responsáveis por uma modalidade crítica de pensamento que os caracteriza como ‘mestres da suspeita’; e é isso que vai se caracterizar como base para o pensamento da Modernidade[50]. Para resumir, os grandes pilares da vida do pensamento ocidental são demolidos pelo questionamento das três figuras: Sujeito, substância e verdade.

              Primeiramente a questão da vida intelectual do sujeito introduzida por Descartes, de que o estatuto de ser está ligado à minha atividade mental e que tudo que passível de existência para mim se deriva do cogito, é demolida por Nietzsche e Freud que colocam a vida consciente como somente ponta de um iceberg da vida mental. Freud foi mais fundo ao dividir a consciência em três áreas (o consciente, pré-consciente e subconsciente), e ambos contribuíram para uma visão aparentemente irreversível de que grande parcela de nossas pulsões se dá fora de nossa escolha consciente, sejam elas impulsos mecanísticos (como pulsões de defesa a situações de perigo) ou naturais de nossa espécie. Como isso vai afetar a visão que o homem tem de si irreversivelmente: sua ação perde a liberdade romantizada pelos racionalistas, de que há um controle total de nossos empreendimentos mentais, de que tudo pode ser conhecido e devidamente domado através de treino adequado de nossas mentes. Até mesmo de nossas vontades – a reversão dessa suposição vai gerar um grande questionamento acerca da volição.
              Um exemplo: desenvolvimentos da psicanálise freudiana em campos sociais chegam a questões extremamente delicadas de se realmente o que eu penso ser um desejo de comprar algo ou aceitar determinado estilo de vida vem de uma vontade autônoma, surgida no seio da unidade imaculada de meu ser, ou se é resultado de convenções dos modelos de vida que estão expostos para mim. Uma leitura feita em seus trabalhos de maturidade apontam daí para o sentimento religioso como uma forma de tentativa em repor a figura paterna por Deus. O pai é quem resolve e justifica meus problemas como passos de meu crescimento como criança; o pai é o equivalente simbólico dessa segurança que a criança tem. Uma vez que atinjo a idade adulta, me vejo em uma necessidade de criar uma narrativa de minha vida, que não terá um sentido a priori. Assim, se me surge um problema qualquer, passar por ele não será uma parte necessária da minha criação, da qual tirarei uma moral para uso na vida adulta, mas somente um fato dentre outros que povoarão essa fase final da vida onde todos os mistérios já estão aparentemente liquidados, e tudo que me resta é vivenciar um encadeamento de fatos sem muito sentido em si. O desespero perante essa necessidade de dar sentido à própria vida seria o que levaria o homem e apelar para um Pai celestial, que põe situações diversas para seus filhos sempre com algum motivo, seja ele a vida eterna ou purificação da alma. Para Freud a este é um dado subconsciente que põe a religião sob suspeita; ela deixa de ser uma manifestação de Deus na terra e passa a ser atividade neurótica de adultos que não aceitam a fatalidade de suas vidas.

              Marx entra aqui com uma idéia paralela a essa na medida em que tira o sujeito de uma posição autônoma, intocável pelo que lhe há de externo ao desenvolver certas idéias de Hegel: em primeiro lugar, o sujeito não é uma substância cartesiana, mas parte de um corpo que perfaz a totalidade do universo, (de sua comunidade, de sua nação, em diferentes níveis de participação na composição mútua destes). Em segundo lugar, há uma permeação do que é a identidade e pensamentos da comunidade (posicionamento histórico em um ponto) onde o sujeito se encontra em suas próprias idéias; somos interpenetrados por forças sociais e históricas que ao mesmo tempo contribuímos para formar. A famosa expressão ‘a religião é o ópio do povo’ a põem como forma cultural que o povo, se vendo vítima de desigualdade e desprovidos de respostas concretas para (e contra) a desigualdade social, vai despejar seus desejos por justiça eterna e dignidade. Nesta medida ela é um ópio – não como algo que destitui o povo de sua realidade, mas um remédio que ele buscará visto que seu meio social não justifica suas necessidades por condições de vida decentes.
              
É incrível como tudo muda ao pensarmos junto com Nietzsche-Freud e Hegel-Marx: ao mesmo tempo que nossa ação faz diferença no mundo numa escala ínfima, não conseguimos dizer diretamente se nossos desejos e pensamentos mais íntimos são produtos de nossa cultura ou historicidade ou subconsciência. Toda certeza deve ser relativizada, portanto. Todas as visões expostas por estes pensadores são de complexidade enorme, mas são propostas de colocarmos toda manifestação social que se perfaz em cultura (tradições, instituições) sob vigilância. Se ela fosse totalmente nociva, deveria há muito ser estirpada da face da terra. E muitas formas de religião vem sido posta em vigilância e desaprovação na medida em que gera contenda, ódio racial e alienação. Marx, Nietzsche e Freud são os pensadores mais influentes da Modernidade de forma que suas suspeitas se tornaram internalizadas em nossas culturas. Muitas pessoas mal precisam saber de seus nomes, mas certamente irão considerar que temos algo como uma subconsciência e que o meio social diz muito a nosso respeito. Aquilo que há de mais precioso no empreendimento crítico dos três é colocar qualquer visão de mundo sob suspeita, fazer de tudo um objeto de investigação valorativa – até mesmo a própria filosofia de Marx, Nietzsche e Freud.

C. O problema de enxergar religião como um problema

              Visto o problema acima, o filósofo francês Ricoeur, um cristão, reconhece que essas formas de suspeita que a religião vem sofrendo via a teoria dos três filósofos mencionados são passos pelos quais toda fé legítima deve passar. Em outras palavras, para eu me dignar de ser um indivíduo com fé, eu necessariamente devo ter posto toda minha crença em posição de investigação – ver se eu só quero assumir um sistema de crenças sob um interesse narcisista de me justificar como parte do plano de Deus, ou ainda como remédio para minha solidão e falta de sentido na vida (que equivaleria com a crítica de Freud), ou se eu só assumo a religião de forma a me fazer vingar da sujeição que outros exercem sobre mim, imaginando um mundo celestial onde os ricos e opressores irão sofrer eternamente (equivale à crítica de Nietzsche contra a resignação do Cristianismo, que para ele é uma Sklavenreligion, “religião de escravos”).
              Como negar isso na história das religiões? É famosamente oculta a passagem que São Tomás de Aquino, um dos pilares da igreja medieval, profere acerca das maravilhas do céu: lá não só os cristãos teriam uma vida ausente de qualquer infortúnio, como teriam o prazer incomensurável de, ao lado de Deus, ver todos os infiéis sofrendo pela eternidade. Uma religião de sádicos e resignados? De certa forma sim, mas isso depende, seja qual sistema de crença com o qual nos ligamos, do que buscamos e como construímos nossa pretensa autonomia; em cima de uma visão narcisista de que todo mundo gira em torno de nosso bem-estar (mesmo que ele dependa da visão do sofrimento dos outros) ou em cima de uma visão mais realista que coloca os outros como seres com mesmo estatuto ontológico que eu.
              Muitos dos argumentos a favor da irreligiosidade vêm se tornado mais convincentes que promessas milagrosas da religião por este motivo: eles têm se focado mais em uma visão ética e menos fantasiosa do que é ser no mundo. E nem por isso propostas irreligiosas (cientificistas, universalistas) fogem da necessidade de se revisar e se suspeitar a cada instante. Só assim elas pode ser justificadas para moldar minha vida e relação com as pessoas que me circundam – note que esse tipo de escolha para a vida penetra todos os estágios de minha vida. Sua importância é decisiva se queremos pensar em autonomia humana.

D. Para o início de uma problematização da autonomia

              Minha dificuldade em estabelecer um ponto que nos guie para fora desse paradoxo atinge o ponto de difusão aqui. Paramos de lidar com um ser humano que encara face a face suas escolhas religiosas por via de como ele se relaciona com o mundo – o que descrevemos na religiosidade do Iluminismo – e passamos a lidar com fatores externos que influenciam a escolha de uma vida religiosa (abandonando uma ‘vida mundana’, para usar um termo corrente na linguagem de igrejas evangélicas) e constituem verdadeiros fenômenos históricos de aumento maciço de manifestações místico-religiosas.
            Volto a recorrer a palavra de Hegel para concluir como a forma que encaramos religião pode ter inúmeras facetas – vai depender do que esperamos dela, de como esperamos participar de seu funcionamento para objetivos individuais e sociais, para além de formulações metafísicas desnecessárias. Cito o trecho de Glaube und Wissen que resume a aversão a este sobrenaturalismo que se nega a encarar a materialidade da vida de frente, religião como ponto de fuga.

              ”Esse homem e a humanidade são o seu ponto de vista absoluto, a saber, como uma finitude insuperável e fixa da razão; não como reflexo da beleza eterna, como foco espiritual do universo, mas como uma sensibilidade absoluta que todavia tem a capacidade da fé de se revestir aqui e acolá com um supra-sensível que lhe é estranho. [...] a filosofia não deve exibir a idéia do homem, mas o abstractum da humanidade empírica misturada com a limitação, e trazer a estaca da posição absoluta fincada em si mesma imóvel”.[51]

              É preciso apontar para a invalidez de uma suposição muito comum em interpretações metafísicas de Hegel – de que todo seu sistema é subordinado a uma noção teológica cristã, de que seu conceito de Absoluto corresponde ao Deus cristão. Essa afirmação é falsa. Hegel não fez uma metafísica do espírito, mas uma fenomenologia. Phainomen no grego pode significar tanto aparência (Vorstellung, aqui em um sentido kantiano) quanto aquilo que há de evidente – a fenomenologia sendo, portanto, a apresentação daquilo que é efetivo, que é o pensamento e o todo do universo.
            Há certa tendência a perder-se na leitura de Hegel por se desconhecer que, assim como Kant, ele é por excelência um filósofo que reinventou as próprias palavras que vieram a servir para designar conceitos desenvolvidos com maior profundidade em seu sistema. Uma dessas palavras é Deus, a outra é Absoluto.
              A primeira delas designa por vezes o Deus como imagem mantida pela tradição, à qual se aderiram características bastante específicas, práticas em relação a tal imagem, além de toda uma justificação para outros conceitos subordinados que constitui uma verdadeira ramificação deste conceito central e diversos outros – de Deus pode-se falar em alma, salvação, redenção, sacrifício, pecado, milagre, inferno, céu, e assim por diante. Essa é uma característica bastante única da religião – o desenvolvimento de um conceito que visa explicar (a) a existência das coisas e (b) um porvir para elas, que justifique nossa atuação no mundo, conceitos estes que acabam por ter que criar diversos outros conceitos-agentes que justifiquem ou reforcem não este conceito maior, mas a crença e ligação das pessoas nele.[52]

              A lógica superficial da religião que vem sido desmontada por filósofos analíticos é (1) o suporte que conceitos-subordinados dão ao maior (Deus), que inicialmente os justificava. Por exemplo, o conceito de céu e inferno saem de Deus como formas concretizadas da salvação e perdição, respectivamente, provida por Deus dependendo do caminho que se toma em sua vida. Entretanto, uma vez que essas formas se internalizam no próprio mecanismo cultural, passa-se a convencer, direta ou indiretamente, que aceitar Deus como real e provedor de uma proposta ética digna de minha servidão na visão de ir ou não ir para este inferno, o que é no mínimo cômico. O ponto (2) é o que Dennett suscitou em sua obra “Breaking the Spell”: a própria estrutura de um sistema de crença como o da religião (em oposição a outros sistemas de crença) em que certos dogmas são estabelecidos para proteger a lógica da religião como um todo; não se toca em determinadas questões e postulados religiosos – afirmando que o próprio questionamento é uma transgressão dentro do rol de regras morais. Essa seria a ‘spell’ que coloca a religião em posição suspeita, em oposição a outros sistemas de crença que estão a todo momento se renovando e questionando sua validade a fim de atender às demandas presentes – este último é o sistema de crença que eu defenderia aqui.

              O ponto que os novos ateístas americanos tocam já desconsidera que questões dignas ligadas à religião sejam aquelas referentes à existência das entidades e preceitos religiosos – já que isso é nunca ir além da própria lógica do objeto de estudo, não ver além de sua miopia que é a formalização de qualquer visão de mundo, seja científica, ortodoxa religiosa, filosófica, sociológica. Deus, portanto, não precisa ser justificado – esse é algo que se nota claramente nos escritos religiosos de Hegel. Seu conceito de Absoluto é ambivalente, seu foco ao lidar com religião é completamente alheio à intenção de provar existência de algo. O suficiente é que a religião está aí como uma força social que acompanhou todo o processo civilizatório com importância considerável e é como tal – como processo social, sob um escopo antropológico – que ele a observará. Ao dizer que Kant, Jacobi e Fichte não entenderam exatamente do que se trata religião ao dividir suas análises dela em termos epistemológicos para nossa visão racional. Em outras palavras, em ‘como podemos saber se Deus e alma existem’. Ao fazerem isso, eles se divorciam de antemão dos termos práticos e mais gerais da religião, que remeteriam a um aspecto da religião que vai de encontro com princípios de manutenção da ordem moral em uma comunidade, e muito além disso, com um aspecto de conjunção e conhecimento do mundo através de elucidações sobre o Todo do mundo, a origem e unidade dele através da figura de Deus. No final da Fenomenologia do Espírito fica bem claro que religião é um modo e passo no processo de conhecimento do mundo – o saber religioso não consiste em termos de conhecimento de mistérios sobrenaturais, da estrutura e intenções de Deus, mas da conceptualização da totalidade das coisas, do entendimento d funcionamento da totalidade do processo como parte formadora do todo e como todo que forma cada parte – por mais reprovável que possa ser essa pretensão, nota-se que o tipo de alcance que Hegel busca em sua formulação da religião foge bastante da idéia que Kant suportava dela, típica de quem pretende conhecer o mundo de sua biblioteca: formular aspectos teóricos de processos sociais que muitas vezes carregam simbologias imanentes de significado e história, ou são em si a própria simbologia de anseios e buscas humanas.

              Todo questionamento religioso produtivo será relegado ao campo das questões subjetivas; como escolha individual eu vou sugerir (seguindo uma formulação muito mais complexa que não será exposta aqui, a de Kierkegaard) que não há conhecimento que guie as escolhas possíveis aqui para um alvo certo e verdadeiro. A filosofia da religião, assim, encontra um campo fecundo para conclusões somente no auto-questionamento. Seguindo o projeto de Foucault, nos interessa a forma como lidamos com nossas verdades, mas não as verdades mesmas. Não se trata de qualquer auto-questionamento; a questão exige um nível de despreendimento de si muito maior, muito mais fiel à realidade de minha subjetividade como esfera munida de uma configuração própria de valores e julgamentos. Eles devem ser, na medida do possível, para fins inicialmente experimentais, postos de lado. Estamos lidando aqui com um plano em que trabalha a especulação e o jogo de espelhos da subjetividade, onde eu penso minha situação para além das crenças que assumo e readmitido para mim a cada momento, onde minha ação se revela em toda sua crueza como resultado determinadas assunções. Esta ação que afetará minha relação com o mundo fora de mim, e construírá algo que mais tarde mentalizarei como narrativa da minha vida, daí a importância de vê-la desnudada. Neste momento do processo de auto-conhecimento eu já ganharei olhos que contemplarão uma projeção de minha própria ação no tempo em um novo ser em devir, um Eu como um Outro, uma auto-imagem desprendida. Na imediatidade do instante que exige de nós uma posição (um pôr-se), o caráter próprio de nossa imagem de si é aquele de imagens fugidias, advindas de momentos de improviso, de externalização inesperada de mim mesmo sob a ameaça iminente do momento em que se deve construir minha face para o mundo, selecionar uma dentre inúmeras imagens do jogo de espelhos para me expor ao mundo como um valor, como um signo. Este signo é o agente no mundo em si, ele que será a sombra que se desprende de mim e toma vida própria como acontece com todos aqueles que estabelecem um pacto com o diabo; aqui o pacto se realiza com um mundo que violentamente suga minha imagem, minha projeção imediata de mim mesmo, cravejando este reflexo incerto e incompleto em sua narrativa para todo sempre.

            Note que uma tentativa como esta não está em busca de um sujeito transcendental, que terminantemente não existe. Nossas crenças e sistemas de auto-defesa contra universos de pensamento diferentes não formam a ‘casca’ de subjetividades (ligo aqui a imagem à de uma fruta qualquer), de forma em que, se nos livrássemos da casca protetora conseguiríamos atingir um núcleo vivo e pulsante daquilo que somos verdadeiramente, livres da repressão de nossas certezas e pré-conceitualizações. Ao contrário, nossa subjetividade se ateria muito mais à imagem de uma cebola, onde, após retirarmos todas as cascas protetoras, não encontraríamos um núcleo vivo, mas um nada. O estatuto do Eu está muito mais próximo de ser a totalidade de suas crenças e informações que ele se dá por serem conhecimentos ou verdades (quando eu falo que tenho certos ‘conhecimentos’, sempre estou assumindo algum nível de verdade na informação que tenho). A religião funcionará como uma dessas camadas que nos responderá certas perguntas necessárias para nos manter de pé ou gerar identidade comum com determinado meio social; somente isso. Ela é a formalização do caráter de nossa informação a respeito de Deus, da alma, do destino. E essa informação é intransferível, ela só deixa de ser uma mera informação e vira um conhecimento, uma verdade, enquanto morar dentro de nós e se ligar ao conjunto de outras crenças e ações que eu como unidade subjetiva produzo.
              Qual nosso papel ao assumir qualquer crença? Temos um papel duplo aqui: o primeiro é manter uma consciência desprendida de nossa crença, de saber que ela é a crença de uma verdade para nós, ao passo que pode ser uma perversidade para outra pessoa de crença diferente. Este é um dado muito básico, mas raramente é ao menos considerado no contexto político das religiões.
              
Esta consciência da "relativa validade de minhas certezas" não estaria de certa forma me forçando a uma gradual descrença daquilo em que creio? Não, e aqui me defendo contra um aparente niilismo de minha proposta. Devemos abandonar todas as pressuposições de que é possível viver sem tornar aquilo que faço como objeto de minha crença. Para por as coisas em outros termos: raramente alguém no mundo irá ter uma teoria de gramática estrutural formulada em sua cabeça, e mesmo assim quase todos nós conseguimos nos expressar através de linguagem. Da mesma forma que eu não preciso saber como os músculos e nervos das minhas pernas funcionam para eu fazer uma caminhada matinal. Mas quando entramos no campo do ser, este jogo se inverte: toda pessoa no mundo tem alguma idéia mais ou menos estrutural de como se deve viver, em diferentes níveis de complexidade e considerações por ética, ontologia, etc. Eu posso ser um camponês que trabalha diariamente das 5 horas às 16 horas e raramente se põe a refletir sobre ética, política, estatutos gnosiológicos; mas certamente eu vou ter certas formas de me relacionar com minha família, vou por exemplo aceitar pagar meus impostos e vou reconhecer que tenho certos limites de conhecimento das coisas. Por muito tempo a filosofia se deu uma importância maior do que ela realmente tem por pressupor que sem elaborações conceituais sobre essas coisas que fazem parte da vida, o indivíduo não está livre – ele só poderá agir de acordo com aquilo que ensinaram ele, de como pessoas de sua comunidade fazem, como uma máquina. Essa questão pode ser discutida em outra ocasião, mas é inegável assumir que todos têm uma idéia de como lidar com diferentes campos de relacionamento durante suas vidas, e assim têm uma “teoria do viver” mais ou menos estruturada.

              Isso nos coloca na obrigação de lidar com nossa teoria do ser a cada momento em que agimos – diferentemente de uma suposta obrigação para desenvolver conhecimentos de gramática estrutural ou funcionamento de nossas pernas. Não temos obrigação nenhuma com essas coisas, elas vão ocupar nossa preocupação somente no momento em que pararem de funcionar (se perdermos a articulação na fala ou movimento das pernas, para seguir o exemplo dado). Quando tratamos, porém, de ser, a exigência de se re-colocar e reinventar através de nossas ações se renova a cada instante. Ela só deixará de ser uma preocupação quando parar de funcionar, quando morrermos. Neste ponto que algumas formas de encarar religião são perigosas, ela coloca toda esperança no momento em que não existe mais vida e possibilidade de lidar com as coisas. Podemos escolher repetir nossas certezas e hábitos durante a vida inteira; mesmo assim cada segundo de nossa vida será feito de escolhas (ainda que sejam as mesmas escolhas). E, para seguir uma formulação existencialista, a responsabilidade por cada uma dessas escolhas será total.

              Não se trata de dar uma resposta programática para o que se deve fazer com nossas crenças, portanto. Mas muito mais atentar para a importância de seu papel na medida que nossas crenças são tudo o que somos, na condição de codificadoras do caráter de nossas ações.


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       SLOAN, Phillip R. “The making of philosophical naturalist” in: HODGE, Jonathan & RADICK, Gregory. A Cambridge Companion to Darwin. Cambridge: Cambridge University Press: 2003, pp.17-39.
       SOBER, Elliott. “Metaphysical and epistemological issues in modern Darwinian theory” in: HODGE, Jonathan & RADICK, Gregory. A Cambridge Companion to Darwin. Cambridge: Cambridge University Press: 2003, pp.267-287.
       SPECK, Bruno Wilhelm. “O reencantamento do mundo vital” in: Humboldt 92. München: Goethe-Institut, 1996, pp.22-23.
       STRÖBELE-GREGOR, Juliana. “Esperando o Reino de Deus” in: Humboldt 92. München: Goethe-Institut, 1996, pp.18-19.
       URBAN, Martin. “Por que o ser humano crê” in: Humboldt 92. München: Goethe-Institut, 1996, pp.44-45.

Vídeos e conferências

TTC The Self under siege
TTC Human values and philosophy
TTC No Excuses: Existencialism and Philosophy
BBC Atheism tapes
Stuffs University: Debate between Dinesh D’Souza and Daniel Dennett
Conference "Enlightenment 2.0: Beyond Belief" - Daniel Dennett http://thesciencenetwork.org/BeyondBelief2/


Notas de Rodapé

[1] Contra essa minha colocação eu já espero ataques: democracia nos Estados Unidos (por exemplo) é coercitiva e violenta pois não é de fato uma democracia! Ouve-se o mesmo do comunismo: o comunismo na Rússia, China e Coréia do Norte nunca foram comunismos, mesmo tendo se fundado sob preceitos e teorias comunistas; todos são desvirtuados de uma forma pura de comunismo. E se não houver forma pura de prática social teórica como comunismo e democracia, as teorias irem simplesmente contra tudo o que há de plausível nas manifestações sociais humanas?! De fato a Igreja tentou durante muito tempo justificar os malefícios da religião acusando pessoas específicas de determinadas práticas; hoje em dia este tipo de argumento não funciona, estão todos cansados disso. Vamos imaginar como o corpo da religião – que inclui suas teorias metafísicas, morais e sociais – é potencialmente causador de certos efeitos.

[2] Hitchens, 2007: 49-51.

[3] HEGEL, 1977.

[4] Obviamente que se trata de um convite a uma análise genealógica, já que um simples remonte histórico da religião nos trará conclusões ambivalentes. Porém devemos tomar cuidado para não cair na velha crença do século XIX de que o caráter presente na origem de um determinado fenômeno social nos liga necessariamente ao caráter atual do fenômeno (este é o apelo da genealogia da moral de Nietzsche). A sugestão é que tal pressuposição não é necessariamente correta. Mais considerações a respeito seguem-se no corpo do texto.

[5] Burmeister, 2006: 16.

[6] Belting, 2006, 28.

[7] Aqui estou pensando em Ravi Zacarias e Dinesh D’Souza.

[8] Darwin apud Sloan, 2003: 38.

[9] Brooke, 2003: 207-208.

[10] Kierkegaard, 1962: 33. A fonte diz: “Our age is essentially one of understanding and reflection, without passion, momentarily bursting into enthusiasm, and shrewdly relapsing into repose”.

[11] Aqui não é a voz de Kierkegaard falando, mas uma assunção minha. Essa perspectiva cairia mais em uma linha de pensamento hegeliano, para quem o protestantismo ponto essencial da evolução (em rumo à liberdade do indíviduo) do cristianismo medieval. Ver Phänemologie des Geistes Kap.IV §- e Philosophie der Religion.

[12] Hitchens, 2007: 103-4.

[13] Aqui há discordância entre teóricos, “Huxley referiu-se às ciências como nem cristãs, nem anti-cristãs, mas extra-cristãs” (Brooke, 2003: 204). Pioneiros da ciência ocidental, como Copérnico, Kepler e Newton certamente pensavam, a respeito de si próprios, como estando desvendando a harmonia matemática presente na natureza, esta sendo produto não do acaso, mas de escolha divina (ver Brooke, 2003: 209-10).

[14] Kant, 2006: 450-456.

[15] A pergunta é retórica; pouco importa a origem. O problema será recolocado adiante.

[16] Dennett complains to the mysterians: ‘You must not expect me to go along with your defense of faith as a path to truth if at any point you appeal to the very dispensation you are supposedly trying to justify. Before you appeal to faith when reason has you backed into a corner, think about whether you really want to abandon reason when reason is on your side.’ (350, ver nota 70).

[17] “On several occasions he said that he could not believe so wonderful a universe is the product of chance alone. He was attracted to the formula that it was the result of designed laws, with the details left to chance. But then the distinctiveness of his agnosticism shines through. He had convictions that the universe in its main lines of development was not the product of chance. Convictions of that sort were what agnostics were not supposed to have. Yet, disarming as ever, Darwin asked whether he should trust his own convictions – especially if his own mind was the product of evolution: ‘Can the mind of man, which has . . . been developed from a mind as low as that possessed by the lowest animals, be trusted when it draws such grand conclusions?’” – Brooke, 2003: 202.

[18] A primeira contradição aqui é que exista de fato uma narrativa como história coesa, onde o fim justifica os meios. Ambas formas de enxergar as respostas metafísicas básicas – religião e ciência – irão de certa forma desenvolver suas respostas de forma a adaptar o funcionamento do universo a algum fim que elas tentarão deduzir.

[19] .

[20] BIERCE, Ambrose. The Devil's Dictionary.  Entry: religion.

[21] BLOOM, 2001.

[22] Nietzsche, no desenvolvimento de seu perspectivismo, irá substituir a palavra Wahrheit (verdade) por Für-wahr-haltend (aquilo que se toma por verdade, aqui continuando o projeto hegeliano de destruir a noção metafísica de identidade, substituindo-a por um devir). Em face disso, o ato de constituir um sistema de pressuposições e crenças passa a ser guiado pela necessidade e conclusões que eu tomo para o problema que enfrento no momento em que o encaro; aqui a verdade assume um caráter transitório que Hegel já afirmara no capítulo I da Fenomenologia do Espírito.

[23] Culler, 1997: 2-3.

[24] Hitchens, 2007: 100.

[25] HITCHENS, 2007: 101. “[it] is not even a theory. In all its well-financed propaganda, it has never even attempted to show how one single piece of the natural world is explained better by ‘design’ than by evolutionary competition”.

[26] Hegel, 2007:173.

[27] Há em Kierkegaard críticas a Hegel espalhadas por seus escritos, mas o mais coeso e destinado ao desmonte do tipo de Cristianismo herético, segundo Kierkegaard, que Hegel vinha defendendo consta no Concluding Unscientific Postscript.

[28] ”What Kant and Jacobi have done, however, should not be understood as the failure of a couple of individuals; rather, they represent the consummation of Protestantism” (Kaufmann, 1966: 77).

[29] Copleston, 1994: 162.

[30] O “Amai teu próximo…” se traduz no imperativo moral de Leibniz, a partir do qual Kant foi desenvolver seu problemático imperativo categórico. Se Leibniz afirmava “Não faças nada que não quiseres que os outros façam contigo” (o ‘amai teu próximo’ em termos diferentes), Kant o substitui pelo “Aja de forma que tua ação possa ser praticada universalmente”. Kant irá discutir a vantagem de sua formulação sobre à de Leibniz, dizendo que a boa ação de Leibniz é implicitamente voltada para o próprio sujeito que a pratica, ele só fará algo bom para que nada mal lhe aconteça, resultando em uma forma de postura egoísta. LaRochefoucault porá em questão posteriormente: qual ação humana não é movida por algum interesse? O próprio bem-fazer do cristão visa a salvação da alma e é movido por algum interesse. LaRochefoucault não aponta essa característica como algo imoral, mas simplesmente humano.

[31] “Hegel went straight on from the rational justification of the Gospel to the question of how it had become the foundation for a "positive religion" (i.e., a faith that accepts the revelation of an external "law of God" and attaches itself to external fetishes of all kinds). This was completely contrary to Jesus' own gospel; but even when He was alive, He could not escape from the conceptual net of the Jewish tradition, and the dead Savior became the supreme fetish of the new faith” (Harris, 1993: 30).

[32] Inwood, 1997: 284.

[33] Ver a Fenomenologia do Espírito §123.

[34] A religião inclusive ocupa um degrau acima da Moralidade na Fenomenologia. “[...] no mundo ético nós vemos uma religião [...] do submundo [Unterwelt].”. Ver §§674-677 da Fenomenologia do Espírito.

[35] „Im dem einfachen Begriff der Religion ist das, was als Inhalt erscheint, die Inhaltsbestimmung, nur das Allgemeine. Die Bestimmtheit, Besonderheit als solche ist noch nicht vorhanden. Die Grundbestimmung, der Charakter dieses ersten Teiles der Philosophie der Religion ist daher die Bestimmung der Allgemeinheit“, ver Vorlesungen über die Philosophie der Religion, no segundo item da seção Religionsphilosophie (Hegel, 1955:175).

[36] Kant, 1985: 100-117.

[37] Harris, 1993: 31.

[38] Daqui vem uma importante distinção em Hegel de Moralität (moral) e Sittlichkeit (ética): a primeira normativa, imutável e inquestionável, a segunda prática, mutável e necessariamente questionável. Defender uma disciplina filosófica chamada ética, que é a teorização de formas de como viver individualmente e em sociedade, nos põe contra a frieza de um código moral, que é a realidade de nossas legislações atuais e os poderes ligados a elas (polícia, por exemplo).

[39]   “[...] se a bem-aventurança é compreendida como idéia, ela deixa de ser algo empírico e contingente, bem como algo sensível. O fazer racional e o deleite supremo são unos na existência suprema, e querer apreender a existência suprema pelo lado de sua idade [...] é completamente indiferente quando a bem-aventurança suprema é a idéia suprema, pois o fazer racional e o deleite supremo, a idealidade e a realidade, estão ambos de igual maneira nela e são idênticos” (Hegel, 2007:24-5).

[40] It must be reintegrated into a public-spirited educational power. The great advantage of Christianity was that, unlike the public religion of the Greeks, it was a religion of universal love and brotherhood. In this sense, its doctrines were already "grounded on universal Reason." If the principle of love is what appears, while Reason remains the ground behind it, there is no need for "fancy, heart and sensibility to go empty away" (Harris, 1993: 29).

[41] Hegel, 2007.

[42] Inwood, 1997: 284.

[43] Ibid.

[44] Na realidade houveram períodos inteiros de proliferação de seitas religiosas bizarras pela América, todos eles bastante curiosos, retratados por Philip Jenkins em seu livro Mystics and Messiahs: Cults and New Religions in American History. Sobre o livro ver Kick, 2001: 286-9.

[45] Ströbele-Gregor, 2006: 18-19.

[46] Ibid.: 18.

[47] Ibid.: 19.

[48] Ibid.: 18.

[49] Freud, 1927.

[50] Não me refiro à modernidade filosófica que se inicia com Descartes, mas cultural, como resultado de processos de industrialização e burocratização da vida social e econômica, tendo seu início mais ou menos nas últimas décadas do século XIX.

[51] Hegel, 2007: 32.

[52] Hegel, Glaube und Wissen ao invés de Glaube oder Verstand. O conceito de fé faz sentido aqui não como uma crença encarada como formulação cindida daquilo que somos (como Freud imagina), mas aquilo próprio que se deixa revelar em nossa posição de si mesmos no mundo, como estágio precedente ao da consciência (Gewissen) da congruência do Absoluto como parte de minha unidade e identidade.