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CAPÍTULO II
POR TERRAS DO SUL DO SAVE
Depois do meu primeiro e breve emprego de amanuense na Administração de Marracuene, em 1952 e de ter prestado o serviço militar obrigatório até fins de 1953, ingressei no quadro administrativo no início de 1954, tendo sido colocado em Inhambane, sede do governo do distrito do Sul do Save, que abrangia as
actuais províncias de Gaza e Inhambane.
Aspecto parcial da cidade de Inhambane em 1975, ano da independência de Moçambique
A viagem de 2 dias, no “Xai-Xai”, velho e pequeno navio costeiro de carga , não deixou saudades. O mar estava agitado e o enjoo foi permanente, atingindo a própria tripulação!
Bastante aturdido mas deslumbrado pela beleza da grande baía, desembarquei na ponte-cais da velha cidade da “boa-gente” numa manhã bastante quente. Meia hora depois estava instalado no único hotel da terra – o Hotel Sul do Save –, tão velho como a própria cidade!
O edifício do "Hotel Sul do Save" ainda sobrevive!
(Foto tirada no ano 2000 quando o autor - em primeiro plano - visitou a cidade de Inhambane)
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Na tarde do mesmo dia apresentei-me na secretaria do governo e logo me puseram à vontade para iniciar funções no dia imediato. Também me disseram que a estadia ali seria breve uma vez que iria ser colocado, oportunamente, numa das circunscrições administrativas do distrito.
Inhambane, na época, tinha já aspecto de cidade velha, com actividades muito reduzidas, onde os Caminhos de Ferro e o Porto se destacavam como os polos de maior desenvolvimento. O comércio, maioritariamente de indianos, estava razoavelmente apetrechado graças às visitas regulares dos navios costeiros e ainda pelas carreiras diárias dos Dakotas da DETA que ali faziam escala, na
rota do norte a partir de Lourenço Marques .
Na altura era já patente o desenvolvimento da vila da Maxixe, situada do lado de lá da baía e que depressa se tornou num importante entreposto comercial que servia o interior.
Mais tarde, no início da década de 70 e graças à construção da estrada asfaltada entre a capital e a cidade da Beira, a Maxixe tornar-se-ia numa cidade com um movimento superior a Inhambane!
Havia, na época, motivos fortes para se gostar de viver na pacata cidade de Inhambane! Entre eles podiam-se destacar as belas praias a escassos 20 quilómetros (Tofo, Barra, Tofinho e Baía dos Cocos); um cinema com sessões regulares e filmes actuais; quatro associações desportivas e culturais; um excelente colégio com formação até ao 5º ano dos liceus (actual décimo ano); um
aero-clube; um mercado público bem apetrechado; hospital, maternidade; etc, . Os amantes da caça e da pesca tinham um vasto campo de acção para as suas aventuras de fim de semana, vividas a pouca distância da cidade!
A população citadina era muito dada aos convívios, não faltando às festas da tradição portuguesa, aos bailes nas associações, aos pic-nics nas praias e nos coqueirais, aos jogos de futebol tanto na cidade como nas circunscrições vizinhas sempre que uma das equipas locais ali se deslocava, etc,.
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Uma qualidade de vida apreciável, muito comum no interior de Moçambique e que em Inhambane tinha um sabor especial devido à sua afável população nativa, que bem justificava o epíteto de “boa-gente”, atribuído por Vasco da Gama quando por ali passou na sua viagem para a Índia!
A juventude masculina só se lamentava de um pormenor: a falta de raparigas, que ali eram em número manifestamente inferior ao dos rapazes e isso reflectia-se sobretudo nos bailes! É que naquele tempo a dança era estrictamente executada por pares masculino-feminino e havia sempre um sentimento de frustração por parte daqueles que não conseguiam uma parceira!
Vivi intensamente o tempo que ali passei, integrando-me facilmente, quer no trabalho, onde existia um excelente ambiente de camaradagem, quer no seio da juventude mais divertida !
O autor (x) com um grupo de amigos durante uma travessia da baía para a Maxixe, em barco à vela.
Um mês depois fui colocado na circunscrição do Alto Limpopo, cuja sede, na época, era a povoação do Pafúri, localizada junto da fronteira com a África do Sul. Este pequeno período de tempo foi o suficiente para me afeiçoar à terra e às pessoas e antes de receber a guia de marcha fiz um pedido ao chefe dos serviços: regressar a Inhambane logo ali existisse uma vaga!
O Alto Limpopo era a circunscrição administrativa mais distante da sede do distrito, ficando o Pafúri a cerca de 800 quilómetros de Inhambane! As vias de comunicação eram muito precárias, incluindo os troços ferroviários de via reduzida e cujos comboios, movidos a máquinas a vapor, eram compostos por carruagens com assentos de madeira ripada e com janelas na sua maioria sem
vidros que deixavam entrar o fumo e as fagulhas! Logo no primeiro troço da viagem, entre Inhambane e Inharrime, a bonita roupa branca que estreei naquele dia, ficou completamente inutilizada! |
A viagem de comboio abrangeu três percursos: Inhambane-Inharrime; Manjacaze-Xai-Xai e Xinavane-Guijá. Os restantes trajectos, por estradas de terra batida, foram feitos em camionetas pertencentes aos Caminhos de Ferro de Moçambique (Inharrime-Manjacaze; Xai-Xai-Xinavane e Guijá-Aldeia da Barragem-Mabalane) e da empresa privada N’gala (Mabalane-Mapai-Pafúri).
Uma autêntica odisseia com as bolandas e o cansaço inevitáveis de dez dias de viagem, durante a época quente (que também é a época das chuvas), mal instalado nesses comboios e em carripanas ditas de “carreiras” que não passavam de camiões com bancos de madeira adaptados nas respectivas carrocerias!
Um grande desconforto, superado graças à idade e ao entusiasmo que me acompanhava no início de carreira!
Chegado ao Xai-Xai (Vila de João Belo), dois dias depois da partida de Inhambane, apresentei-me na sede da Intendência de Gaza, como era obrigatório. Estranhei a forma pouco cordial como ali fui recebido, quer pelo chefe da secretaria, que se limitou a pôr o “apresentado” na guia de marcha, quer pelo intendente - um homenzarrão de mais de dois metros, de nome Janes - , que me
recebeu apressadamente em pleno corredor e da breve conversa havida (quase monólogo), pouco mais disse que foi avisar-me: “Você vai para uma Administração com muitos conflitos e é frequente os funcionários saírem de lá com um processo disciplinar”!
Fiquei algo perturbado com esta inesperada frieza e falta de apoio, que nada abonava a tradição de cavalheirismo e solidariedade reinantes entre os funcionários do quadro administrativo colonial, pesasse embora o facto de eu ser um jovem aspirante interino e ele ser um funcionário do topo da hierarquia!
Apressei-me a sair daquela casa e, de mala na mão, caminhei pela rua principal, lamacenta e cheia de poças de água, a caminho da única pensão local onde permaneci até ao dia seguinte, aguardando o transporte para nova etapa.
O terceiro dia foi ocupado na viagem entre Xai-Xai e Xinavane, num velho tornicofe (camião) dos caminhos de ferro. O quarto dia, entre este ponto e Guijá (Trigo de Morais), de combóio, em duas etapas bastante atribuladas que implicaram a mudança de composição e longa espera no entroncamento com a linha de Lourenço Marques-Magude.
Decorria na época uma enorme azáfama na região, devido às obras do colonato do Limpopo. Jeeps, camiões e tractores por todo o lado davam conta que se estava no auge deste empreendimento!
A povoação de Guijá, que pouco depois tomaria o nome de Trigo Morais - o mentor e dirigente máximo do colonato - (actual Chókwe), era o centro nevrálgico deste mega projecto e tinha o aspecto das terras do interior que crescem mais rápido do que devem, já que ali se notavam muitas obras inacabadas, ruas poeirentas e cheias de buracos e um salve-se quem puder quanto ao trânsito!
Aproveitei esta paragem para ir conhecer a sede da administração do Guijá, situada na povoação do Caniçado, a uns 3 Kms, junto à margem esquerda do rio Limpopo. Fui ali recebido pelos respectivos funcionários, com a simpatia própria da família administrativa. |
Era ali administrador o Cotta Mesquita, um dos mais conceituados e carismáticos funcionários do quadro administrativo da colónia, com quem, mais tarde, trabalhei em Cabo Delgado.
Esta visita trouxe-me de novo a boa disposição trazida de Inhambane e interrompida no Xai-Xai devido à ausência de cordialidade por parte dos responsáveis da Intendência local.
O quinto dia de viagem limitou-se a um pequeno percurso entre Guijá e Aldeia da Barragem. Como havia neste local uma pousada de apoio aos trabalhadores da via férrea para a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe) e da ponte-açude, em construção sobre o rio Limpopo, foi reconfortante o repouso ali já que no dia imediato uma nova e desconfortável caminhada me esperava até Mabalane (mais
tarde Vila Pinto Teixeira).
Tomado o transporte ( de novo um tornicofe dos Caminhos de Ferro) pela madrugada, atravessámos o rio através de um drift provisório com pontões de madeira e por volta das onze horas chegamos a Mabalane. Uma viagem de cerca de oitenta quilómetros, muito demorada devido às frequentes paragens para deixar pessoal e materiais em vários pontos da linha férrea já em vias de
acabamento naquele troço.
O movimento de viaturas naquele percurso era muito intenso, com os camiões e jeeps das brigadas das obras a cruzarem e ultrapassarem o nosso vagaroso camião, deixando-nos completamente desfigurados devido à intensa poeira!
Durante este percurso chamou-me a atenção a mudança radical do aspecto da vegetação, que perto de Mabalane passou a ser dominada pelo xanato (Colophospermum mopane), a conhecida árvore das regiões semi-áridas que cobre a maior parte da região do Alto Limpopo e a parte norte do Parque Kruger, na África do Sul. É uma árvore de folha permanente e desenvolvimento irregular,
consoante as condições ecológicas, não ultrapassando os dois metros e o aspecto de arbusto numa região, atingindo noutras áreas o porte de uma árvore média com cerca de dezoito metros de altura! As suas folhas constituem alimento preferencial da maioria dos herbívoros, tanto selvagens como domésticos e também das famosas lagartas da borboleta que tomou o nome da própria árvore – mopane
(Gonimbrasia belina) -, que são um apetitoso alimento rico em proteínas, muito apreciado pelas populações rurais!
Funcionava em Mabalane o acampamento principal de apoio à construção da linha férrea, cujos trabalhos, entre este local e a fronteira, estavam na fase de terraplanagens e construção de pontões. Graças às condições deste acampamento e à messe explorada pelo popular Julião, (homem de grande iniciativa que veio a tornar-se, depois de concluída a linha
férrea, num dos mais bem sucedidos agricultores, criadores de gado e comerciantes da região, radicado em Chicualacuala), foi-me garantida a estadia ali até ter novo transporte para prosseguir a viagem. Foram dois dias que não custaram muito a passar graças à companhia dos funcionários das brigadas, que nas horas livres enchiam o bar, jogavam matraquilhos, pingue-pongue, cartas, damas e
dominó, sempre animados com muitas doses de bebidas e a boa disposição do Julião!
Ao oitavo dia, tomei assento ao lado do condutor de um camião de transporte de trabalhadores para as minas da África do Sul – os chamados magaíças -, oriundos de circunscrições administrativas vizinhas. A empresa proprietária – N’gala –, com sede em Mapai, tinha o exclusivo dos transportes na área do Alto Limpopo, garantindo a ida e o regresso desses
trabalhadores entre os pontos de ligação com outras carreiras de fora da sua área e a fronteira com a África do Sul, no Pafúri. Na viagem de ida para as minas, os passageiros nada pagavam e beneficiavam ainda de apoio em alimentação e alojamento nos locais de pernoita, que eram os acampamentos da Wenela, a empresa sul-africana que superintendia em todo o processo de recrutamento no
território. No regresso, após o contrato, o mineiro, já com dinheiro, pagava uma quantia que abrangia as duas viagens! |
Os cerca de duzentos quilómetros desta etapa, decorreram na sua quase totalidade pela picada ao longo do traçado da via férrea em construção, com as suas rectas a perder de vista, recortando as infindáveis matas de xanato rasteiro. Era uma picada recentemente aberta e afastada alguns quilómetros da estrada antiga, que fica mais para sul ao longo da margem
esquerda do rio Limpopo. Por isso não havia ainda neste trajecto quaisquer povoações.
Apenas de longe em longe se encontravam pequenos grupos de trabalhadores das brigadas de construção da linha férrea, ocupados nas obras dos pontões.
Nas primeiras duas horas de viagem, que começou bem cedo, deparámos com vários grupos de animais selvagens, uns correndo lestos à aproximação do camião, outros ficando especados olhando-nos atentamente! Foi particularmente belo o espectáculo de uma enorme manada de búfalos que apressadamente atravessou a picada à nossa frente, no sentido sul-norte, ou seja,
vinda do rio Limpopo para o interior e que obrigou o condutor a parar!
Manada de búfalos, especados, olhando-nos atentamente!
Eram os primeiros búfalos e antílopes que observava em plena liberdade e isso foi muito emotivo!
As restantes quatro horas que se seguiram nesta viagem para Mapai foram monótonas e penosas devido ao muito calor que fazia! As rectas pareciam não ter fim! Não se viram mais animais de grande porte, sendo porém frequentes outros de pequenas espécies, como cabritos, facoceros (javalis), galinhas do mato e francolinos (perdizes).
O calor apertava cada vez mais e atingiu não sei quantos graus por volta das onze horas, tornando a cabine do camião uma autêntica fornalha! Só sei que nunca sentira tanto calor!
Pela primeira vez observei as “miragens” próprias dos desertos e pradarias africanas nas horas de mais calor, que dão a ilusão de lençóis de água sobre a terra e que ali pareciam transformar a picada num autêntico rio cintilante, vindo de longe ao nosso encontro!
Estava no coração da região mais árida de todo o território moçambicano, onde as chuvas anuais não passam de uns escassos cento e cinquenta milímetros!
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Mapa de Moçambique
(clique no mapa para ver a rota Inhambane - Pafúri)
Por volta do meio dia chegámos ao Mapai, povoação situada junto da margem esquerda do rio Limpopo, a cerca de cem quilómetros do Pafúri.
Para além de duas cantinas e do Posto de fiscalização de caça, todas as restantes infra-estruturas da povoação eram pertença do proprietário da empresa N’Gala, o Orlando Paes Mamede, que juntamente com o seu guarda-livros – o Fernando Figueiredo – se encontravam à entrada do escritório - local de estacionamento da carreira -, quando ali cheguei.
A primeira vez que ouvi falar desta empresa e do seu dono foi na véspera, em Mabalane, através do Julião e durante o percurso que acabava de fazer. A minha curiosidade e sobretudo a necessidade de estar preparado para enfrentar a última parte da viagem, levou-me a fazer um sem número de perguntas ao simpático motorista, ficando assim minimamente informado
sobre as pessoas e as actividades da região.
Deixei pois que os acontecimentos se desenrolassem, esperançado de que não me faltaria apoio em Mapai durante os dois dias que teria de ficar ali à espera de transporte para o Pafúri.
Mesmo sem ser esperado, fui recebido com toda a cordialidade e alguns minutos depois da chegada fui convidado a entrar na carrinha que o próprio Paes Mamede conduziu para a sua residência, a cerca de trezentos metros do escritório.
Continuava um o calor infernal, que muito me afectava mas que parecia não importunar quem ali se encontrava! Um fenómeno que só mais tarde compreendi e que passava pela habituação das pessoas ao clima. Um novato como eu, vindo de regiões mais temperadas e húmidas, enfrentava sérias dificuldades nos primeiros tempos nas áreas mais quentes e secas como esta!
Depois de oito dias a viajar por etapas revestidas de muitas dificuldades e algumas privações, dormindo e comendo aqui e ali, sempre a pagar, encontrava-me agora instalado numa autêntica mansão, com bela cama, boa mesa e, até, roupa lavada, a custo zero! Fiquei deslumbrado com tudo isto, mas, sobretudo, com a forma cordial e tão natural como os anfitriões me
trataram, parecendo que me conheciam há muitos anos! Senti-me ali muito à-vontade, passados que foram os primeiros momentos de timidez e algum constrangimento devidos à minha inexperiência nestas andanças!
Os dois dias que passei no Mapai como hóspede do simpático casal Orlando e Dária Mamede, marcaram-me profundamente! Era a primeira vez que convivia com os chamados velhos colonos do interior de Moçambique e ainda por cima com pessoas abastadas e hospitaleiras! Foram dois dias muito reconfortantes e enriquecedores e este convívio abriu-me os primeiros
horizontes naquela longínqua região e que muito se reflectiu ao longo da minha carreira!
Também ali aprendi como é bela a vida organizada no interior, onde o tempo corre lentamente, sem a azáfama das cidades!
Fiz amizades com esta família, que cultivei ao longo da vida!
(Ver “A hospitalidade e as partidas do Paes Mamede”, na secção de “ESTÓRIAS”, onde descrevo com mais detalhes a forma como fui recebido em Mapai e dois episódios protagonizados pelo meu anfitrião, num dos quais eu próprio fui envolvido e que ficou marcado como o meu baptismo de caça!) |
FINALMENTE NO PAFÚRI
Chegado finalmente o dia da última etapa, manhã cêdo, tomei lugar na cabine de um dos três camiões da N’Gala que de Mapai transportaram cerca de duas centenas de trabalhadores destinados às minas da África do Sul. No Pafúri, depois de cumpridas as formalidades administrativas e sanitárias, estes trabalhadores eram transferidos para carreiras sul-africanas que a partir da
fronteira os levavam para os locais de trabalho na província do Transval do Norte. Por sua vez, estas carreiras traziam de regresso a Moçambique os mineiros que terminavam os seus contratos. Uma rotina bi e às vezes tri-semanal, ao longo de todo o ano, que movimentava algumas dezenas de milhares de trabalhadores nesta fronteira (noutras duas fronteiras mais a sul – Goba e Ressano Garcia
– o movimento era diário, tanto de comboio como em camionetas, calculando-se que transitavam por ali mais de 300 mil moçambicanos anualmente a caminho e no regresso das minas)!
O condutor da viatura era o Fernando Figueiredo, o polivalente funcionário da empresa que para além de guarda-livros fazia outras coisas como esta de substituir os motoristas quando faltavam ou adoeciam!
A conversa que desenvolvemos logo depois de transposto o rio Limpopo para a sua margem direita, foi influenciada pelo aparecimento de uma enorme manada de impalas, que ocupava mais de duzentos metros da estrada e ambas as bermas e só o aproximar da viatura as fez afastar!
Manada de impalas ao lado da picada.
Caça e caçadores foi o tema e o Figueiredo lá foi mencionando o nome dos animais que íamos encontrando, alguns dos quais eu via pela primeira vez: impalas, zebras, Inhacosos, bois-cavalos, imbabalas, elandes, inhalas, gondongas, girafas, pequenos cabritos, facoceros, búfalos e até elefantes!
Durante os primeiros trinta quilómetros foi um autêntico festival de animais, que ao longo daquele percurso iam e vinham do rio ou simplesmente pastavam naquela manhã fresca! Apenas os elefantes (uma manada de cerca de vinte), que a pouco mais de cem metros da estrada comiam folhagem das árvores, se mostraram mais assustados com o aproximar das três viaturas e apressadamente
bateram em retirada. Os restantes animais, incluindo os desconfiados búfalos que avistámos por três vezes em pequenas manadas, corriam apenas umas dezenas de metros e logo ficavam especados olhando a barulhenta e poeirenta caravana que passava!
Zebras e bois cavalos atravessando a estrada espantadas pela aproximação da viatura!
Ocupado com a condução do pesado veículo, o Figueiredo afrouxava sempre que alguns atrevidos antílopes surgiam mesmo à nossa frente, para evitar o atropelamento. Dizia que já tinha havido muitas colisões de animais com os carros da empresa e por vezes com danos consideráveis na chaparia, nos vidros e até nos radiadores. Por isso, havia instruções rigorosas para que os motoristas
fizessem aquele percurso a uma velocidade reduzida e com os maiores cuidados para evitar esses choques, sobretudo durante a noite e as primeiras horas do dia, por serem os períodos em que os animais mais se aproximam do rio e inevitavelmente atravessam a estrada que corre paralela e próxima!
Este espectáculo, novo e deslumbrante para mim, não despertava grande interesse no meu parceiro de viagem, que estava habituado a ver tantos animais neste mesmo trajecto. Foi dizendo que até nem era um dia de sorte pois noutras alturas, sobretudo na época sêca quando não há água nas lagoas e charcos do interior, os animais afluem em maior número ao rio para se dessedentarem!
A avaliar pelos animais que vira naquele dia, que foram alguns milhares, imaginei como era fabuloso o potencial faunístico daquela região!
Os meus comentários eram de espanto e curiosidade, sempre que passávamos por mais animais! O Figueiredo bem se apercebeu do meu entusiasmo e a cada passo dizia que eu era um homem de sorte por ter sido colocado nesta circunscrição, pois aqui tinha a possibilidade de ver e caçar muitos e variados animais e não seria necessário ir para muito longe do Pafúri!
Disse-me que havia outras zonas densamente povoadas de espécies, destacando o Banhine como a principal. Era uma vasta região do interior, entre os rios Limpopo e o Save, caracterizada por savanas e uma extensa planície central. Ali se concentravam enormes manadas de búfalos, elefantes, girafas, zebras, bois-cavalos, avestruzes, elandes e outras espécies. Daí que os caçadores, vindos
da capital e até da África do Sul, ali afluíam!
Cerca de vinte anos depois, em 1973, seria criado o Parque Nacional de Banhine, para salvaguardar as espécies da região, algumas consideradas raras e em perigo de extinção, como a girafa, avestruz, palapala cinzenta, mezanze, raposa orelhuda e lebre saltadora, praticamente inexistentes noutras áreas.
Só alguns anos mais tarde, depois de me ter dedicado à defesa e protecção da fauna bravia e de ter conhecido praticamente todo o território, reconheci a importância do potencial faunístico do Alto Limpopo, sem dúvida o mais completo de Moçambique por englobar a maior variedade de espécies selvagens!
Depois dos primeiros trinta quilometros e já com o sol a aquecer, deixámos de avistar animais!
De quando em quando eram visíveis as pegadas de elefantes e de búfalos e até excrementos em plena estrada, alguns deles denunciando a passagem durante a noite destes animais.
O terreno deixou de ser plano e a própria vegetação alterou a paisagem verde e fresca que até ali consolava a vista! Começaram a aparecer os primeiros embondeiros (adansonia digitata), a mais emblemática árvore africana que atinge cerca de 25 metros de altura e um diâmetro de proporções que por vezes ultrapassam a largura de um camião normal!
Embondeiro
(Desenho estilizado)
Já perto do Pafúri voltamos a ver alguns animais, desta vez cudos, facoceros (javalis) e um lince (Felis caracal), animal raramente visto, no dizer do Figueiredo.
Por volta das nove horas cheguei finalmente ao meu destino, o Pafúri, sede da circunscrição do Alto Limpopo, dez dias depois de ter saído de Inhambane!
Marrabenta, Setembro de 2001
Celestino Gonçalves
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