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Vila
Luisa
Praia Macaneta
Regresso atribulado Nota final
MEMÓRIAS
(Capítulo
I)
OS MEUS PRIMEIROS CONTACTOS COM A FAUNA
BRAVIA EM MOÇAMBIQUE
A situação dos meus familiares ao tempo da minha
chegada a Moçambique, no início do ano de 1952, levaram-me a ter como
primeiro local de residência naquele maravilhoso país africano uma
pequena mas muito bonita localidade situada a 30 quilómetros da capital Lourenço Marques.

Chamava-se na altura Vila Luisa e era a sede da
circunscrição administrativa de Marracuene (1). Um
local histórico já que aqui se desenrolou, nos finais do século
passado, um dos maiores combates da época, integrados na chamada
“guerra de pacificação”, entre as tropas portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque e os nacionalistas sob direcção do prestigioso régulo Gungunhana (2).
Localizada numa elevação sobranceira ao
Rio Incomáti, na sua margem direita, esta vila, para além da sua
extraordinária beleza natural, dispunha de duas atracções turísticas
muito importantes e que ali atraíam inúmeros visitantes, quer nacionais
quer estrangeiros: Os hipopótamos e crocodilos do rio e a praia da Macaneta.
Bem servida por estrada alcatroada e por via férrea,
e com algumas infraestruturas para refeições, nomeadamente o bonito
Restaurante Pavilhão de chá, estratégicamente construído pelos
Caminhos
de Ferro com vista panorâmica para o rio e onde aos domingos o velho
Nunes, seu concessionário, proporcionava animadas tardes dançantes ao
som de músicas românticas que ele tão bem executava ao piano e que já
vinham do tempo em que fora músico profissional em paquetes transatlânticos,
Vila Luisa orgulhava-se de ser, na época, a rainha do turismo de Moçambique,
servindo não só a população da capital como dos países vizinhos que
ainda não dispunham de acessos a outros locais de veraneio que só muito
mais tarde vieram a ser desenvolvidos como é o caso da Ponta do Ouro, Bilene, Xai-Xai, Chongoene, Chidenguele, Závora, Baía dos Cocos, Tofo,
Vilanculos, Bazaruto, Inhassoro, Santa Carolina e outros polos turísticos
ao longo da costa. |
Vista do rio Incomáti a
partir do Miradouro, em 1957 |
Os Caminhos de Ferro de Moçambique, como promoção dos seus
transportes ferroviários e rodoviários, contribuía grandemente para o
fluxo de turismo que ali se verificava. Dispunha de duas embarcações de
passageiros próprias para passeios no rio e as excursões eram diárias
com predominância de sul africanos e de tripulantes de navios que
aportavam a Lourenço Marques. Paralelamente e sob orientação de um
delegado residente, desenvolvia a importante tarefa de embelezamento e
manutenção da encosta que desde o Pavilhão de chá se estendia
até
ao rio e mantinha em funcionamento um excelente campo de ténis.
Os Serviços Florestais e a Administração locais
desenvolviam igualmente tarefas de jardinagem e obras enquadradas no
ambiente paisagístico desta Vila, destacando-se o confortante e bem
localizado miradouro; os viveiros com as sebes periféricas sempre muito
bem aparadas; as pérgulas de buganvílias e trepadeiras; os
arranjos e colocação de mesas e bancos envolvendo árvores frondosas; os
passeios e escadarias encosta abaixo; a dispersão dos bonitos aloés e
das elegantes cicadaceas (3); os próprios jardins da
vila; etc,.
Recém
casados, no jardim da Vila, no dia dos meus 25 anos |

Tudo isto conferia à vila uma beleza ímpar de que muito se orgulhavam
os seus habitantes e que os citadinos se habituaram a desfrutar aos fins
de semana, uns apenas para uma merenda à sombra das mafurreiras ou das pérgulas,
outros para saborearem as célebras galinhas à cafreal que os
restaurantes locais muito bem sabiam confeccionar. Outros ainda para a
tradicional volta de barco rio abaixo ou rio acima para observarem mais de
perto os corpulentos hipopótamos e um ou outro crocodilo curtindo a
digestão ao sol nas margens. Finalmente, não faltavam os mais
rapioqueiros nas tardes de domingo para um pé de dança no Pavilhão de
chá.

A riqueza faunística do rio Incomáti tornou-se no
ex-libris de Vila Luisa e mereceu o estatuto de protecção (4).
Da sua rua marginal se pode observar o deslumbrante espectáculo do rio
serpenteando através da planície e ali mesmo em frente, ligeiramente
descaído para jusante, a meio do caudal, encontra-se o banco de areia que
ao longo dos anos se transformou numa ilhota conhecida por “Ilha dos
hipopótamos”. Era ali que se concentrava um núcleo de cerca de três
dezenas destes curiosos paquidermes, perfeitamente visíveis a olho nú de
qualquer ponto sobranceiro ao rio e nomeadamente da marginal e do seu
miradouro. Observá-los fora da água, nas suas brincadeiras e por vezes
nas lutas entre machos adultos e escutar os cavernosos roncos tão
característicos desta espécie, era uma sensação única sómente vivida
em África no seio da vida animal ainda no seu verdadeiro estado
selvagem ! |

Para além da atracção que o rio proporcionava em matéria de fauna
bravia, ali muito bem representada por muitas centenas de hipopótamos
dispersos em pequenos grupos desde a foz até à povoação de Incanine, a
cerca de dez quilómetros para montante de Vila Luisa e de um número
muito elevado de crocodilos, era o mesmo rio ainda fértil em peixes
de várias espécies devido à proximidade do mar. A sua foz dista apenas
uns dez quilómetros a partir da vila e a influência das marés
faz-se sentir por mais de 30 quilómetros para montante, ou seja por
alturas da vila da Manhiça, também situada junto à sua margem direita.
Para lá convergiam centenas de pescadores amadores, quer utilizando
barcos, quer pescando das margens e normalmente conseguiam óptimas
pescarias. Eu próprio saboreei as vantagens deste potencial !
As vicissitudes da vida, que muitos preferem designar por destino,
levaram-me a este local onde a vida decorria ao bom estilo africano e sem
muitas confusões já que a população, quer da vila, quer a rural,
mantinha um bom relacionamento entre si e as actividades, tanto
governamentais como privadas, passando pelos agricultores, criadores de
gado e comerciantes decorriam com toda a normalidade. O vale do Incomáti
albergava imensos agricultores, desde moçambicanos, portugueses e
chineses, que produziam tudo o que é possível em terras férteis como
estas. Um autêntico celeiro da cidade capital Lourenço Marques, hoje Maputo. E daqui saíam também milhares de toneladas de boa banana para a
África do Sul, através de uma cooperativa que o Benjamim Cacho organizou
e bem dirigiu ao longo de muitos anos!
O que a princípio se previa ser apenas uma breve passagem por Vila Luisa, para onde fui logo após a minha chegada a Moçambique,
beneficiando das melhores condições de habitação dos familiares ali
residentes relativamente a outros que viviam em Lourenço Marques,
acabou por marcar o meu futuro ! Ali tive o meu primeiro emprego
(amanuense da Administração, durante os três meses que precederam a
minha entrada no serviço militar); para ali voltei como funcionário do
Quadro administrativo; ali me apaixonei e casei; ali tive as primeiras
experiências e contactos com a grande fauna bravia que muito me motivaram
a concorrer, na primeira oportunidade que surgiu alguns anos depois, ao
lugar de fiscal de caça !

Com os meus três irmãos
residentes em Moçambique, em 1956, no dia do meu casamento |
A PRAIA DA MACANETA
A cerca de 7 kms de Vila Luisa, do lado esquerdo do rio,
encontra-se a praia da Macaneta, que embora gozasse já de muita fama
naquele tempo, era pouco frequentada devido às péssimas condições da
picada que então existia ao longo da planície, desde a vila até às
dunas da própria praia. Para servir as populações, criadores de gado,
agricultores da margem esquerda do Incomáti e ainda os frequentadores da
praia, havia - e ainda há - um batelão situado num ponto onde o
rio anda à volta de 300 metros de largura. Por ali passavam os
felizes possuidores de jeeps que se atreviam a fazer os tais 7 kms
de picada e juntos com os que utilizavam os barcos descendo o rio constituiam o reduzido núcleo dos frequentadores daquela maravilhosa
praia.
Foi atraído pela fama desta praia que caí na tentação, poucos
dias após a minha chegada a Vila Luisa e enquanto aguardava o meu
primeiro emprego em Moçambique, de fazer uma viagem em canoa, rio abaixo,
na companhia do Carlos, mais ou menos da minha idade, filho do velho Nunes
do Pavilhão de chá.
O barco foi alugado a um pescador do rio e não passava de um tosco
tronco de árvore cavado, a que chamam almadia, com pouco mais de dois
metros de comprimento, já velho e em muito más condições já que metia
água através de algumas rachas nos costados.
A decisão fora tomada em cima da hora e quando ambos pescávamos
à linha da margem do rio e já depois do almoço. Não avisámos portanto
os respectivos familiares o que não me preocupou a princípio pois no
dizer do meu companheiro a viagem seria uma hora para baixo e outra hora
para cima, pelo que à tarde e contando com mais uma hora para ver a praia
estaríamos de volta mais ou menos pelas 17 horas.
Era a primeira vez que entrava em semelhante embarcação e ainda por
cima para navegar num rio pejado de crocodilos e hipopótamos ! No entanto
o espírito de aventura próprio da idade e o entusiasmo que o Carlos me
transmitiu com as suas histórias sobre hipotéticas e bem sucedidas
descidas do rio nas mesmas condições, onde se viam os hipopótamos e
crocodilos a meia dúzia de metros do barco, deixaram-me muito excitado e
ao mesmo tempo feliz por participar naquela viagem fluvial. No
fundo, a minha primeira aventura em Moçambique !
Não me apercebi dos perigos que ambos poderíamos correr e confiei
plenamente na “experiência” do meu companheiro.
A maré estava no início da descida das águas, portanto favorável
para uma rápida viagem.

Manobrando cada um o seu remo, igualmente toscos como a embarcação, lá
conduzimos a nau para a parte mais funda do rio onde a corrente era mais
forte e rápidamente nos aproximámos da ilha dos hipopótamos, na altura
e como era hábito, repleta destes animais. Foi a primeira sensação,
desta que viria a ser uma atribulada viagem, embora a ignorância de ambos
não desse para compreender que tínhamos acabado de passar um verdadeiro
perigo ! Poderíamos ter sido abalroados já que três dos animais sairam
do terreno firme onde se encontravam e mergulharam mesmo à nossa frente !
Felizmente que a embarcação já levava muita embalagem e quando os
hipopótamos voltaram à tona da água, mais ou menos na posição por
onde passámos, já estávamos uns bons dez metros a jusante dos mesmos !
Tomámos a reacção dos animais como natural e o meu companheiro,
que se dizia conhecer bem os seus hábitos, comentava que eles só queriam
assustar-nos e que fazem isso sempre que as embarcações se aproximam .
A viagem continuou em bom ritmo. Bastavam umas ligeiras remadas e
algumas correcções na direcção já que a corrente aumentava de
velocidade à medida que íamos descendo o rio. Pelo caminho ainda encontrámos
mais hipopótamos dispersos que não se aproximaram nem simularam qualquer
tentativa de intimidação à nossa passagem. Vimos também alguns
crocodilos, talvez uns dez, fora da água e todos reagiram de igual modo:
mergulharam rápidamente quando nos aproximávamos, desaparecendo nas águas
por baixo das plantas aquáticas – os jacintos – que já nessa época
infestavam os principais rios de África. Lembro-me que um deles tinha um
tamanho gigantesco e ter-se-á assustado com a nossa repentina aproximação
atirando-se ao rio num salto de barriga que para além do estrondo
provocou ondas que atingiram a almadia e nos obrigaram a uma manobra
delicada para não afundarmos !
Em pouco menos de uma hora fizemos a descida do rio até às dunas
da Macaneta e como nota negativa foi termos de retirar constantemente a água
que se infiltrava através das frestas do barco, utilizando uma pequena
cabaça ali colocada pelo dono do barco, já habituado a tal tarefa.
Depois de amarrarmos o barco a um tronco seco de mangal, apressámo-nos
a fazer a travessia das dunas, o que não foi muito fácil naquele ponto.
Tivemos que procurar os melhores caminhos sempre dificultados pelo
emaranhado da floresta costeira que é sempre complicada por ser muito
baixa e fechada. Uma boa meia hora depois tínhamos chegado ao alto das
dunas e, finalmente, estavamos em frente ao grande oceano Indico !

Fiquei extasiado com o que via e nem sabia bem se era o mar ou a praia
que mais me atraía a atenção. Depois de uns instantes recompuz-me
da surpreza deste espectáculo e olhei em todas as direcções para me
certificar da posição geográfica onde estava. Para a esquerda, no
sentido do norte, estende-se a praia de areias brancas a perder de vista.
Para a direita, idêntica configuração mas recortada com a silhueta da
Ilha da Xefina-pequena. Na rectaguarda fica o rio que um pouco mais
abaixo de onde nos encontrávamos quási se encosta ao mar e desta forma
segue até à foz, dividido apenas por uma língua de areias que só acaba
cerca de cinco quilometros depois, quando a força do oceano as contém e
deixa passar as águas que o Incomáti ali descarrega.
As águas aqui são límpidas e muito batidas com ondas parecidas às
do oceano Atlântico. É a praia mais próxima da capital do país e faz
inveja às suas congéneres da Polana , Costa do Sol e Catembe, que fazem
parte da grande baía do Maputo, de águas calmas mas pouco limpas já que
recebem os caudais de cinco rios: Incomáti, Matola, Umbeluzi, Tembe e
Maputo.
Nem viv’alma naquela imensidão de areias límpidas, o que não
admirava já que só aos fins de semana era normal virem os frequentadores
habituais, alguns deles já ali haviam demarcado lugares para acampar!
Aproveitei para tomar o meu primeiro banho em águas marinhas de Moçambique
e nisso fui secundado pelo me companheiro que, entretanto, me advertira
que deveríamos ter cuidado com os tubarões, que ali não faltariam e que
por norma andam muito próximo da rebentação.
Penso que foi esta a recomendação mais sensata que o Carlos me fez ao
longo desta viagem e durante toda a nossa convivência ! Naquele dia não
vimos os tubarões mas mais tarde, quando por várias vezes voltei à Macaneta, era frequente vê-los ao longo da rebentação! |
O REGRESSO ATRIBULADO
Depois de mais de uma hora na praia voltámos ao rio para iniciar a viagem
de regresso e nada parecia ter alterado os planos quanto ao cumprimento dos horários.
Seriam quatro horas da tarde quando chegámos junto da almadia, agora em sêco
devido à descida das águas. Mas logo tivemos a primeira indicação de que as
dificuldades estavam à vista. Com as águas a descer era impossível iniciar a
viagem de regresso !
Mover um pesado tronco cavado a descer o rio, foi coisa de certo modo fácil
mesmo com marinheiros inexperientes como nós. Fazer com que esse mesmo tronco
cavado se movimentasse contra a forte corrente descendente era coisa impossível
com remos, varas ou quaisquer utensílios manuais.
Ficámos para ali a olhar as águas, cada vez mais embaladas na sua direcção
ao mar e carregando um autêntico tapete verde formado pelos jacintos !
Nem um nem outro sabia fazer cálculos relativos aos fluxos das marés !
A desolação começou a apoderar-se de nós à medida que o Sol se
aproximava da linha do horizonte. E como em África os dias são curtos, rápidamente
a noite apareceu ! O fluxo ascendente das águas não havia maneira de se fazer
sentir, antes pelo contrário, parecia infinita a sua descida !
Tentámos várias vezes, mas em vão, movimentar a embarcação para iniciar
o regresso, mas rápidamente desistíamos porque o que acontecia era sermos
sempre arrastados para baixo.
Quando por fim as águas estabilizaram lá conseguimos
iniciar a viagem já no escuro da noite. Só que, após os primeiros
minutos de intensos esforços a remar, ficámos exaustos. O velho tronco cavado
mal se mexia, por um lado devido à imperícia dos marinheiros, por outro à
falta de fluxo ascendente das águas e, por último e não menos pior, o facto
de termos que navegar através do tapete espêsso dos jacintos d’água
que naquela posição da maré baixa se encontravam comprimidos e cobriam práticamente
todo o rio !

Hipopótamo no ambiente aquático invadido de
jacintos d'água
(Foto da autoria de Telford Paul
Dutton) (5)
Finalmente, a escuridão tirava-nos a visão para além de uns
escassos metros.
O inferno do regresso estava à vista e cada vez mais a moral se afundava na
desolação !
Navegar ao longo das margens tornou-se impraticável devido à vegetação
aquática e a solução foi conduzir a embarcação para o meio do rio. Só que
os progressos na subida eram práticamente nulos depois de cerca de meia hora de
desesperadas tentativas de imprimir alguma força e ritmo na manipulação dos
remos.
Daquele ponto até à vila distavam cerca de cinco quilómetros, o que, matemáticamente
e com as águas a correr ao ritmo da descida, teria sido francamente fácil.
Restava-nos a esperança de que, a breve trecho, as águas passassem a vir com
força e a viagem acabaria pouco depois, mesmo com o problema da vegetação a
impedir-nos.
Só que esta matemática não funcionou e os problemas foram aumentando à
medida que o tempo passava. Uma hora depois e já envolvidos numa profunda
escuridão que só o ténue brilho das estrelas cortava mas não dava para
enxergar a rota, notámos que os jacintos rodopiavam à volta da almadia. Era o
sinal de que as águas finalmente iriam inverter o curso no rio e a navegação
seria então mais fácil.

Entretanto não podíamos descurar o escoamento da água que
teimosamente entrava pelas frestas, mais ainda que na viagem de descida devido
à maior pressão nos costados por falta de corrente a nosso favor. Revesávamo-nos
no maneio da cabaça e ambos já estávamos completamente enxarcados devido a
esta operação, à neblina da noite que caía sobre o rio e à imperfeição
das batidas dos remos na água.
As fôrças já estavam a atingir os limites quando propuz ao Carlos
que encostásse-mos a embarcação e procurásse-mos regressar a pé à vila.
Lembrei-lhe das aflições das nossas famílias sem saber onde nos encontráva-mos
e pelo ritmo que a nossa navegação estava a ter não me parecia que pudésse-mos
chegar tão depressa.
O Carlos não aceitou a minha ideia e penso que esteve bem. Argumentou que as
margens do Incomáti, naquela zona, eram muito alagadas, com vários braços do
rio onde prevalecem os mangais de difícil ou mesmo impossível penetração.
Por outro lado, caminhar durante a noite numa área de hipopótamos e crocodilos
era um risco que não deveríamos correr.
E não corremos!
Continuámos a nossa saga e sempre conversando à volta das dificuldades que
se apresentavam. Concluímos que não havia que esmorecer e assim ganhámos mais
ânimo.
Aos poucos fomos sentindo alguns progressos e quando vencemos a primeira
curva que dista cerca de um quilómetro do ponto de partida da Macaneta,
divisámos aquilo que nos pareceu um enorme tronco à tona da água e muito
envolvido de vegetação aquática. Quando nos aproximámos fomos surpreendidos
com a brusca elevação de um hipopótamo, que, assustado com a nossa aproximação,
resolveu emitir aquele ronco característico submergindo acto contínuo e com
violência na água ! Ficámos estupefactos a boiar sobre as ondas por ele
provocadas e com certa dificuldade lá conseguimos equilibrar o velho tronco
cavado enviusando-o na direcção que nos pareceu mais conveniente para evitar o
abalroamento.

O primeiro comentário que fizemos foi para elogiar a nossa embarcação, que
afinal nem era assim tão má, já que se aguentara muito bem naquela confusão
das águas em reboliço !
Lá continuámos, agora mais atentos aos vultos sobre a água, sempre difíceis
de descortinar por falta de visibilidade e ainda pela vegetação flutuante
agora mais concentrada junto às margens e em tufos contínuos que por vezes até
conseguia-mos acompanhar.
Não muito longe do encontro com o hipopótamo, deparámos de novo com outros
mais, igualmente perto da margem direita que era a nossa preferida para navegar
já que, em caso de naufrágio, teríamos melhores hipóteses de salvamento. O
estardalhaço desta vez foi muito maior e pelos roncos e agitação na água
concluímos terem sido pelo menos três animais.

Voltámos a ter algumas dificuldades em controlar a velha almadia que desta
vez meteu uma boa quantidade de água. E tal como no anterior encontro, também
neste não perdemos a calma e limitámo-nos a fazer o desvio possível da zona.
A noite já ía adiantada e os progressos de navegação só agora começavam
a ser evidentes. A corrente já nos permitia menor esforço no maneio dos remos
e depois do segundo encontro com os hipopótamos surgiu uma nova alma para reforçar
as forças: divisámos as luzes da vila ! Trémolas e mortiças e mesmo ainda
distantes, elas deram-nos novo alento e se nas horas que já haviam passado
desde a partida da Macaneta até aqui alguma vez caímos em desânimo, a partir
daqui tudo foi diferente. A vila estava à vista e pelos cálculos não estaria
a mais de três quilómetros !
Não havia ainda motivos para festejar, mas insuflados de novas forças
continuámos a avançar sempre perto da margem nossa preferida. Discutimos como
fazer a aproximação cuidadosa da ilha dos hipopótamos, tendo em atenção que
os animais àquela hora ou estariam nas margens do rio, a pastar, ou a
caminho delas e seria muito provável um novo encontro.
Não nos enganámos ! Muito antes da zona da ilha apareceram hipopótamos
isolados por todo o lado, mais parecendo que estavam a fazer-nos uma barragem ao
caminho !
Uns levantavam-se muito perto de nós, outros mais adiante e até já os tínhamos
na rectaguarda agitando as águas e roncando fortemente.
No meio deste labirinto, que à vista era difícil avaliar porque a escuridão
não dava para enxergar mais que uns parcos metros em redor da almadia, limitámo-nos
a fazer zigue-zagues procurando sempre as zonas do rio mais calmas. Numa das
situações mais complicadas tivemos a sensação que fomos levantados da água
uns bons trinta centímetros pelo dorso de um hipopótamo. Mais tarde admitimos
ter sido um crocodilo.

Acalmados e já sem movimentos de animais por perto, retomámos a rota e
quando nos faltava vencer o último quilómetro, já com as luzes da vila bem
visíveis, notámos grande azáfama junto ao cais de portagem dos ferry-botes
dos Caminhos de Ferro e vários focos de luz pela encosta e na rua marginal.
A população em pêso estava num verdadeiro alvoroço devido ao nosso
desaparecimento!
O ferry-bote, bem iluminado, arrancou rio abaixo e rápidamente nos encontrou
e recolheu. Passava já da meia noite !
Ouvimos das boas, sobretudo do velho marinheiro da embarcação dos Caminhos
de Ferro, que nem acreditava como nos safámos daquela aventura, referindo
alguns casos fatais com pescadores que foram trucidados pelos hipopótamos em
circunstâncias menos atrevidas. Repetiu várias vezes que navegar durante a
noite num barquito daqueles, num rio pejado de hipopótamos e, sobretudo, por
causa das fêmeas acompanhadas de crias, era um autêntico suicídio !
Só então, perante estas bem aplicadas descomposturas, compreendi que a
ignorância de ambos poderia ter causado um grande desgosto aos nossos
familiares !
Só então senti arrepios de mêdo !
No fundo, o que mais terá contribuído para termos saído ilesos daquela
aventura idiota, foi precisamente o facto de não termos sentido mêdo – fruto
da ignorância de ambos - nos momentos em que estivemos envolvidos com os hipopótamos
no rio. Teria sido fatal se o pânico se apoderasse de nós naqueles momentos em
que a almadia rodopiava sobre as águas revoltas pelos paquidermes
Uma grande lição que muito bem soube aproveitar ao longo da minha carreira
em Moçambique !
É dos livros e ao longo da minha carreira pude constatar isso, que
os hipopótamos são os animais bravios africanos que mais mortes provocam nos
humanos. Tal como os elefantes em terra, eles são os reis absolutos no seu
ambiente aquático. Perturbá-los nesse meio é muito arriscado, sobretudo
quando existem crias. As fêmeas progenitoras defendem-nas implacávelmente e
por vezes atacam as embarcações que se aproximam, abocanhando-as e trucidando
os seus ocupantes, só os abandonando quando mortos.
Os casos sucedem-se por todo o lado e as príncipais vítimas
são os pescadores tradicionais que na sua faina em lagoas ou rios se atrevem a
chegar mais perto destes animais, normalmente utilizando pequenas e por isso
muito frágeis embarcações.
Registei muitas dezenas destes casos no decorrer da minha actividade
profissional, alguns deles implicaram a minha própria intervenção ou das
brigadas a meu cargo para eliminar os animais, por vezes reincidentes e que já
eram considerados muito perigosos. A própria lei previa estas situações e
determinava as formas de actuação no âmbito da defesa humana (6).

Por ironia do destino, pude testemunhar também as consequências de um
desses casos, em que foi protagonista o velho e experimentado marinheiro do ferry-boat
dos Caminhos de Ferro, precisamente aquele que na noite da aventura no rio Incomáti nos foi procurar e nos deu a repreensão que acima reproduzi!!!
Foi nos finais do ano de 1956 e na altura trabalhava de novo na Administração
de Marracuene, já depois de colocações em Inhambane, Pafúri e Lourenço
Marques.
A notícia chegou à Secretaria da Administração através do delegado local
dos Caminhos de Ferro. Ía comunicar um acidente acabado de acontecer no rio: um
hipopótamos atacara o ferry-boat cheio de turistas!!!
Fui com outros elementos da Administração ao cais de atracagem onde ainda
havia alguma confusão. Os turistas estavam a ser transferidos para uma viatura
para regressarem a Lourenço Marques, alguns deles visívelmente assustados e
uns quantos com escoriações ligeiras. O ferry-boat com cerca de
12 a 15 metros de comprimento e todo em ferro, já atracado, apresentava o
costado de bombordo (esquerdo) e do lado da popa, com rasgões e amolgadelas até
muito perto da linha de água !!!
Fora uma fêmea que investira no momento em que o ferry-boat se
aproximou demasiado de um grupo onde havia crias !
Explicou o velho marinheiro que tudo fora tão rápido que ele próprio não
tivera tempo de desviar a embarcação. E acrescentou que jámaias vira uma cena
daquelas em que o animal atacou com uma tão grande fúria que chegou a recear
que afundasse o barco. Ele e os seus ajudantes, assim como o delegado e os
turistas que ocupavam cerca de metade da lotação, viveram momentos aflitivos
quando viram o enorme animal emergir da água, levantar-se quási a pique e
abocanhar o parapeito e a própria amurada, sacudindo a embarcação e rasgando
ao mesmo tempo o ferro como se fosse cartão ! Cena esta que o animal repetiu
diversas vezes, no que parecia disposto a afundar o barco !
Felizmente que não houve mortes e os pequenos ferimentos em alguns turistas
resultaram das quedas e confusão no interior da embarcação nos momentos em
que se deu o ataque do hipopótamo.
Era até ali o acidente mais grave com os barcos de turismo no Incomáti. Os
muitos casos anteriores nunca passaram de pequenos encostos e ameaças dos
paquidermes, sempre sanados com a perícia dos respectivos marinheiros e príncipalmente
pela consistência e envergadura das embarcações.

Este tipo de ferry-boat é muito
utilizado nos rios e lagos africanos para
observação da fauna aquática
*
*
*
Durante a recente estadia em Moçambique (Outubro de 99 a Janeiro de 2000)
e como sempre fizemos em viagens anteriores, fomos a Marracuene para visitar e
tratar as campas dos familiares ali sepultados. Ali encontramos sempre velhos
amigos, naturais da terra, que recordam a família Figueiredo (pais de minha
mulher) com a simpatia e respeito que ela sempre mereceu da população e das
autoridades. Recordam alguns que foi o velho Figueiredo o português escolhido
para receber a bandeira portuguesa das autoridades moçambicanas, na cerimónia
que assinalou a independência de Moçambique em 25 de Junho de 1975.
Esta família, com raizes comerciais antigas e sólidas, tinha um profundo
amor a Vila Luisa. Nunca aceitaram regressar a Portugal nem nunca para cá
transferiram quaisquer valores. Diziam ser aquela a sua verdadeira terra !
Faleceram em 1977 (a mulher) e em 1983 (o homem).
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NOTA FINAL
Dedico esta primeira crónica das minhas memórias às minhas três netas
– Maura, Dania e Viviana –, as primeiras naturais e residentes em Maputo-Moçambique
e a última natural e residente em Lisboa.

Com as netas, no quintal da nossa residência
em Amor - Portugal, no Verão de 1998
Elas, que ainda são novinhas, poderão mais tarde encontrar aqui algumas
explicações sobre as suas origens e até achar piada de como este seu
ascendente iniciou a sua vida e formou a família de que elas descendem.
Por outro lado, tratando-se do primeiro episódio de uns quantos da minha
carreira, que pretendo deixar para a posteridade para ajudar a conhecer a
história da fauna e da caça em Moçambique na segunda metade do século vinte,
naturalmente que elas serão as primeiras a querer saber das razões que levaram
o avô a seguir a sua carreira neste sector e o que é que fez durante os
trinta e oito anos em que trabalhou neste país.
Melhor conhecendo os seus ascendentes, melhor se conhecerão a si próprias !
Tenho a certeza que este episódio tocará muito particularmente à Maura,
que é a mais velhinha e já nos acompanhou algumas vezes a Marracuene quando
ali fomos tratar das campas dos seus antepassados – o trisavô e bisavós
maternos ! Também ela já se declarou admiradora daquela bonita vila e o facto
de estarem lá sepultados aqueles seus familiares certamente a terá
influenciado neste sentimento.
Uma garantia lhe podemos dar (e agora falo também pela avó): iremos sempre
a Marracuene, tratar das campas e sentar um pouco no miradouro para olhar o rio,
a planície, as dunas da Macaneta que escondem a praia e o mar e, sobretudo,
para meditar !…
Levá-la-emos sempre conosco !
Notas explicativas:
(1)- Na nova toponímia de Moçambique,
esta, como outras vilas e cidades do país que usavam nomes atribuídos
pela administração portuguesa, passaram a usar os nomes tradicionais que já
tinham no passado. Assim, Vila Luisa (nome atribuído em homenagem ao
antigo Governador da Colónia, António Enes, na pessoa de sua filha Luisa)
voltou a chamar-se Marracuene.
(Voltar ao texto)
(2)- Gungunhana foi, no final do século
dezanove, um dos chefes tribais que mais combateu a ocupação colonial
portuguesa. Ele chefiou um exército de combatentes contra as tropas
portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque e Marracuene foi palco
de uma violenta batalha. Acabaria por ser feito prisioneiro, mais
tarde e depois de novos combates em Chaimite, Magul e Colela. Foi
deportado para Portugal e desterrado nos Açores, onde veio a morrer.
Depois da independência de Moçambique, Portugal entregou os seus restos
mortais, que se encontram depositados na cripta do monumento aos herois moçambicanos,
em Maputo, ao lado dos de Eduardo Mondlane, Samora Machel
e outros heróis deste país.
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(3) Algumas espécies de cicadaceas
abundavam na região de Marracuene, endémicas da parte sul de Moçambique
e rezam os livros da matéria que se trata de fósseis vivos dos mais antigos da
flora deste país.

Encephalartos
Umbeluziensis, uma das belas cicadaceas do sul de Moçambique
São plantas muito procuradas,
sobretudo por sul-africanos que não as dispensam dos seus jardins e mesmo dos
parques públicos, dada a sua rara beleza e resistência. No período
antes da independência houve uma razia nestas plantas através da acção de
negociantes que as carregavam em grandes quantidades para negócio na África do
Sul. Embora protegidas por lei, crê-se que estão práticamente
extintas
na maioria do território onde abundavam!
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(4)-Ver Mapa 4 – Regimes de Vigilância
Especial de Moçambique (RVE´s).
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(5)-
Paul Dutton, conhecido ecologista sul africano que
desde 1973 tem desempenhado em Moçambique tarefas muito valiosas no âmbito da
conservação dos recursos naturais em geral e da fauna bravia em particular,
tirou esta foto na lagoa Mareza, Parque Nacional da Gorongosa, em 1980,
altura em que os efectivos desta espécie, neste Parque, rondavam os 3000
animais. Neste momento apenas 4 ou 5 dezenas se encontram ali! Esta foto,
pela sua originalidade, mereceu a escolha de muitas revistas que a tornaram
conhecida mundialmente. Apareceu ainda em cartazes e posteres de organizações
de protecção à fauna.
Paul Dutton foi recentemente galardoado, em Johannesburg, com o prémio "Audi-Terra Nova", importante
distinção a nível mundial atribuída anualmente a indivíduos que
se destacam na protecção do meio ambiente e da fauna bravia !
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(6)-Lei sobre a Defesa Humana – Diplomas
1982, de 1960 e 2630 de 1965.
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Marrabenta, Março de 2000
Celestino Gonçalves

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Celestino Gonçalves

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