Memórias - Capítulo I
 
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Vila Luisa Praia Macaneta Regresso atribulado Nota final

               

MEMÓRIAS

(Capítulo I)

OS MEUS PRIMEIROS CONTACTOS COM A FAUNA BRAVIA EM MOÇAMBIQUE
 
A situação dos meus familiares ao tempo da minha chegada a Moçambique, no início do ano de 1952, levaram-me a ter como primeiro local de residência naquele maravilhoso país africano uma pequena mas muito bonita localidade situada a 30 quilómetros da capital Lourenço Marques.

Chamava-se na altura  Vila Luisa e era a sede da circunscrição administrativa de Marracuene (1). Um local histórico já que aqui se desenrolou, nos finais do século passado, um dos maiores combates da época, integrados na chamada “guerra de pacificação”, entre as tropas portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque e os nacionalistas sob direcção do prestigioso régulo Gungunhana (2).
Localizada numa elevação sobranceira ao Rio Incomáti, na sua margem direita, esta vila, para além da sua extraordinária beleza natural, dispunha de duas atracções turísticas muito importantes e que ali atraíam inúmeros visitantes, quer nacionais quer estrangeiros: Os hipopótamos e crocodilos do rio e a praia da Macaneta.

Bem servida por estrada alcatroada e por via férrea, e com algumas infraestruturas para refeições, nomeadamente o bonito Restaurante Pavilhão de chá, estratégicamente construído pelos Caminhos de Ferro com vista panorâmica para o rio e onde aos domingos o velho Nunes, seu concessionário, proporcionava animadas tardes dançantes ao som de músicas românticas que ele tão bem executava ao piano e que já vinham do tempo em que fora músico profissional em paquetes transatlânticos, Vila Luisa orgulhava-se de ser, na época, a rainha do turismo de Moçambique, servindo não só a população da capital como dos países vizinhos que ainda não dispunham de acessos a outros locais de veraneio que só muito mais tarde vieram a ser desenvolvidos como é o caso da Ponta do Ouro, Bilene, Xai-Xai, Chongoene, Chidenguele, Závora, Baía dos Cocos, Tofo, Vilanculos, Bazaruto, Inhassoro, Santa Carolina e outros polos turísticos ao longo da costa.

Vista do rio Incomáti a partir do Miradouro, em 1957

Os Caminhos de Ferro de Moçambique, como promoção dos seus transportes ferroviários e rodoviários, contribuía grandemente para o fluxo de turismo que ali se verificava. Dispunha de duas embarcações de passageiros próprias para passeios no rio e as excursões eram diárias com predominância de sul africanos e de tripulantes de navios que aportavam a Lourenço Marques. Paralelamente e sob orientação de um delegado residente, desenvolvia a importante tarefa de embelezamento e manutenção da encosta que desde o Pavilhão de chá se estendia até ao rio e mantinha em funcionamento um excelente campo de ténis.
Os Serviços Florestais e a Administração locais desenvolviam igualmente tarefas de jardinagem e obras enquadradas no ambiente paisagístico desta Vila, destacando-se o confortante e bem localizado miradouro; os viveiros com as sebes periféricas sempre muito bem aparadas; as pérgulas de buganvílias e trepadeiras;  os arranjos e colocação de mesas e bancos envolvendo árvores frondosas; os passeios e escadarias encosta abaixo; a dispersão dos bonitos aloés e das elegantes cicadaceas (3); os próprios jardins da vila; etc,.

 

 Recém casados, no jardim da Vila,  no dia dos meus 25 anos



Tudo isto conferia à vila uma beleza ímpar de que muito se orgulhavam os seus habitantes e que os citadinos se habituaram a desfrutar aos fins de semana, uns apenas para uma merenda à sombra das mafurreiras ou das pérgulas, outros para saborearem as célebras galinhas à cafreal que os restaurantes locais muito bem sabiam confeccionar. Outros ainda para a tradicional volta de barco rio abaixo ou rio acima para observarem mais de perto os corpulentos hipopótamos e um ou outro crocodilo curtindo a digestão ao sol nas margens. Finalmente, não faltavam os mais rapioqueiros nas tardes de domingo para um pé de dança no Pavilhão de chá.

A riqueza faunística do rio Incomáti tornou-se no ex-libris de Vila Luisa e mereceu o estatuto de protecção (4). Da sua rua marginal se pode observar o deslumbrante espectáculo do rio serpenteando através da planície e ali mesmo em frente, ligeiramente descaído para jusante, a meio do caudal, encontra-se o banco de areia que ao longo dos anos se transformou numa ilhota conhecida por “Ilha dos hipopótamos”. Era ali que se concentrava um núcleo de cerca de três dezenas destes curiosos paquidermes, perfeitamente visíveis a olho nú de qualquer ponto sobranceiro ao rio e nomeadamente da marginal e do seu miradouro. Observá-los fora da água, nas suas brincadeiras e por vezes nas lutas entre machos adultos e escutar os cavernosos roncos tão característicos desta espécie, era uma sensação única sómente vivida em África  no seio da vida animal ainda no seu verdadeiro estado selvagem !


Para além da atracção que o rio proporcionava em matéria de fauna bravia, ali muito bem representada por muitas centenas de hipopótamos dispersos em pequenos grupos desde a foz até à povoação de Incanine, a cerca de dez quilómetros para montante de Vila Luisa e de um número muito elevado de  crocodilos, era o mesmo rio ainda fértil em peixes de várias espécies devido à proximidade do mar. A sua foz dista apenas uns dez quilómetros a partir da vila e a influência das marés  faz-se sentir por mais de 30 quilómetros para montante, ou seja por alturas da vila da Manhiça, também situada junto à sua margem direita. Para lá convergiam centenas de pescadores amadores, quer utilizando barcos, quer pescando das margens e normalmente conseguiam óptimas pescarias. Eu próprio saboreei as vantagens deste potencial !

As vicissitudes da vida, que muitos preferem designar por destino, levaram-me a este local onde a vida decorria ao bom estilo africano e sem muitas confusões já que a população, quer da vila, quer a rural, mantinha um bom relacionamento entre si e as actividades, tanto governamentais como privadas, passando pelos agricultores, criadores de gado e comerciantes decorriam com toda a normalidade. O vale do Incomáti albergava imensos agricultores, desde moçambicanos, portugueses e chineses, que produziam tudo o que é possível em terras férteis como estas. Um autêntico celeiro da cidade capital Lourenço Marques, hoje Maputo. E daqui saíam também milhares de toneladas de boa banana para a África do Sul, através de uma cooperativa que o Benjamim Cacho organizou e bem dirigiu ao longo de muitos anos!
O que a princípio se previa ser apenas uma breve passagem por Vila Luisa, para onde fui logo após a minha chegada a Moçambique, beneficiando das melhores condições de habitação dos familiares ali residentes relativamente a outros  que viviam em Lourenço Marques, acabou por marcar o meu futuro ! Ali tive o meu primeiro emprego (amanuense da Administração, durante os três meses que precederam a minha entrada no serviço militar); para ali voltei como funcionário do Quadro administrativo; ali me apaixonei e casei; ali tive as primeiras experiências e contactos com a grande fauna bravia que muito me motivaram a concorrer, na primeira oportunidade que surgiu alguns anos depois, ao lugar de fiscal de caça !

Com os meus três irmãos residentes em Moçambique, em 1956, no dia do meu casamento

A PRAIA DA MACANETA

 
A cerca de 7 kms de Vila Luisa, do lado esquerdo do rio, encontra-se a praia da Macaneta, que embora gozasse já de muita fama naquele tempo, era pouco frequentada devido às péssimas condições da picada que então existia ao longo da planície, desde a vila até às dunas da própria praia. Para servir as populações, criadores de gado, agricultores da margem esquerda do Incomáti e ainda os frequentadores da praia, havia  - e ainda há - um batelão situado num ponto onde o rio anda à volta de 300 metros de largura. Por ali passavam  os felizes possuidores de jeeps que se atreviam  a fazer os tais 7 kms de picada e juntos com os que utilizavam os barcos descendo o rio constituiam o reduzido núcleo dos frequentadores daquela maravilhosa praia.

Foi atraído pela fama desta praia que caí na tentação, poucos  dias após a minha chegada a Vila Luisa e enquanto aguardava o meu primeiro emprego em Moçambique, de fazer uma viagem em canoa, rio abaixo, na companhia do Carlos, mais ou menos da minha idade, filho do velho Nunes do Pavilhão de chá.
O barco foi alugado a um pescador do rio e não passava de um tosco tronco de árvore cavado, a que chamam almadia, com pouco mais de dois metros de comprimento, já velho e em muito más condições já que metia água através de algumas rachas nos costados.
A decisão fora  tomada em cima da hora e quando ambos pescávamos à linha da margem do rio e já depois do almoço. Não avisámos portanto os respectivos familiares o que não me preocupou a princípio pois no dizer do meu companheiro a viagem seria uma hora para baixo e outra hora para cima, pelo que à tarde e contando com mais uma hora para ver a praia estaríamos de volta mais ou menos pelas 17 horas.
Era a primeira vez que entrava em semelhante embarcação e ainda por cima para navegar num rio pejado de crocodilos e hipopótamos ! No entanto o espírito de aventura próprio da idade e o entusiasmo que o Carlos me transmitiu com as suas histórias sobre hipotéticas e bem sucedidas descidas do rio nas mesmas condições, onde se viam os hipopótamos e crocodilos a meia dúzia de metros do barco, deixaram-me muito excitado e ao mesmo tempo feliz por participar  naquela viagem fluvial. No fundo, a minha primeira aventura em Moçambique !
Não me apercebi dos perigos que ambos poderíamos correr e confiei plenamente na “experiência” do meu companheiro.
A maré estava no início da descida das águas, portanto favorável para uma rápida viagem.

Manobrando cada um o seu remo, igualmente toscos como a embarcação, lá conduzimos a nau para a parte mais funda do rio onde a corrente era mais forte e rápidamente nos aproximámos da ilha dos hipopótamos, na altura e como era hábito, repleta destes animais. Foi a primeira sensação, desta que viria a ser uma atribulada viagem, embora a ignorância de ambos não desse para compreender que tínhamos acabado de passar um verdadeiro perigo ! Poderíamos ter sido abalroados já que três dos animais sairam do terreno firme onde se encontravam e mergulharam mesmo à nossa frente !
Felizmente que a embarcação já levava muita embalagem e quando os hipopótamos voltaram à tona da água, mais ou menos na posição por onde passámos, já estávamos uns bons dez metros a jusante dos mesmos !

Tomámos a reacção dos animais como natural e o meu companheiro, que se dizia conhecer bem os seus hábitos, comentava que eles só queriam assustar-nos e que fazem isso sempre que as embarcações se aproximam .
A viagem continuou em bom ritmo. Bastavam umas ligeiras remadas  e algumas correcções na direcção já que a corrente aumentava de velocidade à medida que íamos descendo o rio. Pelo caminho ainda encontrámos mais hipopótamos dispersos que não se aproximaram nem simularam qualquer tentativa de intimidação à nossa passagem. Vimos também alguns crocodilos, talvez uns dez, fora da água e todos reagiram de igual modo: mergulharam rápidamente quando nos aproximávamos, desaparecendo nas águas por baixo das plantas aquáticas – os jacintos – que já nessa época infestavam os principais rios de África. Lembro-me que um deles tinha um tamanho gigantesco e ter-se-á assustado com a nossa repentina aproximação atirando-se ao rio num salto de barriga que para além do estrondo provocou ondas que atingiram a almadia e nos obrigaram a uma manobra delicada para não afundarmos !

Em pouco menos de uma hora fizemos a descida do rio até às dunas da Macaneta e como nota negativa foi termos de retirar constantemente a água que se infiltrava através das frestas do barco, utilizando uma pequena cabaça ali colocada pelo dono do barco, já habituado a tal tarefa.

Depois de amarrarmos o barco a um tronco seco de mangal, apressámo-nos a fazer a travessia das dunas, o que não foi muito fácil naquele ponto. Tivemos que procurar os melhores caminhos sempre dificultados pelo emaranhado da floresta costeira que é sempre complicada por ser muito baixa e fechada. Uma boa meia hora depois tínhamos chegado ao alto das dunas e, finalmente, estavamos em frente ao grande  oceano Indico !

Fiquei extasiado com o que via e nem sabia bem se era o mar ou a praia que mais me atraía a atenção. Depois de uns instantes  recompuz-me da surpreza deste espectáculo e olhei em todas as direcções para me certificar da posição geográfica onde estava. Para a esquerda, no sentido do norte, estende-se a praia de areias brancas a perder de vista. Para a direita, idêntica configuração mas recortada com a silhueta da Ilha da Xefina-pequena.  Na rectaguarda fica o rio que um pouco mais abaixo de onde nos encontrávamos quási se encosta ao mar e desta forma segue até à foz, dividido apenas por uma língua de areias que só acaba cerca de cinco quilometros depois, quando a força do oceano as contém e deixa passar as águas  que o Incomáti ali descarrega.
As águas aqui são límpidas e muito batidas com ondas parecidas às do oceano Atlântico. É a praia mais próxima da capital do país e faz  inveja às suas congéneres da Polana , Costa do Sol e Catembe, que fazem parte da grande baía do Maputo, de águas calmas mas pouco limpas já que recebem os caudais de cinco rios: Incomáti, Matola, Umbeluzi, Tembe e Maputo.
Nem viv’alma naquela imensidão de areias límpidas, o que não admirava já que só aos fins de semana era normal virem os frequentadores habituais, alguns deles já ali haviam demarcado lugares para acampar!

Aproveitei para tomar o meu primeiro banho em águas marinhas de Moçambique e nisso fui secundado pelo me companheiro que, entretanto, me advertira que deveríamos ter cuidado com os tubarões, que ali não faltariam e que por norma andam muito próximo da rebentação.
Penso que foi esta a recomendação mais sensata que o Carlos me fez ao longo desta viagem e durante toda a nossa convivência ! Naquele dia não vimos os tubarões mas mais tarde, quando por várias vezes voltei à Macaneta, era frequente vê-los ao longo da rebentação!


 

O REGRESSO ATRIBULADO

Depois de mais de uma hora na praia voltámos ao rio para iniciar a viagem de regresso e nada parecia ter alterado os planos quanto ao cumprimento dos horários.
Seriam quatro horas da tarde quando chegámos junto da almadia, agora em sêco devido à descida das águas. Mas logo tivemos a primeira indicação de que as dificuldades estavam à vista. Com as águas a descer era impossível iniciar a viagem de regresso !
Mover um pesado tronco cavado a descer o rio, foi coisa de certo modo fácil mesmo com marinheiros inexperientes como nós. Fazer com que esse mesmo tronco cavado se movimentasse contra a forte corrente descendente era coisa impossível com remos, varas ou quaisquer utensílios manuais.
Ficámos para ali a olhar as águas, cada vez mais embaladas na sua direcção ao mar e carregando um autêntico tapete verde formado pelos jacintos !
Nem um nem outro sabia fazer cálculos relativos aos fluxos das marés !
A desolação começou a apoderar-se de nós à medida que o Sol se aproximava da linha do horizonte. E como em África os dias são curtos, rápidamente a noite apareceu ! O fluxo ascendente das águas não havia maneira de se fazer sentir, antes pelo contrário, parecia infinita a sua descida !
Tentámos várias vezes, mas em vão, movimentar a embarcação para iniciar o regresso, mas rápidamente desistíamos porque o que acontecia era sermos sempre arrastados para baixo.
Quando por fim as águas estabilizaram lá conseguimos iniciar a viagem já no escuro da noite.  Só que,  após os primeiros minutos de intensos esforços a remar, ficámos exaustos. O velho tronco cavado mal se mexia, por um lado devido à imperícia dos marinheiros, por outro à falta de fluxo ascendente das águas e, por último e não menos pior, o facto de termos que navegar  através do tapete espêsso dos jacintos d’água que naquela posição da maré baixa se encontravam comprimidos e cobriam práticamente todo o rio !


Hipopótamo no ambiente aquático invadido de jacintos d'água
(Foto da autoria de Telford Paul Dutton) (5)

 Finalmente, a escuridão tirava-nos a visão para além de uns escassos metros.
O inferno do regresso estava à vista e cada vez mais a moral se afundava na desolação !
Navegar ao longo das margens tornou-se impraticável devido à vegetação aquática e a solução foi conduzir a embarcação para o meio do rio. Só que os progressos na subida eram práticamente nulos depois de cerca de meia hora de desesperadas tentativas de imprimir alguma força e ritmo na manipulação dos remos.
Daquele ponto até à vila distavam cerca de cinco quilómetros, o que, matemáticamente e com as águas a correr ao ritmo da descida, teria sido francamente fácil. Restava-nos a esperança de que, a breve trecho, as águas passassem a vir com força e a viagem acabaria pouco depois, mesmo com o problema da vegetação a impedir-nos.
Só que esta matemática não funcionou e os problemas foram aumentando à medida que o tempo passava. Uma hora depois e já envolvidos numa profunda escuridão que só o ténue brilho das estrelas cortava mas não dava para enxergar a rota, notámos que os jacintos rodopiavam à volta da almadia. Era o sinal de que as águas finalmente iriam inverter o curso no rio e a navegação seria então mais fácil.

   Entretanto não podíamos descurar o escoamento da água que teimosamente entrava pelas frestas, mais ainda que na viagem de descida devido à  maior pressão nos costados por falta de corrente a nosso favor. Revesávamo-nos no maneio da cabaça e ambos já estávamos completamente enxarcados devido a esta operação, à neblina da noite que caía sobre o rio e à imperfeição das batidas dos remos na água.
As fôrças já estavam  a atingir os limites quando propuz ao Carlos que encostásse-mos a embarcação e procurásse-mos regressar a pé à vila. Lembrei-lhe das aflições das nossas famílias sem saber onde nos encontráva-mos e pelo ritmo que a nossa navegação estava a ter não me parecia que pudésse-mos chegar tão depressa.
O Carlos não aceitou a minha ideia e penso que esteve bem. Argumentou que as margens do Incomáti, naquela zona, eram muito alagadas, com vários braços do rio onde prevalecem os mangais de difícil ou mesmo impossível penetração. Por outro lado, caminhar durante a noite numa área de hipopótamos e crocodilos era um risco que não deveríamos correr.
E não corremos!
Continuámos a nossa saga e sempre conversando à volta das dificuldades que se apresentavam. Concluímos que não havia que esmorecer e assim ganhámos mais ânimo.
Aos poucos fomos sentindo alguns progressos e quando vencemos a primeira curva que dista  cerca de um quilómetro do ponto de partida da Macaneta, divisámos aquilo que nos pareceu um enorme tronco à tona da água e muito envolvido de vegetação aquática. Quando nos aproximámos fomos surpreendidos com a brusca elevação de um hipopótamo, que, assustado com a nossa aproximação, resolveu emitir aquele ronco característico submergindo acto contínuo e com violência na água ! Ficámos estupefactos a boiar sobre as ondas por ele provocadas e com certa dificuldade lá conseguimos equilibrar o velho tronco cavado enviusando-o na direcção que nos pareceu mais conveniente para evitar o abalroamento.

O primeiro comentário que fizemos foi para elogiar a nossa embarcação, que afinal nem era assim tão má, já que se aguentara muito bem naquela confusão das águas em reboliço !
Lá continuámos, agora mais atentos aos vultos sobre a água, sempre difíceis  de descortinar por falta de visibilidade e ainda pela vegetação flutuante agora mais concentrada junto às margens e em tufos contínuos que por vezes até conseguia-mos acompanhar.
Não muito longe do encontro com o hipopótamo, deparámos de novo com outros mais, igualmente perto da margem direita que era a nossa preferida para navegar já que, em caso de naufrágio, teríamos melhores hipóteses de salvamento. O estardalhaço desta vez foi muito maior e pelos roncos e agitação na água concluímos terem sido pelo menos três animais.

Voltámos a ter algumas dificuldades em controlar a velha almadia que desta vez meteu uma boa quantidade de água. E tal como no anterior encontro, também neste não perdemos a calma e limitámo-nos a fazer o desvio possível da zona.
A noite já ía adiantada e os progressos de navegação só agora começavam a ser evidentes. A corrente já nos permitia menor esforço no maneio dos remos e depois do segundo encontro com os hipopótamos surgiu uma nova alma para reforçar as forças: divisámos as luzes da vila ! Trémolas e mortiças e mesmo ainda distantes, elas deram-nos novo alento e se nas horas que já haviam passado desde a partida da Macaneta até aqui alguma vez caímos em desânimo, a partir daqui tudo foi diferente. A vila estava à vista e pelos cálculos não estaria a mais de três quilómetros !
Não havia ainda motivos para festejar, mas insuflados de novas forças continuámos a avançar sempre perto da margem nossa preferida. Discutimos como fazer a aproximação cuidadosa da ilha dos hipopótamos, tendo em atenção que os animais àquela hora ou estariam nas margens do rio, a pastar,  ou a caminho delas e seria muito provável um novo encontro.
Não nos enganámos ! Muito antes da zona da ilha apareceram hipopótamos isolados por todo o lado, mais parecendo que estavam a fazer-nos uma barragem ao caminho !
Uns levantavam-se muito perto de nós, outros mais adiante e até já os tínhamos na rectaguarda agitando as águas e roncando fortemente.
No meio deste labirinto, que à vista era difícil avaliar porque a escuridão não dava para enxergar mais que uns parcos metros em redor da almadia, limitámo-nos a fazer zigue-zagues procurando sempre as zonas do rio mais calmas. Numa das situações mais complicadas tivemos a sensação que fomos levantados da água uns bons trinta centímetros pelo dorso de um hipopótamo. Mais tarde admitimos ter sido um crocodilo.

Acalmados e já sem movimentos de animais por perto, retomámos a rota e quando nos faltava vencer o último quilómetro, já com as luzes da vila bem visíveis, notámos grande azáfama junto ao cais de portagem dos ferry-botes dos Caminhos de Ferro e vários focos de luz pela encosta e na rua marginal.
A população em pêso estava num verdadeiro alvoroço devido ao nosso desaparecimento!
O ferry-bote, bem iluminado, arrancou rio abaixo e rápidamente nos encontrou e recolheu. Passava já da meia noite !
Ouvimos das boas, sobretudo do velho marinheiro da embarcação dos Caminhos de Ferro, que nem acreditava como nos safámos daquela aventura, referindo alguns casos fatais com pescadores que foram trucidados pelos hipopótamos em circunstâncias menos atrevidas. Repetiu várias vezes que navegar durante a noite num barquito daqueles, num rio pejado de hipopótamos e, sobretudo, por causa das fêmeas acompanhadas de crias, era um autêntico suicídio !
Só então, perante estas bem aplicadas descomposturas, compreendi que a ignorância de ambos poderia ter causado um grande desgosto aos nossos familiares !
Só então senti arrepios de mêdo !
No fundo, o que mais terá contribuído para termos saído ilesos daquela aventura idiota, foi precisamente o facto de não termos sentido mêdo – fruto da ignorância de ambos - nos momentos em que estivemos envolvidos com os hipopótamos no rio. Teria sido fatal se o pânico se apoderasse de nós naqueles momentos em que a almadia rodopiava sobre as águas revoltas pelos paquidermes
Uma grande lição que muito bem soube aproveitar ao longo da minha carreira em Moçambique !

É dos livros e ao longo da minha carreira pude constatar isso,  que os hipopótamos são os animais bravios africanos que mais mortes provocam nos humanos. Tal como os elefantes em terra, eles são os reis absolutos no seu ambiente aquático. Perturbá-los nesse meio é muito arriscado, sobretudo quando existem crias. As fêmeas progenitoras defendem-nas implacávelmente e por vezes atacam as embarcações que se aproximam, abocanhando-as e trucidando os seus ocupantes, só os abandonando quando mortos.
Os casos sucedem-se por todo o lado e as príncipais vítimas são os pescadores tradicionais que na sua faina em lagoas ou rios se atrevem a chegar mais perto destes animais, normalmente utilizando pequenas e por isso muito frágeis embarcações.
Registei muitas dezenas destes casos no decorrer da minha actividade profissional, alguns deles implicaram a minha própria intervenção ou das brigadas a meu cargo para eliminar os animais, por vezes reincidentes e que já eram considerados muito perigosos. A própria lei previa estas situações e determinava as formas de actuação no âmbito da defesa humana (6).

Por ironia do destino, pude testemunhar também as consequências de um desses casos, em que foi protagonista o velho e experimentado marinheiro do ferry-boat dos Caminhos de Ferro, precisamente aquele que na noite da aventura no rio Incomáti nos foi procurar e nos deu a repreensão que acima reproduzi!!!
Foi nos finais do ano de 1956 e na altura trabalhava de novo na Administração de Marracuene, já depois de colocações em Inhambane, Pafúri e Lourenço Marques.
A notícia chegou à Secretaria da Administração através do delegado local dos Caminhos de Ferro. Ía comunicar um acidente acabado de acontecer no rio: um hipopótamos atacara o ferry-boat cheio de turistas!!!
Fui com outros elementos da Administração ao cais de atracagem onde ainda havia alguma confusão. Os turistas estavam a ser transferidos para uma viatura para regressarem a Lourenço Marques, alguns deles visívelmente assustados e uns quantos com escoriações ligeiras.  O ferry-boat com cerca de 12 a 15 metros de comprimento e todo em ferro, já atracado, apresentava o costado de bombordo (esquerdo) e do lado da popa, com rasgões e amolgadelas até muito perto da linha de água !!!
Fora uma fêmea que investira no momento em que o ferry-boat se aproximou demasiado de um grupo onde havia crias !
Explicou o velho marinheiro que tudo fora tão rápido que ele próprio não tivera tempo de desviar a embarcação. E acrescentou que jámaias vira uma cena daquelas em que o animal atacou com uma tão grande fúria que chegou a recear que afundasse o barco. Ele e os seus ajudantes, assim como o delegado e os turistas que ocupavam cerca de metade da lotação, viveram momentos aflitivos quando viram o enorme animal emergir da água, levantar-se quási a pique e abocanhar o parapeito e a própria amurada, sacudindo a embarcação e rasgando ao mesmo tempo o ferro como se fosse cartão ! Cena esta que o animal repetiu diversas vezes, no que parecia disposto a afundar o barco !
Felizmente que não houve mortes e os pequenos ferimentos em alguns turistas resultaram das quedas e confusão no interior da embarcação nos momentos em que se deu o ataque do hipopótamo.
Era até ali o acidente mais grave com os barcos de turismo no Incomáti. Os muitos casos anteriores nunca passaram de pequenos encostos e ameaças dos paquidermes, sempre sanados com a perícia dos respectivos marinheiros e príncipalmente pela consistência e envergadura das embarcações.


Este tipo de ferry-boat é muito utilizado nos rios e lagos africanos para
observação da fauna aquática

        *              *               *
 

Durante a recente estadia em Moçambique (Outubro de 99 a Janeiro de 2000) e como sempre fizemos em viagens anteriores, fomos a Marracuene para visitar e tratar as campas dos familiares ali sepultados. Ali encontramos sempre velhos amigos, naturais da terra, que recordam a família Figueiredo (pais de minha mulher) com a simpatia e respeito que ela sempre mereceu da população e das autoridades. Recordam alguns que foi o velho Figueiredo o português escolhido para receber a bandeira portuguesa das autoridades moçambicanas, na cerimónia que assinalou a independência de Moçambique em 25 de Junho de 1975.
Esta família, com raizes comerciais antigas e sólidas, tinha um profundo amor a Vila Luisa. Nunca aceitaram regressar a Portugal nem nunca para cá transferiram quaisquer valores. Diziam ser aquela a sua verdadeira terra !
Faleceram em 1977 (a mulher) e em 1983 (o homem).

 


 

NOTA FINAL

Dedico esta primeira crónica das minhas memórias às minhas três netas – Maura, Dania e Viviana –, as primeiras naturais e residentes em Maputo-Moçambique e a última natural e residente em Lisboa.


Com as netas, no quintal da nossa residência em Amor - Portugal, no Verão de 1998

Elas, que ainda são novinhas, poderão mais tarde encontrar aqui algumas explicações sobre as suas origens e até achar piada de como este seu ascendente iniciou a sua vida e formou a família de que elas descendem.
Por outro lado, tratando-se do primeiro episódio de uns quantos da minha carreira, que pretendo deixar  para a posteridade para ajudar a conhecer a história da fauna e da caça em Moçambique na segunda metade do século vinte, naturalmente que elas serão as primeiras a querer saber das razões que levaram o avô a seguir a sua carreira neste sector e o que é que fez  durante os trinta e oito anos em que trabalhou neste país.
Melhor conhecendo os seus ascendentes, melhor se conhecerão a si próprias !

Tenho a certeza que este episódio tocará muito particularmente à Maura, que é a mais velhinha e já nos acompanhou algumas vezes a Marracuene quando ali fomos tratar das campas dos seus antepassados – o trisavô e bisavós maternos ! Também ela já se declarou admiradora daquela bonita vila e o facto de estarem lá sepultados aqueles seus familiares certamente a terá influenciado neste sentimento.
Uma garantia lhe podemos dar (e agora falo também pela avó): iremos sempre a Marracuene, tratar das campas e sentar um pouco no miradouro para olhar o rio, a planície, as dunas da Macaneta que escondem a praia e o mar e, sobretudo, para meditar !…
Levá-la-emos sempre conosco !

Notas explicativas:

(1)- Na nova toponímia de Moçambique, esta, como outras vilas e cidades do país que  usavam nomes atribuídos pela administração portuguesa, passaram a usar os nomes tradicionais que já tinham no passado. Assim, Vila Luisa (nome atribuído  em homenagem ao antigo Governador da Colónia, António Enes, na pessoa de sua filha Luisa) voltou a chamar-se Marracuene.
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(2)- Gungunhana foi, no final do século dezanove, um dos chefes tribais que mais  combateu a ocupação colonial portuguesa. Ele chefiou um exército de  combatentes contra as tropas portuguesas comandadas por Mouzinho de  Albuquerque e Marracuene foi palco de uma violenta batalha.  Acabaria  por ser feito prisioneiro, mais tarde e depois de novos combates em Chaimite, Magul  e Colela. Foi deportado para Portugal e desterrado nos Açores, onde veio a morrer.  Depois da independência de Moçambique, Portugal entregou os seus restos mortais, que se encontram depositados na cripta do monumento aos herois moçambicanos, em Maputo, ao lado dos de Eduardo Mondlane, Samora Machel
      e outros heróis deste país.
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(3)  Algumas espécies de cicadaceas abundavam na região de Marracuene,  endémicas da parte sul de Moçambique e rezam os livros da matéria que se trata de fósseis vivos dos mais antigos da flora deste país.


   Encephalartos Umbeluziensis, uma das belas cicadaceas  do sul de Moçambique
      São plantas muito procuradas, sobretudo por sul-africanos que não as dispensam dos seus jardins e mesmo dos parques públicos, dada a sua rara beleza e  resistência. No período antes da independência houve uma razia nestas plantas através da acção de negociantes que as carregavam em grandes quantidades para negócio na África do Sul.   Embora protegidas por lei, crê-se que estão práticamente extintas
na maioria do   território onde abundavam!
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(4)-Ver Mapa 4 – Regimes de Vigilância Especial de Moçambique (RVE´s).
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(5)- Paul Dutton, conhecido ecologista sul africano que desde 1973 tem desempenhado em Moçambique tarefas muito valiosas no âmbito da conservação dos recursos naturais em geral e da fauna bravia em particular,  tirou esta foto na lagoa  Mareza, Parque Nacional da Gorongosa, em 1980, altura em que os efectivos desta espécie, neste Parque, rondavam os 3000 animais. Neste momento apenas 4 ou  5 dezenas se encontram ali! Esta foto, pela sua originalidade, mereceu a escolha de muitas revistas que a tornaram conhecida mundialmente. Apareceu ainda em cartazes e posteres de organizações de protecção à fauna.
Paul Dutton foi recentemente galardoado, em Johannesburg, com o prémio "Audi-Terra Nova",   importante distinção a nível mundial atribuída anualmente a indivíduos  que   se destacam na protecção do meio ambiente e da fauna bravia !
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(6)-Lei sobre a Defesa Humana – Diplomas 1982, de 1960 e 2630 de 1965.
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Marrabenta, Março de 2000
Celestino Gonçalves

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Celestino Gonçalves

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