Caçada às oletúrias
 
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UMA CAÇADA ÁS OLETÚRIAS

Uma das terras de Moçambique onde encontrei mais adeptos e praticantes das praxes de pregar partidas foi Porto Amélia (actual Pemba), uma cidade do litoral norte, capital da província de Cabo Delgado.

Implantada à beira de uma das maiores e mais belas baías do mundo, servida por navios costeiros e de longo curso e também de carreiras aéreas regulares, a cidade tinha já, na década de 50, uma considerável população branca, vocacionada para as mais diversas actividades que na época caracterizavam as localidades do litoral que serviam uma vasta região do interior, dali partindo ou chegando tudo quanto se exportava ou importava.

O comércio, pensões, bares, escritórios, farmácia, mercado municipal, banco, correios e outros serviços, estavam concentrados praticamente na única rua da baixa da cidade, a pouco mais de uma centena de metros da ponte-cais.  As pessoas viam-se e reviam-se no dia a dia de trabalho e nas horas de lazer, que invariavelmente eram passadas no cinema, no futebol, nas associações desportivas, na praia e nos bares. No fundo todos se conheciam e muitos faziam parte de tertúlias que proliferavam tanto nos lugares públicos como nas próprias residências.

A chegada dos navios e dos aviões tinha sempre a presença de mirones cuja ocupação profissional não era muito exigente nos horários, daí que toda a cidade sabia rapidamente quem chegava.  Mais ainda: o que vinham fazer, se ficavam ali ou se estavam em trânsito para qualquer das vilas do interior.

Os próprios  militares,  cujo quartel se encontrava na entrada da cidade, tinham um relacionamento muito próximo com a população civil, o que era natural dada a despreocupada situação de paz que se vivia na altura.

De uma forma geral as pessoas tinham um excelente relacionamento entre si e as mais divertidas tinham até o hábito de pregar partidas aos mais chegados. Coisas  de menor importância que não ultrapassavam as momentâneas gargalhadas que o assunto despertava e eram sempre pretexto para os atingidos retribuírem com novas e  mais hábeis petas.

Mas cultivava-se ali, também, outro tipo de malandrices, que iam mais longe e que, sendo embora uma prática seguida em todo o território, ali tinham requintes muito especiais e uma boa quantidade de executantes, autênticos algozes em “devorar” qualquer incauto acabado de chegar da metrópole.

Rapaz novo que desembarcasse com aquela cara de “japonês” de quem chega pela primeira vez a uma terra desconhecida, não se livrava  desse grupo e ao fim de uns dias, após o assédio permanente, amistoso e bem ensaiado dos comparsas, com as mais cativantes promessas,  um ou outro acabaria por ceder.

Ou eram caçadas aos “gambosinos”, aos leões e às “oletúrias”, com desfechos por vezes dolorosos para os incautos, ou encontros amorosos combinados com  moças receptivas do Paquitequete, que acabavam com  humilhantes cenas, etc, etc,.

Durante a minha estadia em Cabo Delgado, de 1957 a 1962, passei muitos períodos de tempo em Porto Amélia, quer em trabalhos de fiscalização na região periférica, quer em funções administrativas na Repartição Distrital de Veterinária. Integrei-me assim, de certa forma, no ambiente citadino e naturalmente que criei ali muitas amizades, no número das quais se contava o saudoso e carismático enfermeiro Melro, uma figura popular e muito estimada pela população. Ele era um dos mais fanáticos adeptos das partidas  aos “japoneses”, estando sempre pronto, com o seu grupo, para sacrificar qualquer  destes novatos que apareciam.

Aconteceram durante esses períodos muitas peripécias do género que tiveram a participação directa do Melro, todas muito badaladas porque eram gáudio para muita gente da cidade. Uma delas,  que envolveu mais meia dúzia de comparsas igualmente devotos destas praxes, teve como vítima um jovem “japonês” recém chegado à cidade.

Levaram o moço a uma das tais hipotéticas caçadas, durante a noite, com a promessa de apanharem umas quantas “oletúrias”, que lhe descreveram como sendo um animal meio ave meio mamífero, muito saboroso e que dormia nas árvores. Quando assustado caía a pique, por não ter visão à noite, como as galinhas,  por isso se apanhava com facilidade.

A cena decorreu alguns quilómetros depois do aeroporto, num desvio para o mato, tendo sido previamente preparada com a montagem dos apetrechos num dos muitos cajueiros ali existentes e que correspondiam à descrição do local onde as “oletúrias” se encontrariam.

Sempre em surdina e sem qualquer foco de luz, para não espantarem os animalejos, indicaram-lhe a sua árvore e posicionaram-no junto do tronco, segurando um saco que deveria manter sempre bem aberto. As ordens eram para ficar quieto  e de olhos bem fixos no alto, para que as “oletúrias” ao caírem,  assustadas com o bater de latas, pudessem enfiar-se no saco.

Cada um dos comparsas, uns com sacos e outros com  latas,  tomou também  posição junto das árvores vizinhas,  e após alguns minutos de silêncio absoluto, o momento crucial da “caçada” aconteceu, precedido do barulho das latas. Só que, em vez de caírem  “oletúrias” no saco do desgraçado, este foi atingido na cabeça por uma descarga de líquido azul (água com permaganato), proveniente de um chuveiro de campanha accionado por uma corda que o próprio Melro puxou lá do seu posto.

As lanternas foram então ligadas e os focos de luz convergiram na direcção do bobo, agora a contas com a inesperada molhadela. Sem esperarem a sua reacção, os outros acercaram-se e disseram-lhe que a caçada fracassara devido a descoordenação na ordem de bater as latas. O enfermeiro Melro mostrou-se alarmado com o líquido azul que ainda escorria pela cara do desgraçado e disse-lhe que se tratava de urina das “oletúrias”, muito perigosa sobretudo para os olhos pois provocava “gaifanas”, uma doença que podia causar a cegueira. Era preciso irem depressa para o hospital.

Prolongadas lavagens aos olhos, aplicação de gotas e vaselina para embaciar a vista e colocação  de pensos, foram os tratamentos que o próprio Melro lhe fez no hospital e a cena completou-se com a ingestão de um comprimido à base de permaganato, cuja cor ele não viu  porque já tinha os olhos vendados. Levaram a seguir  o homem  a casa, com a recomendação de que poderia tirar os pensos uma hora depois e que  o único cuidado a ter era vigiar a sua urina. Caso não fosse normal deveria voltar no dia seguinte ao hospital para novos tratamentos.

Decorrida pouco mais de uma hora, o infeliz bateu à porta do enfermeiro, aflito porque urinara da mesma cor da urina das “oletúrias” !

O pobre do  pacóvio foi internado e só na manhã seguinte lhe deram conta da cilada em que caíra!

 Marrabenta, Fevereiro de 2004

Celestino Gonçalves

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