Coisa Julgada Incostitucional

Cynthia Guimarães Tostes Malta

Sumário

Introdução

1.  O Código de Processo Civil

2.  O que dizem os doutos

3.  Jurisprudência   

4.  Hipóteses de coisa julgada inconstitucional

5.  Instrumentos processuais para a desconstituição da coisa julgada inconstitucional

Conclusão

Bibliografia

Introdução

            A Medida Provisória no 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, trouxe para o direito processual civil uma grande novidade, acrescentando o parágrafo único ao artigo 741 do Código de Processo Civil.  Sua redação, está abalando a imutabilidade e a certeza jurídica oriunda da coisa julgada e gerando discussão e preocupação entre doutos juristas de nosso país:

“Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”.

            O presente trabalho pretende discutir as conseqüências de tal dispositivo em nosso ordenamento jurídico, assim como apresentar a opinião dos mais renomados especialistas do direito, que muito têm se debruçado sobre o tema, a jurisprudência e saber se tal norma veio realmente revolucionar ou solucionar o problema da coisa julgada inconstitucional.

1.   O Código de Processo Civil

Art. 467 - Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Art. 741 - Na execução fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre:

I - falta ou nulidade de citação no processo de conhecimento, se a ação lhe correu à revelia;

II - inexigibilidade do título;

III - ilegitimidade das partes;

IV - cumulação indevida de execuções;

V - excesso da execução, ou nulidade desta até a penhora;

Vl - qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação com execução aparelhada, transação ou prescrição, desde que supervenientes à sentença;

Vll - incompetência do juízo da execução, bem como suspeição ou impedimento do juiz.

Parágrafo único.  Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.

2.   O que dizem os doutos

2.1.            José Maria Tesheiner[1], comentando trabalho de Araken de Assis[2], afirma que:

“A coisa julgada, em qualquer processo, adquiriu a incomum e a insólita característica de surgir e subsistir sub  conditione. A qualquer momento, pronunciada a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em que se baseou o pronunciamento judicial, desaparecerá a eficácia do art. 467. E isto se verificará ainda que a Corte Constitucional se manifeste após o prazo de dois anos da rescisória (art. 495)”.

Para a aplicação do dispositivo, exige decisão definitiva (não apenas uma liminar), em ação direta: “Quanto ao controle incidental, ainda que resulte de reiteradas manifestações uniformes e convergentes do STF, somente a partir da resolução do Senado Federal, na forma do art. 52, X, da CF/88, suspendendo a lei ou o ato normativo, enseja-se a incidência do art. 741, parágrafo único, do CPC”.

Assevera, outrossim, que “para não ofender ao art. 5º, XXXXVI, da CF/88, o art. 741, parágrafo único, somente se aplicará aos provimentos transitados em julgado após a vigência do art. 3º da MP 1.997-37, de 11.04.00”.

            Em outra publicação[3], o mesmo autor critica a conferência de Humberto Theodoro Júnior, realizada em Porto Alegre, durante a Jornada Nacional Processual Civil Prof. Galeno Lacerda, nos dias 4 a 6 de maio de 2001, intitulada "A coisa julgada inconstitucional":

“O Professor Humberto Theodoro Júnior proferiu conferência intitulada "A coisa julgada inconstitucional". Podemos sintetizá-la: tão grave quanto a lei inconstitucional é a sentença inconstitucional. A Constituição, pilar de nosso sistema jurídico, assim como não tolera a inconstitucionalidade de lei, não pode tolerar a inconstitucionalidade de sentença, ainda que transitada em julgado, pois tal importaria em atribuir-se ao Juiz poder igual ou superior ao da própria Constituição. A sentença inconstitucional é inexistente ou nula, o que pode ser declarado a qualquer tempo, independentemente de ação rescisória e, sobretudo, sem subordinação ao exíguo prazo de 2 anos para ela previsto. Não se pode objetar, dizendo-se que a coisa julgada é protegida pela própria Constituição, porque não há definição constitucional de coisa julgada. Trata-se de instituto inteiramente regulado pela legislação infraconstitucional. Além disso, a própria Constituição admite ação rescisória, mostrando assim a relatividade da coisa julgada.

A tese é errada, quanto ao direito posto e inconveniente de jure condendo. Não se trata de julgar seu Autor, jurista nacionalmente consagrado, mas de refutar objetivamente sua proposição.

Não é por ser nova, que se há de rejeitar a tese. Mas tampouco por ser nova se há de aceitá-la. (Não nos esqueçamos de que o direito fundado na vontade suprema de Hitler foi entusiasticamente recebido na Alemanha como "renovação do direito").

A sentença inconstitucional não é inexistente, tampouco nula. Se admitirmos que é inexistente, estaremos a admitir que, a pretexto de inconstitucionalidade, qualquer pessoa do povo se recuse a respeitá-la. Não é verdade que as nulidades ipso jure resistam ao trânsito em julgado da sentença e ao decurso do prazo para a ação rescisória. Isso ocorre num único caso, que é o da sentença proferida à revelia, em processo de conhecimento em que o réu não foi validamente citado (CPC, art. 741, I). Se admitirmos que é nula, estaremos a admitir que, a pretexto de inconstitucionalidade, qualquer juiz ignore a coisa julgada, ainda que decorrente de decisão proferida por tribunal superior. É certo que a Constituição não define a coisa julgada, mas isso não significa que se trate de expressão vazia, que se possa encher com qualquer conteúdo. Ainda que se discuta se a coisa julgada é qualidade ou efeito da sentença, se são imutáveis seus efeitos ou apenas seu elemento declaratório, quais seus limites objetivos e subjetivos, coisa julgada tem, na Constituição, um conteúdo mínimo, decorrente de mais de 2.000 anos de História do Direito. Sobretudo não é verdade que coisa julgada, na Constituição, signifique apenas irrecorribilidade da sentença, a chamada coisa julgada formal, que, aliás, não é por ela assegurada. É certo que a Constituição prevê a ação rescisória, mas isso não autoriza o intérprete a criar outras limitações à coisa julgada e, muito menos, a dispensar a ação rescisória prevista na Constituição.

Theodoro Júnior parte de um pressuposto não declarado, que é falso, qual seja o de que a inconstitucionalidade exista objetivamente, como um vício da sentença. Na verdade, a inconstitucionalidade, assim da sentença como da lei, só existe objetivamente depois de declarada. Antes, o que existe é a alegação de inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade não é algo evidente, que qualquer um possa ver. Ela é construída pelo intérprete e se vincula à sua visão do mundo do Direito. É por isso que não se declara a inconstitucionalidade de uma lei sem votos vencidos, às vezes numerosos.

O problema da sentença inconstitucional não é substancialmente diverso do problema da sentença ilegal. Aliás, o vício da ilegalidade é também um vício de inconstitucionalidade, dada a consagração constitucional do princípio da legalidade.

Imaginemos vitoriosa a tese de Theodoro Júnior. Depois de todos os recursos ordinários e extraordinários, que já não são poucos, depois das ações autônomas de impugnação de sentenças, previstas na lei ou consagradas pela doutrina, teríamos ainda uma ação de desconstituição de sentença por inconstitucionalidade, perpétua, porque sem prazo. A parte vencida sempre veria uma inconstitucionalidade na sentença que lhe foi desfavorável e não faltariam juizes que, a pretexto de inconstitucionalidade, desprezariam sentenças proferidas por seus colegas ou mesmo pelos tribunais superiores.

Por fim, se o temor é o de que a inviolabilidade da coisa julgada situe o juiz acima da Constituição, será inadequado o remédio proposto, porque será outro juiz que fará a Constituição dizer o que ele quer. Começará dizendo que a Constituição não tutela a coisa julgada...

Meu caro Humberto! A Constituição é fundamento da ordem jurídica. Não é instrumento para a destruição dessa mesma ordem jurídica.”

2.2.            Francisco Barros Dias[4] enfatiza a necessidade de as sentenças judiciais obedecerem às normas constitucionais:

“a Constituição, como fonte primeira do ordenamento jurídico, é a vertente de todas as normas emanadas do Estado, devendo estas, necessariamente, se sujeitar a esse princípio hierárquico, inclusive as decisões judiciais, sob pena de desfigurar todo o edifício construído para emprestar "validade e eficácia" a cada uma dessas normas”.

“se o Judiciário é uma das conquistas da democracia, suas decisões, com certeza, deverão satisfazer, em média, a vontade do povo. A sentença é uma garantia de Justiça e deve corresponder aos anseios da coletividade. Ao contrário, está sendo aviltado o princípio e conseqüentemente restará defeituoso o estado democrático de direito”.

            Comentando José Afonso da Silva, conclui:

“As decisões judiciais, por conseguinte, deverão se sujeitar, primeiro, aos ditames da Constituição, segundo aos ditames legais, quando estes estiverem conforme o texto Magno. Afora essas circunstâncias é querer o impossível e o imaginário, dentro de uma ordem jurídica que não autoriza outra alternativa.”

            E mais adiante:

“as decisões judiciais deverão estar em consonância, em primeiro plano, com a Constituição que, por sua vez, foi emanada do Poder Constituinte originário ou derivado, em obediência ao princípio da separação dos Poderes”.

            Sobre a intangibilidade da coisa julgada:

“Vale salientar que, a coisa julgada está calcada na segurança, estabilidade e certeza jurídicas, quando há apenas violação de norma infra-constitucional, o que não se pode dizer, igualmente, com relação a uma norma constitucional violada. Aí, esses princípios que fundamentam a coisa julgada não são suficientes para mantê-la de forma definitiva, porque a lei maior é que restou violada, comprometendo assim o berço de todo o sistema.”

            Afirma, ainda que sentença que viola a Constituição é inexistente:

“A sentença que agride qualquer um dos princípios maiores, como o da legalidade, isonomia, democracia, hierarquia das normas e respeito à divisão dos poderes, todos insculpidos na Constituição, é sentença injusta e, conseqüentemente, ilegítima. Portanto, deve-se ter como inexistente no mundo jurídico”.

 

2.3.            Humberto Theodoro Júnior[5] questiona veementemente a intangibilidade da coisa julgada, atentando para o fato de que as decisões judiciais, quando inconstitucionais, não devem perseverar; que os juízes não são infalíveis que nem sempre julgam em conformidade com o direito positivo:

“institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões judiciais, isto é, de sua imunidade a ataques, ainda que agasalhassem inconstitucionalidade, especialmente após operada a coisa julgada e ultrapassado, nos variados ordenamentos, o prazo para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal do Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter absoluto”.

“Contudo, não se pode olvidar que, segundo bem lembra PAULO OTERO, ‘como sucede com os outros órgãos do poder público, também os tribunais podem desenvolver uma actividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição’”.

“O problema para cuja reflexão se deseja fazer um convite é o de já não mais ser a decisão judicial inconstitucional passível de impugnação recursal. Nesta hipótese, existiria um mecanismo de controle de constitucionalidade da coisa julgada ou esta é isenta de fiscalização? Ou reformulando o questionamento: verificando-se que uma decisão judicial sob o manto da res iudicata avilta a Constituição, seja porque dirimiu o litígio aplicando lei posteriormente declarada inconstitucional, seja porque deixou de aplicar determinada norma constitucional por entendê-la inconstitucional ou, ainda, porque deliberou contrariamente a regra ou princípio diretamente contemplado na Carta Magna, poderá ser ela objeto de controle? Cuida-se, na lição de PAULO OTERO, ‘de um problema central do actual momento do Estado de Direito’".

“os estudiosos do direito vêm se preocupando com a questão da constitucionalidade das decisões judiciais e dos efeitos da inconstitucionalidade sobre a res iudicata, buscando resposta para o problema de se saber se as decisões judiciais são ainda um feudo não sujeito a qualquer juízo ou espécie de controle de sua conformidade com a Constituição”.

“Depara-se, aí, mais uma vez, com o eterno conflito, mais aparente que real na espécie, do Direito quanto a sua preocupação com a segurança e certeza, ao mesmo tempo que persegue a justiça. Até bem pouco tempo sempre se buscou valorizar a segurança, pelo que a intangibilidade da coisa julgada vinha merecendo posição de destaque sendo poucos os que se aventuravam a questionar ou levantar o problema da inconstitucionalidade da coisa julgada, advogando a impossibilidade de sua subsistência. Admitir-se a impugnação da coisa julgada sob o fundamento autônomo de que contrária à Lei Fundamental do Estado era algo que não se coadunava com o ideal de certeza e segurança.”

“Paralelamente à visão da Constituição como Lei Fundamental e da qual todos os atos extraem o fundamento de sua validade, surge outra idéia: a de que a Constituição deve ser juridicamente garantida. Assim, é hoje pacífico o entendimento segundo o qual ‘não basta que a Constituição outorgue garantias; tem, por seu turno, de ser garantida’[6]”.

            Citando Canotilho, Theodoro Júnior comenta:

“há um princípio geral que não pode ser ignorado de que todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição[7].”

            Continua, defendendo a supremacia da Constituição sobre a coisa julgada:

“sempre que se fala em decisão judicial, à mingua de literatura a respeito, tem-se a falsa impressão de que o seu controle de constitucionalidade, no direito brasileiro, é possível apenas enquanto não operada a coisa julgada, através do último recurso cabível que é o extraordinário previsto no art. 102, III, da CF. Após verificada esta última, a imutabilidade que lhe é característica impediria o seu ataque ao fundamento autônomo de sua inconstitucionalidade. Corresponde aludida idéia ao modelo de Supremacia da Constituição buscado no moderno Estado de Direito?

Pensamos que não. A coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?”

            A respeito da coisa julgada, comenta:

“para realizar, a contento, a pacificação dos litígios entendeu-se necessário dar ao provimento jurisdicional uma condição de estabilidade, de definitividade. Do contrário, mal encerrado o processo, as partes restabeleceriam as divergências e, indefinidamente, a jurisdição voltaria sucessivas vezes a se ocupar da mesma divergência entre os mesmos litigantes. Em síntese, o litígio nunca seria realmente composto.

Para que tal não ocorresse, o sistema processual, desde épocas imemoriais, concebeu o instituto da coisa julgada, pelo qual, uma vez esgotada a possibilidade de impugnação dentro da relação processual, a sentença assume uma força, ou autoridade, especial: torna-se imutável e indiscutível, tanto para as partes como para o Estado. Nenhum dos litigantes poderá propor novamente a mesma causa, nem tampouco tribunal algum poderá julgar outra vez a causa encerrada e sob autoridade da res iudicata.

            Entretanto, adverte:

“a idéia de imutabilidade inerente à coisa julgada deve ser compreendida em seus reais contornos. É que a irrevogabilidade presente na noção de coisa julgada apenas significa que a inalterabilidade de seus efeitos tornou-se vedada através da via recursal e não que é impossível por outras vias”.

“a noção de intangibilidade da coisa julgada, no sistema jurídico brasileiro, não tem sede constitucional, mas resulta, antes, de norma contida no Código de Processo Civil (art. 457), pelo que de modo algum pode estar imune ao princípio da constitucionalidade, hierarquicamente superior”.

            Esse mestre enfatiza que os “atos desconformes à Constituição são dotados de um valor negativo derivado de sua inconstitucionalidade: a nulidade”.

“A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional[8], traz como consectário a idéia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional”.

“É princípio geral assente o lembrado por PAULO OTERO de que ‘as normas inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica, podendo a todo o momento ser destruídas judicialmente’. Trata-se de um princípio que decorre do sistema geral de nulidades – vício que contamina os atos inconstitucionais -, não sujeitas à prescrição.”

            Por fim, conclui:

1.    “O vício da inconstitucionalidade gera invalidade do ato público, seja legislativo, executivo ou judiciário;

2.    A coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimento da invalidade da sentença dada em contrariedade à Constituição Federal;

3.    Em se tratando de sentença nula de pleno direito, o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pode se dar a qualquer tempo e em qualquer procedimento, por ser insanável;

4.    Não se há de objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas. Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade.”

 

2.4.            Gilberto Barroso de Carvalho Júnior, em trabalho intitulado “A coisa julgada inconstitucional e o novo parágrafo único do art. 741 do CPC”[9], questiona se a coisa julgada, por ter previsão constitucional, poderá se lhe sobrepujar:

“O nosso ordenamento jurídico, seguindo o sistema piramidal clássico adotado por Kelsen, coloca a Constituição no topo hierárquico das normas jurídicas, de sorte que todas as normas que lhes são inferiores buscam validade no seu texto. Norma jurídica que não se compatibilize com a Lei Fundamental não possuirá validade no ordenamento, respeitados, no entanto, os mecanismos de proteção da supralegalidade que a própria ordem constitucional consagra.

É nesse ambiente que surge uma questão de imensa magnitude: a imutabilidade dos efeitos da coisa julgada material poderá se sobrepor à própria Constituição que assegurou, em seu artigo 5º, XXXIV, que a lei não prejudicará a coisa julgada?”

            Comentando trabalho de Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, enfatiza que:

“o efeito da imutabilidade da coisa julgada foi conferido pelo legislador infraconstitucional, e não pelo legislador constituinte”.

            Concordando, afirma:

“Diante desse raciocínio, nada impediria que o legislador infraconstitucional criasse outro mecanismo de infringência da coisa julgada, uma vez que tal proceder não contraria a ordem constitucional. Isto porque, em última análise, não é a garantia constitucional da coisa julgada que assegura o efeito da imutabilidade”.

            A respeito do novo parágrafo único do artigo 741, do Código de Processo Civil, lembra que o problema da desconstituição da coisa julgada inconstitucional somente ocorria após o período em que era possível impetrar ação rescisória:

“Enquanto a decisão judicial afrontadora da Constituição está sujeita a ser rediscutida no judicium rescisorium, que no Direito Positivo brasileiro ocorre no prazo de 02 (dois) anos, contados do seu trânsito em julgado (art. 495, do CPC), a relativização da coisa julgada não oferece maiores complicações. Veja-se, a propósito, que a ação rescisória que estiver fundada em violação a dispositivo da Constituição foi sensivelmente estimulada, mormente após a mudança de posicionamento das Cortes Superiores no que respeitava ao óbice constante da Súmula n. 347, do STF (5), permitindo-se o ajuizamento da ação rescisória mesmo quando a questão, à época do julgamento, era controvertida na jurisprudência, desde que fundada em matéria constitucional”.

“Sob o ponto de vista processual, contudo, a via da ação autônoma, que era proposta desconsiderando o conteúdo da coisa julgada inconstitucional, não se revelava numa alternativa que atendia perfeitamente aos reclamos dos casos concretos (7), posto que, na maioria dos casos, a coisa julgada inconstitucional havia ensejado a formação de um título judicial cuja execução já havia iniciado, sendo que a paralisação desse processo executivo deveria ser buscada através de antecipação de tutela ou mesmo de ação cautelar, o que, quando vinha a ocorrer (concessão da medida de urgência), era ineficaz, pois o crédito indevido já havia sido pago ao exeqüente, sujeitando o credor à tortuosa via da repetição do indébito, fato que se agravava ainda mais quando esse crédito possuía natureza alimentícia, o que, para muitos, obstava sua devolução (repetição de indébito).”

            Observa que o novo parágrafo único do art. 741 do CPC “permitiu a discussão do vício do título executivo judicial na própria ação de embargos do devedor, ampliando o rol taxativo (numerus clausus) de matérias de defesa nessa ação incidental”.

“o parágrafo único encerra três hipóteses de inexigibilidade do título executivo judicial: a) a existência de julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal que tiver reconhecido a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo sobre o qual o título executivo estiver fundado; b) título executivo judicial que implique aplicação tida por incompatível com a Constituição; e c) título executivo judicial que implique interpretação tida por incompatível com a Constituição”.

            Enfatiza a questão do prazo para a impugnação de sentença eivada com vício de inconstitucionalidade.

“A mens legis do novo parágrafo único do art. 741, do CPC, não se pode olvidar, foi permitir a relativização da coisa julgada nas hipóteses em que o prazo bienal da ação rescisória já havia fruído in albis”.

 

2.5.            Wilson Leite Corrêa, citando Pontes de Miranda, afirma: “’Contra a constituição nada prospera, tudo fenece’, de modo que qualquer ato infraconstitucional que contrarie a Carta Magna deve ser tido como inválido”.

            Mais adiante, enfatiza:

“em caso de ofensa à Carta Magna, o Direito Adquirido. a Coisa Julgada e o ato jurídico perfeito, não chegam sequer a formar-se, uma vez que pressuposto de validade de qualquer ato jurídico é a consonância com a Constituição. O que existe in casu é um suposto direito subjetivo, que do ponto de vista jurídico-constitucional inexiste juridicamente”.

“são unânimes nossos Tribunais no sentido de permitir-se a alegação a qualquer tempo da existência de nulidade absoluta, mesmo após o trânsito em julgado da decisão de mérito”.

“a existência inconstitucionalidade, em qualquer de suas formas, pode ser alegada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição”.

“o reconhecimento de inexistência de Coisa julgada, direito adquirido e ato jurídico perfeito contra a Constituição e, a possibilidade de sua argüição a qualquer tempo, não contribui para instabilidade das relações jurídicas, nem infirma o princípio da segurança jurídica, antes o confirma, assim como a supremacia da Constituição e o direito subjetivo validamente constituído, atuando como fator acertamento dos atos jurídicos ao ápice de todo o ordenamento”.

 

3.   Jurisprudência

3.1.                  A pesquisa de jurisprudência dos tribunais superiores, com o título “coisa julgada inconstitucional” nos traz o seguinte e reiterado resultado:

“O Estado tem interesse em proteger a coisa julgada, em nome da segurança jurídica dos cidadãos, mesmo em prejuízo à busca pela justiça”.

·   AGRAR 2244/SP; AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA
2002/0027203-5.

·   AGRAR 1574 / SC; AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA
2001/0034852-1.

·   AGRAR 1628 / SC; AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA
2001/0053722-2.

·   AR 1531/SC; AÇÃO RESCISÓRIA 2001/0022508-0.

·   AGRAR 2185 / CE ; AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA
2002/0013150-0.

·   AGRAR 2121 / SC ; AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA
2002/0003167-8.

·   AGRAR 1543 / SC ; AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA
2001/0024800-4.

 

3.2.            Entretanto, pesquisando “o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais”, termo utilizado no parágrafo único, do art. 741, do CPC, encontramos os seguintes resultados:

3.2.1.      A Ordem dos Advogados do Brasil questiona a constitucionalidade do próprio parágrafo único do artigo 741 do CPC, que ameaça a imutabilidade e a perenidade da coisa julgada.

   O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra o artigo 4° da Medida Provisória 2.102-27, de 26 de janeiro de 2001, na parte que alterou a redação da Lei federal n 9.494, de 10 de setembro de 1997, nela acrescentando os artigos 1° - B e 1° - C, bem como contra o artigo 10 da mesma Medida Provisória, na parte em que acrescentou parágrafo Único ao artigo 741 da Lei federal n 5.869, de 11 de janeiro de 1973, com a redação dada pela Lei n 8.953, de 13 de dezembro de 1994 (AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (Med. Liminar) 2418 – 3).  Sem decisão até a presente data (17/05/2003).

3.2.2.      Outra ADIN, no mesmo sentido, foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores, mas teve um final inusitado (AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (Med. liminar) 2251 – 2):

o Tribunal , por unanimidade , resolvendo questão de ordem suscitada pelo Senhor Ministro Nelson Jobim, indeferiu requerimento formulado pela União , e deu por prejudicada a ação , pelo que dela não conheceu , por falta de aditamento da inicial, para impugnação das últimas reedições da medida provisória , cassadas as liminares concedidas. Votou o Presidente . - Plenário , 15.03.2001”.

            Esses resultados nos fazem pensar que talvez o próprio dispositivo legal, que permitiria derrubar a coisa julgada inconstitucional, mesmo após decorrido o prazo para a ação rescisória, seja, ele mesmo, inconstitucional.

4.   Hipóteses de coisa julgada inconstitucional

4.1.            Quando a sentença, ao ser publicada, encontra-se  em conformidade com a ordem constitucional vigente e, após, sobrevém uma nova Constituição, incompatível com a decisão proferida.  Haveria que se falar em coisa julgada inconstitucional?

4.2.            Sentença proferida com base em dispositivo legal em vigor que, posteriormente, vem a ser declarado inconstitucional.  Nesse caso, a norma já seria incompatível com a Constituição, apenas ainda não teria sido declarada como tal.  Essa sentença, sem dúvida, é inconstitucional, formando uma coisa julgada inconstitucional, que deve ser desconstituída.

4.3.            Sentença proferida em discordância patente com o ordenamento jurídico constitucional vigente.  É nula.  Não há que se falar em coisa julgada.

 

5.   Instrumentos processuais para a desconstituição da coisa julgada inconstitucional

            Considerando-se que a coisa julgada inconstitucional é nula, pode ser desconstituída de ofício, a qualquer tempo, em ação rescisória, sem prazo prescricional, em ação declaratória de nulidade ou em embargos à execução.  O vício de uma sentença que afronta a Constituição é insanável, impedindo-a de transitar em julgado, tornando-a nula e eternamente incapaz de surtir qualquer efeito.

Conclusão

            Sem dúvida, as decisões judiciais devem obedecer à lei maior.  Por outro lado, a segurança jurídica não pode ser prejudicada pela declaração de inconstitucionalidade, transformando a coisa julgada em letra morta, vã, inócua.  A inexeqüibilidade de uma sentença transitada em julgado pela posterior declaração de inconstitucionalidade do dispositivo que lhe deu causa, retira a autoridade e confiabilidade do poder judiciário, visto que a Constituição assegura que a lei não prejudicará a coisa julgada, tornando-a um título executável.  Caso contrário, para que se recorrer ao judiciário?

            Por outro lado, um dispositivo legal declarado inconstitucional, já o era anteriormente.  Assim, uma sentença baseada em tal norma, é nula, desde sempre, não podendo surtir efeitos, nem mesmo transitar em julgado.  Cumpri-la, alegando-se a supremacia da coisa julgada, seria o mesmo que ignorar a necessidade de respeitar a Constituição acima de tudo. Não se pode falar em segurança e certeza jurídicas se não há garantia de respeito à Lei Fundamental.

            Certamente, com o tempo, hão os jurisconsultos de encontrar solução razoável, que lhes permita cumprir a lei sem esvaziar o Poder Judiciário de suas funções e autoridade, ao mesmo tempo que se faça respeitar a Constituição, o que é absolutamente indispensável para a manutenção de um Estado de Direito. 

 

Bibliografia

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DIAS, Francisco Barros. Breve análise sobre a coisa julgada inconstitucional. http://www.serrano.neves.nom.br/gabinete/constitucional/Coisa_julgada_inconstitucional.htm Acesso em 14/05/03.

JÚNIOR, Humberto Theodoro; FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. Revista Íbero-Americana de Direito Público-Riadp, V.3, Ano 3, 1º Trimestre/2001, p.93

NASCIMENTO, Carlos Valder (coordenador). Coisa Julgada Inconstitucional. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica. 2002.

TESHEINER, José Maria. Coisa julgada inconstitucional. http://www.tex.pro.br/wwwroot/processocivil/coisajulgadainconstitucional.htm Acesso em 14/04/03.

TESHEINER, José Maria. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. http://www.tex.pro.br/wwwroot/04de2003/eficaciadacoisajulgadainconsticional.htm  Acesso em 14/05/03.

Notas

[1]      Eficácia da coisa julgada inconstitucional. http://www.tex.pro.br/wwwroot/04de2003/eficaciadacoisajulgadainconsticional.htm  Acesso em 14/05/03.

[2]      Araken de Assis, Eficácia da coisa julgada inconstitucional. Revista Jurídica, Porto Alegre (301): 7-29, nov/2002.

[4]      Breve análise sobre a coisa julgada inconstitucional. http://www.serrano.neves.nom.br/gabinete/constitucional/Coisa_julgada_inconstitucional.htm Acesso em 14/05/03.

[5]      JÚNIOR, Humberto Theodoro; FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. Revista Íbero-Americana de Direito Público-Riadp, V.3, Ano 3, 1º Trimestre/2001, p.93.

[6]      MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Reimp., Coimbra: Coimbra Ed., 1996, p. 77.

[7]      CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 1993, p. 922.

[8]      A Constituição, como já se demonstrou no item anterior, protegeu a coisa julgada apenas do efeito retroativo da lei nova. Quem a conceituou e quem lhe conferiu, entre nós, a imutabilidade e indiscutibilidade foi a lei ordinária. Nem se argumente com a teoria dos conceitos denotativos e conotativos para dizer que do ato de contemplar a Constituição Federal a figura da coisa julgada estaria nisso implícito o seu caráter natural de imutabilidade. Ora, o argumento prova demais já que se tivesse a Constituição o intuito de agasalhar o princípio da imutabilidade em toda a sua extensão, teria ela mesma que regular as hipóteses excepcionais de rescisão e, aí, o Código de Processo Civil, ao cuidar de eliminar os casos de Ação Rescisória, estaria invadindo a área de competência do legislador constituinte, pois estaria diminuindo, na prática, uma garantia da Lei Maior. No entanto, o que se vê é que a Constituição apenas se refere à competência de Tribunais para processar a rescisória. Assim, o que se pode deduzir é que nem para a Constituição Federal nem para a lei processual comum a imutabilidade da coisa julgada é absoluta. Simples lei infra-constitucional tem, pois, em nosso sistema jurídico o poder de definir quando a coisa julgada é imutável e quando é rescindível (vale dizer, não imutável). Dentro desta visão, o que sobressai é simplesmente a força da res iudicata para impedir que a sentença seja alterada por simples recurso.

[9]      CARVALHO JÚNIOR, Gilberto Barroso de. A coisa julgada inconstitucional e o novo parágrafo único do art. 741 do CPC . Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 61, jan. 2003. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3605 . Acesso em: 14 mai. 2003.

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Última revisão: setembro 28, 2003.