Título: IN GIRUM IMUS NOCTE ET CONSUMINUR IGNI
Autor: Guy Debord
Data: 1978
Descrição:
Tradução para o português do manuscrito e trilha sonora do sexto filme de Guy Debord

IMPORTANTE: Se notar qualquer erro nessa tradução, por favor, não exite em reportar-nos, teremos todo prazer em corrigir!


Palavras-chave: França, Maio de 68, Situationistas
Linguagem: Português
Material Relacionado: Manuscrito do filme traduzido da versão inglesa de Ken Knabb disponível em http://bopsecrets.org

In girum imus nocte
et consumimur igni

(manuscrito do filme)


Não farei nenhuma concessão ao público neste filme. Acredito haver várias boas razões para esta decisão, e vou enumerá-las.
 

Público do cinema contemporâneo, fotografado a partir da tela para onde eles olham fixamente, de forma que os espectadores dão de cara com eles mesmos.


Em primeiro lugar, é bem conhecido que eu nunca fiz qualquer concessão às idéias dominantes ou poderes governantes de minha era.

Além disso, nunca nada de importante foi comunicado suavemente para um público, nem mesmo um público como aquele do tempo de Péricles; e no espelho congelado da tela os espectadores não vêem nada que lembre os respeitaveis cidadãos de uma democracia.

 

Mais importante: este particular público que foi assim privado tão totalmente da liberdade e que tolerou todo tipo de abuso, merece menos que qualquer outro ser tratado gentilmente. Os manipuladores da propaganda, com o descaramento habitual daqueles que sabem que as pessoas tendem a justificar quaisquer afrontas que eles não desforram, calmamente declaram que «as pessoas que amam vida vão ao cinema». Mas esta vida e este cinema são igualmente vis, pois dificilmente questionam a pessoa ser substituída por outra.
 


Um grande conjunto habitacional.

Moderna empregada toma banho com seu pequeno filho. Detalhe de cama no mesmo cômodo.


Os freqüentadores de cinema que nunca foram burgueses de verdade e raramente proletários, são recrutados agora quase que completamente de um único estrato social, que, todavia, tem aumentado consideravelmente — o estrato dos empregados qualificados de baixo nível das várias ocupações no setor de «serviços», tão necessários ao sistema de produção presente: administração, controle, manutenção, pesquisa, ensino, propaganda, entretenimento, e pseudocrítica. Só para dar uma idéia de quem são eles. Este público que ainda vai ao cinema, inclui naturalmente o jovem da mesma classe que ainda está na fase de aprendizado de uma ou outra destas funções.
 
Povo espera pacientemente do lado de fora do cinema.

Panorama das fábricas atuais e seu desperdício.

Loja de roupa com dois jovens clientes.

Do realismo e das realizações deste esplêndido sistema alguém já poderia deduzir as capacidades pessoais dos subalternos produzidos. Enganados sobre tudo, eles podem apenas borbotar absurdos baseados em mentiras — estes pobres assalariados que se vêem como donos de propriedades, estes místicos ignorantes que se julgam educados, estes zumbis com a ilusão de que seus votos significam alguma coisa.
 
Fotografia de anúncio mostra casal moderno de empregados no cômodo principal onde seus dois filhos brincam.

Quão severamente o modo de produção os tem tratado! Com toda sua «mobilidade superior» eles perderam o pouco que tinham e ganharam o que nunca desejaram. Eles compartilham pobrezas e humilhações de todos os sistemas passados de exploração sem compartilhar das revoltas contra esses sistemas. Em muitas formas eles se assemelham a escravos, porque são agrupados em habitações espasmódicas que são escuras, feias e insalubres; doentes nutridos com comida insípida e adulterada; parcamente tratados de suas constantes e recorrentes doenças; debaixo de mesquinha e constante vigilância; e mantidos na ignorância modernizada e nas superstições espetaculares que reforçam o poder dos seus mestres. Para a conveniência da indústria atual eles são transplantados para longe dos próprios bairros ou regiões e concentrados em ambientes novos e hostis. Eles não são nada mais que números em quadros desenhados por idiotas.
 

Eles morrem aos montes nas auto-estradas, em cada epidemia de gripe, em cada onda de calor, em cada erro daqueles que adulteram seu alimento, em cada inovação técnica lucrativa dos numerosos empresários que se servem dos desenvolvimentos ambientais como porcos da guiné. Suas condições neuro-atormentadas de existência produz uma degeneração física, intelectual e psicológica. Eles falam sempre como crianças obedientes — sempre farão o que lhes mandam desde que lhes digam o que «devem» fazer. Mas acima de tudo eles são tratados como crianças retardadas, forçados a aceitar a geringonça delirante de dezenas de especializações paternalísticas recentemente preparadas, que hoje diz uma coisa e que amanhã talvez diga totalmente o oposto.
 
Vista de cima da mobília da mesma habitação, sem seus habitantes.

Nativos taitianos dançam na praia.

Separados uns dos outros pela perda geral de qualquer linguagem capaz de descrever a realidade (uma perda que impede qualquer diálogo real), separados pela sua competição inexorável no consumo conspícuo do nada e portanto pela inveja mais infundada e eternamente frustrada, eles são separados até mesmo de seus próprios filhos, que em épocas passadas eram a única propriedade daqueles que não possuiam nada. O controle destes filhos é tomado deles desde a mais tenra idade — estas crianças já são seus rivais que riem descaradamente do fracasso de seus pais e que já não escutam as opiniões sinceras deles. Compreensivelmente menosprezando sua origem, eles sentem-se mais como frutos do espetáculo reinante do que como escravos particulares do espetáculo que acontece para procriá-los, e pensam de si mesmos apenas como mestiços de tais escravos. Por trás da fachada de êxtase simulada entre estes casais e sua progênie não há outra coisa senão olhares de ódio.
 
Detalhe do mesmo casal

Detalhe de alguns livros na residência.

Uma cama enorme, com quarto suficientemente grande para um homem hospedar duas prostitutas ao mesmo tempo.

Detalhe das duas crianças vistas anteriormente.

Consumidor em supermercado com sua filha, que empurra um carrinho de compra ainda parcialmente vazio.

Casal de empregados em um sofá com telefone ao lado.

Detalhe de uma criança com um cartão de compras.

Detalhe de criança sorrindo para sua mãe.






Mas estes trabalhadores privilegiados de uma sociedade totalmente mercantilizada diferem de escravos por terem que prover sua própria manutenção. Neste aspecto eles são mais que servos, porque se dedicam exclusivamente a alguma companhia particular e dependem do sucesso de seu funcionamento, sem receber retorno algum; e especialmente porque eles são compelidos a circular dentro de um único espaço: o mesmo circuito de unidades (sempre idênticas) de habitação, escritórios, auto-estradas, local de férias, e aeroportos.
 
Casal de empregado dá boas-vindas a outro, seus olhares rancorosos faz com que se afastem.

Empregados em viagem de negócios em trem expresso.


Mas eles também se assemelham a modernos proletários na precariedade de seus meios de sustento que estão em conflito com os gastos ininterruptos para os quais eles foram condicionados; e no fato de terem que se contratar fora em um mercado livre por não possuir seus instrumentos de trabalho. Eles precisam de dinheiro para comprar mercadorias, porque as coisas foram arranjadas de tal forma que eles não tem acesso a nada que não seja mercantilizado.
 
Detalhe da fachada de prédio de um conjunto habitacional e um quiosque escrito «Caixa de Sugestões», projetado para receber elogios.

Detalhe de outra fachada similar com um carro saindo de um estacionamento subterrâneo lotado.

Mas em sua situação econômica eles estão mais para peões, a mercê da manipulação momentânea do dinheiro em torno do qual gira todas suas atividades. Eles têm que gastá-lo imediatamente porque não recebem o suficiente para economizar. Mas mesmo assim, cedo ou tarde eles se vêem obrigados a consumir crédito; e o crédito que lhes é concedido está ancorado em seus pagamentos, forçando-os a trabalhar mais até mesmo para se livrar da dívida. Como a distribuição de bens está totalmente interligada à organização da produção e ao estado, suas rações de comida e de espaço são reduzidas em quantidade e qualidade. Embora nominalmente permaneçam como trabalhadores e consumidores livres, eles são desprezados em todos lugares e não têm nenhuma real possibilidade de alívio.
 
Encontro informal caseiro de alguns modernos empregados, comendo e jogando Monopólio na mesma mesa.

Outro encontro do mesmo tipo com quatro convidados e duas garrafas.

Eu não vou cair no erro simplista de comparar a condição dos escravos assalariados de alta-posição com as formas prévias de opressão socio-econômica. Em primeiro lugar porque, se a pessoa deixar de lado seu excesso de falsa consciência e sua compra dobrada ou triplicada da tranqueira miserável que constitui virtualmente o mercado como um todo, fica claro que eles compartilham a mesma vida triste com todos os outros assalariados de hoje. Na realidade, é com a esperança ingênua de distrair a atenção desta realidade aborrecedora que tantos deles tagarelam tanto sobre quão intranqüilos se sentem vivendo no colo de luxo enquanto pessoas em terras distantes são esmagadas pela despossessão. Outra razão para não confundi-los com os desafortunados do passado é que a posição social deles tem certas manifestas características modernas.
 
Detalhe de fábrica de alimentos decorada com selo de «qualidade».

Empregados assistem televisão, todos com igual interesse.

Muitos empregados servem-se e consomem alimentos em pé.

Pela primeira vez na história estamos vendo profissionais econômicos altamente especializados que, fora do trabalho, tem que fazer de tudo. Eles dirigem seus próprios carros e estão começando a ter que pessoalmente abastecê-los com gasolina; fazem suas compras e cozinham eles mesmos seu alimento; servem-se nos supermercados e nas entidades que substituíram vias férreas por automóveis. Pode ser que não leve muito tempo até que obtenham suas fúteis «qualificações profissionais», mas depois das horas loteadas de trabalho especializado eles ainda têm que fazer todos os outros com suas próprias mãos. Nossa era não conseguiu ainda substituir a família, o dinheiro, ou a divisão do trabalho; alguém poderia dizer que tais pessoas já se encontram quase que totalmente privadas da realidade prática dessas coisas pela completa despossessão. Quem nunca teve qualquer substância perdeu até mesmo sua própria sombra.
 
Empregado com roupas da moda em um correspondente ambiente em moda.

A natureza ilusória das riquezas que a sociedade presente afirma distribuir seria amplamente demonstrada (se não fosse evidente em muitos outros aspectos) pelo simples fato de nunca antes um sistema de tirania ter mantido seu lacaios, seus peritos, e seus bobos da corte assim dessa forma, em farrapos. Eles trabalham horas extras a serviço da vacuidade, e a vacuidade os recompensa cunhando-os à sua própria imagem. Esta é a primeira vez que pessoas pobres se imaginam parte de uma elite econômica, apesar de toda a evidência contrária. Não apenas fazem estes miseráveis espectadores trabalhar, como fazem com que ninguém trabalhe para eles se não for mediante pagamento. Até mesmo seus varejistas agem como seus inspetores, julgando se eles são ou não suficientemente zelosos em abocanhar os bens sucedâneos que têm o dever de comprar. Nada pode esconder a obsolescência embutida de todas suas posses — a rápida deterioração não só dos seus bens materiais, como também até mesmo dos seus direitos legais relativos às poucas propriedades que possam possuir. Não receberam qualquer herança, nem deixarão nenhuma.
 
Casal de empregados no banheiro com duas crianças.

Velho casal de empregados diante de seu automóvel.

Empregado tentando atravessar uma avenida congestionada.

Dois carros quebrados no meio de uma estrada.

Destruição de um carro e seu apêndice humano em um teste de colisão em um o departamento de pesquisa do fabricante.

O cinema divulgou necessidades mais do que algo para enfrentar essas amargas verdades, que interessam tão intimamente, mas que são tão amplamente reprimidas, se é inegavel que o cinema prestou o rude serviço de revelar que os problemas não são tão misteriosos como imaginamos, nem mesmo talvez tão incuráveis, é inegavel também que pode nos orientar no sentido de abolir as classes e o estado — se o cinema não tiver nem mesmo essa virtude, então ele não terá virtude alguma.
 
Repetição da foto vista anteriormente da família de modernos empregados em seu quarto, com uma lenta tomada em direção ao centro.

Este público, que gosta simular conhecimento, na verdade não faz outra coisa senão justificar tudo aquilo que é forçado a sofrer, aceitando passivamente a constante e crescente repugnancia do alimento que ingere, do ar que respira e da casa onde mora — este público grita por mudança somente quando afeta o cinema com o qual se acostumou. Na realidade este é o único de seus hábitos que parece ter sido respeitado. Por muito tempo fui talvez a única pessoa escandalizada nesse campo. Todos os outros cineastas, mesmo aqueles suficientemente atualizados para ecoar alguns poucos modismos criados pela imprensa, continuam presumindo a inocência deste público, continuam usando as mesmas velhas convenções cinematográficas para mostrar o mesmo tipo de aventura distante ordenada por astros e estrelas — astros e estrelas cuja intimidade pode ser ser vista em grande parte pelo buraco da fechadura da imprensa.
 
Anúncio de novo filme: «Em breve neste cinema», seguido pelo título: O Dia Mais Feliz de Minha Vida.

Outro anúncio: «Em breve neste cinema», e «Você redescobrirá as trilhas de sua juventude». Título: A Seta Negra de Robin Hood. Cavalgadas, flechas, luta de espada, reuniões em castelos e florestas.
 
Cavaleiro cai atingido por uma flecha. Narrador: «Encontre novamente o homem que tornou-se uma lenda ousando lutar em nome do oprimido... . A Flecha Negra de Robin Hood é a história de um homem destemido, que nunca hesitou lutar sozinho contra a tirania». Um nobre irritado grita: «Vão embora! Fora, todos vocês! Robin Hood está morto e enterrado!». Um exército avança, cantando, em direção ao inimigo. Com uma música de fundo apropriada, o narrador resume: «Não! Robin Hood está mais vivo que nunca, e ele o surpreenderá com sua grande ousadia».

O cinema a que me refiro é uma imitação desordenada de uma vida desordenada, uma produção habilmente projetada para nada comunicar. Não serve a nenhum propósito fora daquela hora de enfado que reflete o mesmo enfado. Esta imitação covarde é a enganação do presente e a falsa testemunha do futuro. Sua massa de ficções e grandes espetáculos não passa de uma acumulação inútil de reflexos varridos pelo tempo. Que respeito infantil pelas imagens! Esta Feira das Vaidades é bem adequada para espectadores plebeus, que constantemente oscilam entre o entusiasmo e a decepção; falta-lhes gosto porque eles nunca tiveram nenhuma experiência feliz em coisa alguma, e recusam admitir suas experiências infelizes porque lhes falta além da coragem também o gosto. Isso explica porque nunca cessam de sofrer todo tipo de fraude, geral e particular, que apela para auto-influenciada credulidade.
 
Trailler completo de um Western completamente medíocre.

É inacreditável, mas apesar de toda óbvia evidência contrária, ainda há alguns cretinos, entre os espectadores especializados contratados para rebaixar os espectadores à mesma categoria deles, afirmando que é «dogmático» declarar um pouco de verdade em um filme a menos que seja também provada através de imagens. Em matéria de servilismo e inveja intelectual o mais recente modismo é referir-se a tudo aquilo que descreve sua servidão como «o discurso padrão». O mesmo ocorre com respeito aos dogmas absurdos de seus atuais chefes. Se identificam tão completamente com eles que nem mesmo reconhecem sua existência. O que é que precisa ser provado através de imagens? Nada está provado exceto o real movimento que dissolve as condições existentes — quer dizer, as relações de produção existentes e as formas de falsa consciência desenvolvidas com base nessas relações.
 

Uma boa imagem jamais conseguiu impedir que um erro viesse à tona. Aqueles que vêem os capitalistas como gente bem equipada para administrar com contínua e crescente racionalidade nossa contínua e crescente felicidade, e os prazeres mais diversos de nosso poder aquisitivo, enchergam estadistas capazes; aqueles que vêem os burocratas stalinistas como o partido do proletariado, enchergam caricaturas refinadas do proletariado. As imagens existentes apenas reforçam as mentiras existentes.
 
Detalhe dos ministros de governo da Quinta República.










Líderes franceses stalinistas.

Mao Zedong no fim de seu reinado.

As anedotas dramatizadas foram os tijolos que construíram o cinema. Seu caráter perene foi herdado do teatro e do romance, embora atuando em um ambiente mais espaçoso e móvel, com fantasias e colocações mais diretamente visíveis. Foi uma sociedade particular, não uma tecnologia particular que fez o cinema assim. Poderia ter consistido de análises históricas, teorias, composições, memórias. Poderia ter consistido de filmes como o que eu estou fazendo este momento.
 
Detalhe de um longo beijo.

No presente filme, por exemplo, simplemente declaro algumas verdades sob um fundo de imagens totalmente triviais ou falsas. Este filme desdenha a imagem-sucata que o compõe. Eu não desejo preservar qualquer linguagem desta arte antiquada, exceto talvez o tiro pela culatra da visão única do mundo, e do panorama das idéias passageiras de uma era. Orgulho-me de ter feito um filme a partir do lixo que me chegou às mãos; e acho divertido ver que as pessoas que se queixam são justamente as que permitiram que esse belo lixo dominasse suas vidas por completo.
 
Zorro esmurra alguém numa linha de trem. O pé dele fica preso entre dois trilhos. Um trem se aproxima. O vilão foge. Zorro gesticula em vão, então vê seu chicote ao alcance. Ele o agarra, usa-o para girar o controle do trilho, e livra-se bem pouco antes do trem passar.

Cena de tropas invadindo uma praia em 6 de junho de 1944.

Mereci o ódio universal da sociedade de meu tempo, e ficaria aborrecido se tivesse qualquer outro mérito aos olhos de tal sociedade. Mas notei que foi no cinema que despertei a afronta mais extrema e unânime. Esta aversão foi tão intensa que fui plagiado bem menos neste domínio do que em qualquer outro, pelo menos até agora. Até mesmo minha existência como cineasta permanece uma hipótese geralmente refutada. Vejo a mim mesmo colocado fora de todas as leis do gênero. Como alguém observou, «não há qualquer satisfação apresentar uma obra além da crítica».
 
Cena de um barco, movendo-se da ilha de Giudecca em direção a Veneza.

O que esta era escreveu e filmou é tão totalmente desprezível que o único modo de alguém no futuro oferecer a mais leve justificação para isto será literalmente reivindicar que não havia qualquer outra alternativa — que por alguma razão obscura nada mais era possível. Infelizmente para esses que foram reduzidos a tal desculpa desajeitada, apenas meu exemplo bastará para demolí-los. E uma vez que esta realização gratificante requereu relativamente pouco tempo e aborrecimento, não vejo qualquer razão para renunciá-la.
 
 
Uma senhora de Veneza.

A despeito do que alguns gostariam de acreditar, dificilmente podemos esperar inovações revolucionárias de gente cuja profissão é monopolizar o estágio sob as condições sociais presentes. É óbvio que tais inovações só podem vir de pessoas que receberam hostilidade e perseguição universais, não dos que recebem fundos do governo. Em termos mais gerais, apesar da silenciosa conspiração neste assunto, pode-se afirmar confiantemente que nenhuma real oposição poderá ser levada a cabo por indivíduos que alçaram alguma ligeira elevação social por manifestar tal oposição, mas que ao cabo acabaram se contendo. Já temos o famoso exemplo dos que florescem política e funcionalmente dos sindicatos, sempre prontos a prolongar as queixas do proletariado durante outros mil anos a fim de preservar o papel de defensores que eles mesmos desempenham.
 
Zorro, com armas na mão, mantém seu inimigo à distância. Então ele sai a galope perseguindo os bandidos, atirando neles de vez em quando como um partiano, sem mesmo olhar em volta.

De minha parte, se tive sucesso sendo tão deplorável no cinema, é porque fui bem mais criminoso em outros setores. Desde o princípio me dediquei a subverter esta sociedade, e agi adequadamente. Assumi esta posição em um tempo quando a maioria das pessoas acreditava que esta sociedade desprezível (em sua versão burguesa ou burocrática) teria um futuro mais promissor. E desde então eu não tenho, como tantos outros, mudado meus pontos de vista uma ou mais vezes com o passar do tempo; em vez disso os tempos é que tem mudado de acordo com meus pontos de vista. Esta é uma das principais razões pelas quais tenho despertado tanta animosidade por parte de meus contemporâneos.
 
 
Um afegão mostra extrema relutância em entrar em um automóvel.

Assim, em vez de acrescentar mais um filme aos milhares de filmes banais, prefiro explicar por que não fiz nada desse tipo. Substituí as frívolas e típicas aventuras recontadas pelo cinema pelo exame de um tema importante: eu mesmo.
 
Zorro cavalga ao lado de um trem em movimento, então salta para o último vagão, escala um obstáculo, pega uma metralhadora e a aponta para os bandidos, que se rendem.
 
Velho intelectual, vítima de um assassino, pergunta para Zorro: «Antes que eu morra, posso saber quem você é?» Zorro pede para que todos se afastem e ergue sua máscara.

Às vezes me reprovam — injustamente, eu creio — por fazer filmes difíceis. Agora eu vou fazer um de fato. Aos que se aborrecem por não conseguir entender todas as insinuações, ou que admitem até mesmo não ter nenhuma idéia do que pretendo, eu apenas respondo que eles deveriam culpar sua própria esterilidade e falta de educação em vez de meus métodos; desperdiçaram o tempo deles na faculdade, compraram fragmentos estropiados de conhecimentos de segunda-mão.
 

Detalhe do jogo de Kriegspiel no qual dois exércitos se preparam para o combate.

Considerando a história de minha vida, é óbvio para mim que não posso produzir uma «obra» cinematográfica no sentido habitual do termo. Acho que a substância e a forma da presente comunicação convencerá qualquer um desse fato.

Tenho antes de mais nada de repudiar a mais falsa das lendas, que diz que eu sou algum tipo de teórico de revoluções. Pessoas mesquinhas da presente era parecem acreditar que eu alcancei coisas por meio da teoria, que eu sou um construtor de teoria — um tipo de arquitetura intelectual que eles imaginam ser necessário apenas folhear para descobrir sua localização, para, dez anos depois, poder remodelar e até mesmo ligeiramente rearranjar em algumas folhas de papel, para atingir a perfeição teórica definitiva que assegurará a salvação deles.
 

Mas as teorias são feitas apenas para morrer na guerra de tempo. Como unidades militares que precisam ser enviadas para a batalha no momento certo; e quaisquer que sejam seus méritos ou insuficiências, só podem ser usadas se estiverem disponíveis quando necessárias. Têm que ser substituídas porque constantemente tornam-se obsoletas — até mesmo mais pelas suas vitórias decisivas do que pelas suas derrotas parciais. Além disso, nenhuma era vital jamais foi gerada por uma teoria; elas começaram com um jogo, ou um conflito, ou uma viagem. O que Jomini disse da guerra também pode ser dito da revolução: «Longe de ser uma ciência exata ou dogmática, é uma arte sujeita a alguns princípios gerais, é até mesmo mais que isso, um fervoroso drama».
 

Coronel Custer conduz o último ataque do Regimento da Sétima Cavalaria em Litle Big Horn.

Que paixões temos nós, e para onde elas nos conduzem? A maioria das pessoas, na maior parte do tempo, tende a seguir rotinas enraizadas. Mesmo quando se propõem a revolucionar a vida de cima para baixo, fazer um jogo limpo e mudar tudo, eles não vêem nenhuma contradição na medida em que seguem o curso das reflexões que lhes são acessíveis e assim assumem um ou outro ponto de vista de acordo com sua capacidade (ou até mesmo um pouco acima dela). É por isso por que aqueles que normalmente expressam seus pensamentos sobre revoluções se abstêm de nos deixar saber como eles de fato vivem.
 


O regimento, completamente surpreendido por indios montados em cavalos, pára e dispersa.








 

Cena de um barco, que sai do Canal Giudecca em direção à Ilha Giudecca.


Quanto a mim, que não sou esse tipo de pessoa, posso apenas contar com «damas e cavaleiros, armas e amores, garbosas conversas e audazes aventuras» de uma era sem igual.

Outros podem definir e medir o curso de seu passado em relação ao avanço alcançado em alguma carreira, ou pela aquisição de vários tipos de bens, ou em alguns casos pela acumulação de trabalhos científicos ou estéticos socialmente reconhecidos. Não tendo conhecido nenhum desses referenciais, somente vejo, quando olho para trás na passagem deste tempo desordenado, os elementos que o constituíram para mim, ou as palavras e faces que os evocam — dias e noites, cidades e pessoas, e essencialmente, uma guerra incessante.

 

Passei minha vida em alguns países da Europa, e foi no meio do século, aos dezenove anos, quando comecei a viver uma vida completamente independente; que imediatamente vi a mim mesmo como a mais mal-afamada das companhias.
 
Mapa da Europa.

Debord aos dezenove anos.

Estava em Paris, uma cidade tão bela naquela época que muitas pessoas optaram por viver pobres naquela cidade do que ricas em qualquer outro lugar.
 
Mapa de Paris no fim do século XIX.

Quem, agora que nada mais resta daquele tempo, poderá entender isto, exceto aqueles que se lembram de sua glória? Quem mais poderia saber dos prazeres e superações que experimentamos naqueles bairros onde tudo ficou tão sinistro agora?
 


Uma série de fotos aéreas de Paris.

«Aqui residia o velho rei de Wu. Agora o capim cresce pacificamente em meio a suas ruínas. Acolá, o vasto palácio do Tsin, outrora tão esplêndido e tão temido. Tudo isso desapareceu para sempre — eventos, pessoas, tudo constantemente escapa de uma forma desapercebida, como as ondas incessantes do Yangtze que desaparecem no mar».
 
 
Couperin: Concerto Real #4 (Prelúdio).

Música termina.

A Paris daquele tempo, então confinada a vinte distritos, nunca adormecia completamente; uma festa em qualquer noite poderia ser transferida de um bairro para outro, então para outro e ainda outro. Seus habitantes ainda não estavam controlados e dispersos. Ainda havia ali alguns remanescentes de um povo que havia barricado suas ruas e derrotado seus reis uma dezena de vezes. Eles não se contentavam em viver de aparencias. Enquanto vivessem em suas próprias cidades, ninguém ousaria fazê-los comer ou beber nenhum tipo de produto que a química de adulteração porventura inventasse.
 


 

Detalhe do Boulevard do Crime, reconstruído pelas Crianças do Paraíso


As casas do centro ainda não haviam sido abandonadas, ou transformadas para uso dos espectadores de cinema récem-criados, sob novas estruturas. O moderno sistema mercantil não tinha ainda demonstrado completamente o que poderia fazer com as ruas. Os planejadores das cidades ainda não forçavam as pessoas a viajar para dormir em lugares distantes.
 

A corrupção governamental não tinha ainda obscurecido o céu claro com a névoa artificial da poluição que agora permanentemente recobre a circulação mecânica das coisas neste vale de desolação. As árvores ainda não haviam sido sufocadas e mortas; e as estrelas ainda não haviam sido apagadas pelo progresso da alienação.
 


Outras fotos aéreas de Paris.


Os mentirosos estavam no poder, como sempre; mas o desenvolvimento econômico não tinha ainda lhes fornecido os meios para mentir sobre tudo, ou confirmar suas mentiras falsificando o conteúdo atual de toda produção. As pessoas foram como que surpreendidas ao ver impressos ou produzidos em Paris tudo aquilo que até então era feito de cimento e amianto, e todos os edifícios que até então tinham sido construídos fora de sofismas sombrios, repentinamente surgiam na forma de um Donatello ou um Thucydides.
 












Amanhecer no distrido de Les Halles.

Musil, em O Homem Sem Qualidades, observa que «há atividades intelectuais em que um homem pode se orgulhar mais por ter escrito um breve artigo do que um grosso volume. Por exemplo, se alguém descobrisse que sob determinadas circunstancias as pedras seriam capazes de falar, seria necessário apenas algumas páginas para descrever e explicar tal fenômeno revolucionário». Assim, me limitarei apenas a algumas palavras para anunciar, a despeito do que os outros possam dizer sobre isto, que Paris já não mais existe. A destruição de Paris é apenas um exemplo notável da doença fatal que está destruindo atualmente todas as principais cidades, e tal doença é por seu turno apenas mais um entre os numerosos sintomas da decadência material desta sociedade. Mas Paris perdeu mais que qualquer outra. Quão maravilhoso foi ser jovem nesta cidade quando pela última vez ela ardeu tão intensamente como uma chama.
 


 

Cena da cidade de Paris com detalhe do Rio Sena.


Havia naquele tempo nos bancos de areia à margem esquerda do rio — e você não pode entrar no mesmo rio duas vezes, nem duas vezes tocar a mesma substância perecível — um bairro onde tudo era decidido localmente.
 
O 6º Distrito visto de acima, com o Sena no primeiro plano

É comum em períodos sacudidos por mudanças momentosas, a pessoa, mesmo a mais inovadora, ter muita dificuldade durante algum tempo para se livrar de muitas idéias antiquadas, tendendo a reter pelo menos algumas delas. Achando impossível rejeitar totalmente, como falsas e inúteis, afirmações que são aceitas universalmente.
 


Adolescentes dançam.

Quadrinho: Príncipe Valente numa mesa na «Caverna do Tempo». Uma jovem diz para ele: «Esta caverna é a sala de troféus do Tempo onde ninguém ousa entrar».

 
Graffiti em muro: «Nunca trabalhe!»

Porém, é preciso acrescentar que quando há uma experiência prática neste tipo de situação, tais dificuldades acabam logo superadas e um grupo das pessoas começa a fundar sua real existência em uma rejeição deliberada daquilo que é aceito universalmente, e com total indiferença para com as possíveis conseqüências.
 
Grupo no caixa de um bar no fim da noite.

Príncipe Valente responde à jovem: «Não entendi o significado de tuas palavras, mas seu vinho é forte: minha cabeça gira».

Aqueles que se concentravam naquele bairro pareciam ter adotado publicamente desde o começo como princípio exclusivo de ação aquele segredo do Velho Homem da Montanha que pretendia revelá-lo apenas em seu leito de morte ao tenente mais leal entre seus seguidores fanáticos: «Nada é verdade, tudo é permitido». Eles não outorgaram nenhuma importância aos seus contemporâneos que não estavam entre eles, e eu acho que eles tinham razão nisto; e se mencionavam alguém do passado, este foi Arthur Cravan, o desertor das dezessete nações, ou talvez também o refinado bandido Lacenaire.
 
Pessoas do Saint-Germain-des-Prés no terraço de um bar. Cena dentro do bar -- som de violão, encontros, conversas.
 
Lacenaire diz a alguns mebros da classe dominante: «neste mundo há diversidade -- ou destruição». Eles respondem: «Muito inteligente. Apenas um pequeno jogo de palavras, mas divertido». «Bem divertido». «Realmente».

Esta posição extrema declara-se independente de qualquer causa particular e desdenha emaranhar-se em qualquer projeto. Uma sociedade já cambaleante, sem consciência disto pelas velhas regras serem ainda respeitadas em todos lugares, deixa momentaneamente o campo aberto aos sempre presentes mas geralmente reprimidos setores da sociedade: os incorrigíveis refugos; o sal da terra; pessoas suficiente e sinceramente prontas a atear fogo ao mundo apenas para faze-lo brilhar.
 


Cena da cidade de Kotoko nas areias da Nigéria.

Outra cena.

 

Novamente o grupo bebendo em um bar.

Adolescentes continuam dançando.


«Artigo 488. A maioridade é alcançada aos 21 anos; uma pessoa nesta idade está capacitada para todos os atos da vida civil».
 


TELA FICA BRANCA

 

 


«É necessário criar uma ciência de situações, que fará uso de elementos da psicologia, estatística, urbanismo, e ética. Estes elementos devem ser focalizados para uma meta totalmente nova: a criação consciente de situações».

«Mas ninguém fala sobre Sade neste filme».

«A ordem reina mas não governa».

«Arma Doida. Você lembra. As coisas eram assim. Ninguém era suficientemente bom para nós. Acrescente-se a isso. . . as pedras de gelo batendo no copo . Não esqueceremos este planeta amaldiçoado».

«Artigo 489. Um adulto que normalmente está em estado de imbecilidade ou demência, ou que tenha freqüentes ataques de raiva, deve ser mantido sob custódia mesmo que tenha intervalos de lucidez».

«Uma vez mais, após todas as respostas intempestivas e o envelhecimento da mocidade, a noite cai do céu».

«Como crianças perdidas vivemos nossas aventuras inacabadas».

 
 
Das sacadas de um teatro multidão grita indignada.

Do princípio ao fim, o filme que eu fiz naquele tempo, naturalmente enfureceu os estetas mais avançados; lamentáveis observações feitas em cima de uma tela completamente branca, entremeada com passagens extremamente longas de silêncio durante as quais a tela permanecia completamente escura. Alguns, sem dúvida, preferiram acreditar que um experimento subseqüente conduziria a um desenvolvimento mais maduro de meus talentos ou intenções. Um experimento cujo progresso já havia rejeitado? Não me façam rir. Por que alguém que se mostrou tão intolerante para com o cinema em sua juventude deveria sê-lo menos em sua velhice? O que chegou a tal nível de ruindade nunca poderia melhorar realmente. As pessoas podem dizer, «como envelheceu, como mudou»; mas permaneceu o mesmo.
 


Uma fábrica moderna, por várias chaminés, vomita nuvens grossas de fumaça branca que virtualmente cobre toda tela.

 

 

 

 

 

 

Debord com quarenta e cinco anos.

 
Lacenaire diz para Garance: «Não sou cruel, sou lógico. Declarei guerra a esta sociedade já faz muito tempo». Garance pergunta: «Você tem matado muita gente ultimamente, Pierre-François?». Lacenaire: «Não, meu anjo. Veja, nenhum traço de sangue, apenas algumas manchas de tinta! Mas resta assegurar, Garance, que estou preparando algo extraordinário.... Quando criança, fui mais lúcido e mais inteligente que os outros. Nunca me perdoaram por isso.... Que idiotice! Mas que destino prodigioso!.... Não tenho nenhuma vaidade, apenas me orgulho. Estou certo sobre mim, absolutamente certo. Pequeno ladrão por necessidade, assassino por vocação, meu caminho já está selado, e caminharei de cabeça erguida -- até que caia na guilhotina, claro!... Meu pai sempre me dizia: 'Pierre-François, você acabará no patíbulo'». Garance: «Ele estava certo, Pierre-François, devemos sempre ouvir nossos pais».

Embora a seleta população deste momentâneo patrimônio de perturbações incluisse certo número de ladrões e ocasionalmente alguns assassinos, nossa vida foi principalmente caracterizada por uma prodigiosa inatividade; e de todos os crimes e ofensas que as autoridades nos acusaram, esta foi sentida como a mais ameaçadora.
 
Tipos sombrios entram na Taverna Redbreast.
 
Ladrão aproxima-se de uma mesa e pede para um expert que avalie algumas jóias para ele: «São verdadeiras ou falsas?»... O expert volta-se para seu companheiro recem-chegado: «O que acha disso? Não diz nada? Você é um homem sábio! Nunca diz nada». Um informante, que também é traficante, entra e começa sua lenga-lenga: «Você sonhou com gatos? Cães? Passa por dificuldades? Vai aqui uma explicação para todos seus sonhos -- um livro de verdade, com ilustrações!». Ele cumprimenta o dono e o adverte: «Lacenaire e seus camaradas não vão muito longe. Já avisei». Lacenaire e seus companheiros entram, incluindo Garance.

Foi a melhor armadilha possível para apanhar visitantes. Aqueles que ficaram por ali por dois ou três dias nunca mais puderam sair, pelo menos até que deixassem de existir; a maioria veria seu fim em poucos anos. Não se sabe de ninguém que tenha deixado aquelas poucas ruas e mesas «em tempo» para escapar.
 
Bebidas são servidas na mesa de Lacenaire.
 
Garance pergunta: «Se entendi direito, todos vocês são uma espécie de filósofos?» Lacenaire: «Porque não?» Garance exclama: «Gostei de ouvir isso! A filosofia é tão alegre, divertida e decente!». Um dos capangas de Lacenaire sugere tirar alguém dali. Lacenaire consente. O capanga se levanta e abre caminho entre os dançarinos.

Todo mundo se orgulha por suportar tão magnífico e desafiante desastre; mas na realidade não acredito que alguém que passou por ali adquira a mais leve reputação de honestidade.
 
Ele agarra o intruso e o empurra pela janela da frente.
 
O proprietário protesta: «Que aconteceu com minha janela?» Lacenaire responde de sua cadeira: «Por que, não podemos mais nos divertir com o Redbreast?». O proprietário, em um tom conciliador: «Oh, Monsieur Lacenaire, eu só queria...»

Cada um de nós tomava mais bebidas em um dia do que o número de mentiras que o sindicato contava durante todo o tempo em que durava uma greve de ocupação. Gangues de policiais, guiadas por numerosos informantes, constantemente invadiam nossos espaços com todo tipo de pretextos — freqüentemente procurando drogas ou meninas menores de dezoito anos. Muito tempo depois, nos mergulhos sombrios da memória, lembro-me de charmosos desordeiros e orgulhosas garotas — os anos passam como nossas noites, sem a mais leve renúncia — e ouço uma canção entoada pelos prisioneiros na Itália: «Encontre as jovens meninas que lhe dão de tudo; primeiro um oi, depois suas mãos. . . . Há um sino na Via Filangieri; que toca cada vez que alguém é condenado. . . . A flor da juventude morre na prisão».
 
Duas viaturas da polícia param em frente ao Café des Poètes. Policiais rapidamente bloqueiam todas as saídas e exigem os documentos de todos.

Garota anda pelas ruas durante a noite.


Menor delinqüente.

Vista exterior da prisão onde os membros do grupo Baader-Meinhof foram assassinados.

Andreas Baader e Gudrun Enslin.

Mesmo menosprezando todas as ilusões ideológicas e sendo bem indiferentes àquilo que lhes pudessem provar a posteriori como sendo o correto, estes réprobos não desdenharam declarar abertamente o que estava por vir. Acabaram com a arte, anunciaram bem no meio de uma catedral que Deus estava morto, conspiraram explodir a Torre Eiffel — foram pequenos e esporádicos escândalos praticados por pessoas cujo permanente modo de vida constituia um grande escândalo. Perguntaram a si mesmos por que certas revoluções tinham falhado; se o proletariado realmente existiu; e se existiu, o que seria.
 


Homem de chapéu entra no Saint-Germain-des-Prés e conversa demoradamente com o proprietário.

 

 

Homens bebem e filosofam em um bar sujo.

 
Atriz em outro filme levanta uma discussão: «Alguns acreditam que ele pensa em nós, outros que ele pensa por nós; e ainda há aqueles que acreditam que ele dorme e que somos seu sonho --seu pesadelo».

Quando falo sobre essa gente, pode parecer que estou tirando sarro deles; mas não é assim. Bebi o vinho deles e permaneço fiel a eles. E eu não acredito que qualquer coisa que eu tenha feito desde então tenha me tornado melhor ao ponto de deixá-los para trás.
 
Cena de mesas ocupadas no mesmo bar sujo.

Considerando as forças dominantes dos costumes e a lei, que continuamente nos pressionam para que nos dispersemos, nenhum de nós está seguro nem mesmo durante um final de semana. Mesmo que tudo aquilo que amemos esteja ali. Onde o tempo queima mais intensamente que em qualquer outro lugar, e logo se esvai. Onde sentimos a terra tremer.
 


Estudante caminha pelas ruas durante a noite.

Entrada de um bar sujo.

 


Um conspirador veneziano diz ao seu companheiro: «Logo chegaremos ao continente. Então poderemos nos encontrar com mais freqüencia».


O suicídio levou muitos. Como diz uma canção: «A bebida e o diabo fazem o resto».
 
Pessoas em uma adega.

A meio caminho na viagem da vida real nós nos vemos cercados por uma sombria melancolia, refletida nos tantos tristes gracejos nos cafés da mocidade perdida.
 

Garota entra lentamente por uma porta giratória no mesmo quarteirão.

«Tudo isso não passa de um tabuleiro de damas de noites e de dias, onde o Destino joga com homens como se peças fossem: move-os para cá e para lá, confere-os e mata-os, e um a um é colocado na gaveta».
 
Um encontro na adega vista anteriormente.

Jogadores de xadrez.

«Quanto tempo ainda tem que passar até que termine nossa grandiosa cena, nasçam situações e se enfatize o desconhecido!»
 
Ivan Chtcheglov.

«O que é a escrita? A guardiã da história. . . . O que é o homem? Um escravo de morte, um viajante que passa, um hóspede na terra. . . . O que é amizade? Uma regularidade entre amigos».
 
Gil J. Wolman.

Robert Fonta.

Ghislain de Marbaix.

«Bernard, o que você quer do mundo? Você vê qualquer coisa que possa satisfazer você? . . . Essa coisa desaparece, fugindo como um fantasma que nos dá algum tipo de satisfação enquanto permanece conosco, não deixando outra coisa a não ser a inquietude de seu rastro. . . . Bernard, Bernard, ele costumava dizer, o verdor da mocidade não durará para sempre».
 

Debord aos vinte anos.

Ela que foi a mais bela do ano.
   
Art Blakey: «Não Sussurre».

Música termina.


Mas nada expressa melhor este atual encurralamento e inquietude que um velho ditado que por si só diz tudo, montando carta por carta como um labirinto inevitável, unindo perfeitamente a forma e o conteúdo da perdição: Im girum imus nocte et consumimur igni. Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo.

 
Cena de uma deserta praça parisiense durante a noite.

Cena de um cruzamento da Les Halles durante a noite.

Cena de uma praça e de algumas luzes durante a noite, terminando com as luzes de um bar ainda aberto.

Cena se repete.

«Gente nasce e morre, nasce e morre mas nada muda. O sol nasce e se põe e volta a nascer. . . . Os rios correm para o mar, mas o mar nunca fica cheio. A água volta para os rios e corre outra vez para o mar. . . . Há um tempo certo para cada coisa, e para todo propósito há um tempo debaixo dos céus. . . . tempo para matar, tempo para curar; tempo para destruir, tempo para construir de novo; . . . tempo para rasgar, tempo para costurar; tempo para ficar quieto, tempo para falar. . . . Melhor compreender aquilo que deseja do que desejar aquilo que não compreende: isto também é vaidade e vexação de espírito. . . . De que vale ao homem buscar aquilo que não compreende, se nem mesmo sabe o que é bom para ele durante seus dias na terra, tempo que passa como uma sombra?».
 

Tropa de soldados emerge de uma rua adjacente e segue ao longo do canal; perdem muitos homens sob o fogo inimigo; e finalmente cruzam a ponte.

«Não, deixe-nos atravessar o rio e descansar debaixo da sombra dessas árvores».
 

O Sena e a Zona Oeste da Cidade

Foi lá que adquirimos a rigidez que nos acompanha todos os dias de nossa vida, e isso permitiu a vários de nós permanecer tão alegremente em guerra contra o mundo inteiro. Quanto a mim, particularmente, suspeito que as circunstâncias daquele tempo me proporcionaram o aprendizado que me permitiu construir meu espaço tão instintivamente pela cadeia subseqüente de eventos, que incluíram tantas violências e tantas fraturas, e onde tantas pessoas foram tão mal tratadas — passando todos esses anos como se tivesse com uma faca na mão.
 

Muros do Arsenal de Veneza.

Talvez não fôssemos tão cruéis se tivéssemos encontrado algum projeto já iniciado que parecesse merecer nosso apoio. Mas não houve nenhum projeto assim. A única causa que apoiamos tivemos que definir e lançar por nós mesmos. Não havia nada acima de nós que pudéssemos respeitar.

Para alguém que pensa e age desta maneira, não há problema nenhum em ouvir os longos momentos daqueles que acham algo bom, ou mesmo algo meramente tolerante dentro das condições presentes; nem aqueles que, perdidos pelo caminho, parecem pretender seguir em frente; nem mesmo, em alguns casos, aqueles que simplesmente não pegam as coisas suficientemente rápido. Outras pessoas, anos depois, começam a defender a revolução da vida cotidiana com suas vozes tímidas ou canetas prostituídas — mas de longe e com a garantia tranqüila da observação astronômica. Mas qualquer um que tenha de fato tomado parte em um empenho deste tipo, que escapou das deslumbrantes catástrofes que o acompanham ou seguem em sua esteira, não está em uma posição fácil. Os calores e os frios do tempo nunca o abandonam. Até certo ponto, você tem que descobrir como viver os dias à frente de uma maneira digna de um bom começo. Você acaba desejando prolongar essa primeira experiência da ilegalidade.

Foi assim que, pouco a pouco, uma nova era de conflagrações foi fixada em chamas, da qual nenhum de nós que vivemos neste momento verá o seu fim. A obediência está morta. É maravilhoso notar como disturbios originados em um pequeno bairro humilde e efêmero acabaram sacudindo toda a ordem mundial. (Tais métodos obviamente nunca sacudiriam coisa alguma em uma sociedade harmoniosa que fosse capaz de controlar todas suas forças; mas é agora evidente que nossa sociedade é totalmente seu oposto).

Quanto a mim, nunca lamentei sobre nada que fiz; e sendo como sou, tenho que confessar que permaneço completamente incapaz de imaginar como poderia ter feito qualquer coisa de uma forma diferente do que fiz.

 

A despeito da aspereza da primeira fase do conflito, nosso lado tendeu para uma estática posição puramente defensiva. Nosso experimento espontâneo não estava suficientemente atento a si mesmo; principalmente depois de ter sido confinado a um local particular, nós também tendemos a negligenciar as significantes possibilidades para a subversão no mundo aparentemente hostil ao redor de nós. Quando vimos nossas defesas sendo subjugadas e alguns de nossos camaradas começando a hesitar, alguns de nós sentiu que deveríamos tomar a ofensiva: que em vez de se fortificar na emocinante fortaleza de um momento, deveríamos irromper abertamente, fazer um reconhecimento, manter nossa posição e simplesmente nos devotar a destruir totalmente este mundo hostil — para, se possível, reconstruí-lo em outras bases. Houveram precedentes nesse aspecto, mas foram esquecidos. Tivemos que descobrir para onde o curso de coisas estava sendo conduzindo, e refutar tal curso tão completamente de forma a compeli-lo a eventualmente mudar de direção de acordo com nossos próprios gostos. Como Clausewitz observa alegremente, «Quem tem gênio tem que usá-lo — faz parte das regras do jogo». E Baltasar Gracián: «Você tem que atravessar os caminhos do tempo para alcançar o momento da oportunidade».
 



Regimento de Custer forma um círculo, sofrem duros ataques dos indios que os cercam. Seus soldados caem um após o outro. Os indios finalmente tomam as posições e matam todos os defensores.

 

 

 

 

 

 

 

 

Custer permanece sozinho em pé. Joga fora seus revólveres descarregados, pega sua espada que estava fincada no chão em sua frente e espera a arremetida dos vencedores.


Como poderei esquecer aquele que vi em todos lugares nos grandes momentos de nossas aventuras — aquele que em dias incertos abria um caminho novo e planeava à frente tão rapidamente, escolhendo os que o acompanhariam? Ninguém se igualou a ele naquele ano. Quase poderia dizer que ele transformou as cidades e a vida somente olhando para elas. Em um único ano ele descobriu mais material do que durante um século de demandas; as profundidades e os mistérios do espaço urbano foram sua conquista.
 


Ivan Chtcheglov.

Quadrinho: Cavalgando em busca de aventura, Príncipe Valente «aproxima-se de um misterioso raio de luz que brilha num lugar onde nenhum humano poderia pisar».

Cena de um palácio durante a noite

Vulto de uma pessoa em um cruzamento.

 
«O Terceiro Homem» aparece por um momento em um degrau da porta.

Quadrinho: Príncipe Valente e um companheiro, ambos disfarçados. «Dentro dos declives de fortaleza o silêncio pesado de pessoas infelizes. Quando os dois amigos abrem caminho em direção ao palácio, há uma explosão súbita de trompetes».

Os poderes estabelecidos, com suas lamentáveis informações falsificadas que os engana quase tanto quanto desnorteia aqueles que estão sob sua administração, ainda não perceberam o quanto valeu a rápida passagem desse homem? Mas o que importa? Os nomes dos náufragos são escritos apenas na água.
 
Velho castelo.

Príncipe valente passa por algumas construções em chamas.




Ivan Chtchenglov.
 
Couperin: Novo Concerto #11 (primeiro movimento).
Quadrinhos: Príncipe Valente, embrulhado em um capote: «Depois de uma longa viagem ele volta ao mar, sobre o qual se anuncia uma grande tempestade». Ele chega a uma aldeia litoranea: «A luz que brilha fracamente diante da tempestade sugere um possível abrigo». Entra em uma taverna: «Ele acha uma taverna freqüentada por marinheiros e viajantes de terras misteriosas». Os viajantes conversam nas mesas: «A tempestade ruge do lado de fora, narram contos estranhos de ilhas fabulosas e de maravilhosas cidades muradas».

Um homem que viaja a pé: «Enquanto isso um vagante desfigurado chega a taverna, trazendo notícias consternadoras. (Semana que vem: 'Roma Caiu!')».
volume da música diminui.

Não buscamos em livros a fórmula para destruir o mundo, mas perambulando. Acumulando dias infinitos sem cessar, onde nenhum deles se assemelha ao anterior. Surpreendentes encontros, notáveis obstáculos, grandiosas traições, perigosos encantos — uma completa procura por um Gral mais diferente, mais sinistro, que ninguém nunca ousou buscar. E então em um dia infortunado o melhor jogador entre nós se perde nas florestas de loucura. — Mas não há nenhuma loucura maior que a atual organização da vida.
 


Amanhecer, Rue des Innocents.

Quadrinho: «Madrugada revela um castelo magestoso, escondido em um vale no coração das montanhas».

Outro castelo.


Castelo de Ludwig II da Bavária.


Se eventualmente encontramos aquilo que procuramos? Há razão para acreditar que pelo menos o vimos de relance; porque é inegável que do ponto em que nos encontrávamos éramos capazes de comprender a falsa vida à luz da verdadeira vida, e possuídos com um poder muito estranho de sedução: desde então ninguém se aproximou de nós sem desejar nos seguir. Tínhamos redescoberto o segredo de dividir o que estava unido. Não fomos anunciar nossas descobertas na televisão. Não buscamos concessões de fundações acadêmicas nem elogios dos intelectuais dos jornais. Acrescentamos combustível ao fogo.
 
Cena de um barco: entrada para o porto da Ilha de San Giorgio.










Vigias e contrabandistas em um distrito proletário de Veneza.

Desta maneira fomos irrevogavelmente inscritos no partido do Diabo — o «mal histórico» que conduz às condições existentes para sua destruição, o «lado ruim» que faz história arruinando toda a satisfação estabelecida.
 
Cena de um barco em um canal bem estreito de Veneza.
 
O Diabo em Les Visiteurs du Soir, entra no salão principal do castelo: «Oh, que resplendor! Eu amo o resplendor! E ele me ama. Olhe, veja quão afetuoso é o fulgor, lambo meus dedos como um filhote de cachorro. Que deleite!... Mas desculpe-me por ter entrado. Embora seja verdade que meu nome e títulos não representem muito para você -- eu vim de muito longe. Esquecido em seu próprio pais, desconhecido em outros lugares, tal é a sina do viajante».

Aqueles que ainda não começaram a viver e se resguardam para um tempo melhor, e que ficam horrorizados diante do envelhecimento, não esperam outra coisa senão um paraíso permanente. Alguns deles pontuam este paraíso em uma revolução total, outros em uma promoção de carreira, outros almejam as duas coisas ao mesmo tempo. De qualquer forma eles esperam acessar o que contemplaram na imagem invertida do espetáculo: uma unidade feliz, eternamente presente. Mas aqueles que escolheram golpear com o tempo sabem que o tempo é sua arma e seu mestre. E dificilmente reclamariam disto, mesmo porque o tempo é um mestre ainda mais severo para aqueles que não têm arma alguma. Se você não tiver nenhuma empatia com a claridade enganosa deste mundo virado de cabeça para baixo, você é visto, pelo menos por aqueles que acreditam naquele mundo, como uma lenda controversa, como um fantasma invisível e malévolo, como um perverso Príncipe das Trevas. Que é na realidade um título bom — mais honrado que qualquer um que o presente sistema de explicações iluminadas por holofotes é capaz de dar.
 


Trailler: Um cantor em um cenário moderno dos anos trinta.

 

LEGENDA: «Breve neste cinema». Detalhe das luzes noturnas no Boulevard Saint-Germain.

 

Fachadas da Île Saint-Louis durante a noite.

 

O Diabo pergunta a jogadores de xadrez: «Interrompi seu jogo?». Alguém responde: «Não faz mal, o jogo estava perdido desde o começo». O Diabo movendo uma das peças: «Você acha? Xeque-mate. Veja, você ganhou. Xadrez é apenas um simples jogo!».

Assim, nos tornamos os emissários do Príncipe de Divisão — «o inimigo da sociedade» — aquele que traz desespero aos que se identificam com a humanidade.
 
Gilles e Dominique chegam ao castelo. Como fundo musical ouve-se a canção, «Tristes crianças perdidas».
 
No castelo durante a noite Dominique diz para Gilles: «Outras pessoas nos amam, e elas sofrem por nossa causa. Nós as observamos e depois vamos embora. Uma bela viagem, com o Diabo pagando as despesas».

Nos anos posteriores, pessoas de vinte países entraram nesta conspiração obscura de demandas ilimitadas. Quantas viagens apressadas! Quantas longas disputas! Quantas reuniões clandestinas em todos os portos de Europa!
 


Asger Jorn.
Giuseppe Pinot-Gallizio.
Attila Kotányi.
Donald Nicholson-Smith.
Um trem passa.


Assim foi traçado um programa visando arruinar a credibilidade da organização da vida social como um todo. Classes e especializações, trabalho e entretenimento, mercadorias e urbanismo, ideologia e estado — mostramos tudo aquilo que precisava ser esmagado. Prometendo nada mais que uma autonomia sem regras ou restrições. Estas perspectivas foram adotadas agora de uma forma ampla, e as pessoas estão lutando em todos lugares para ou contra elas. Mas no fundo tudo isso certamente pareceria delirante, se o comportamento do moderno capitalismo não fosse ainda mais delirante.
 


Cena dos participantes da oitava Conferência da Internacional Situacionista em Veneza.

 

 

Tropas em formação de escalão em um campo de batalha. Câmera filma lentamente de cima.


Houve alguns indivíduos que na prática mais ou menos concordaram com uma ou outra de nossas críticas; mas não houve ninguém que reconhecesse todas elas, ficando apenas com aquelas que eram capazes de articular e desenvolver na prática. Isso explica por que nenhum outro empenho revolucionário deste período teve a mais leve influência na transformação do mundo.
 

Nossos agitadores disseminaram idéias que uma sociedade de classe jamais poderia engolir. Os intelectuais a serviço do sistema — eles igual e obviamente mais em declínio que o próprio sistema — são os que agora cautelosamente investigam estes venenos na esperança de descobrir alguns antídotos; mas eles não tiveram sucesso. Duramente eles tentaram da mesma maneira ignorá-los — mas em vão, pois grande é o poder da verdade falada no momento certo.
 


Seqüência de batalha naval durante a II Grande Guerra

 

 

 

Saudação de todos os canhões de um couraçado.


Enquanto nossas sediciosas intrigas se esparramavam pela Europa e começavam a alcançar até mesmo outros continentes, Paris, onde qualquer pessoa facilmente pode passar sem ser notada, ainda estava ao coração de todas nossas jornadas, e era o mais frequentado de todos os nossos locais de reunião. Mas sua paisagem tinha sido arruinada, tudo estava deteriorando e caindo aos pedaços.
 


Rio Sena, no centro de Paris.

O Impasse de Clairvaux.

Vista aérea de Paris: Place de la Contrescarpe, Rio Sena, Quai de Bercy.


E no ocaso desta cidade, nas praças, testemunhamos o desvanecimento dos vislumbres de luz de seus últimos dias, ambientes que logo seriam varridos, arrebatados com belezas que nunca mais voltariam. Teríamos que deixá-la logo — esta cidade que para nós foi tão livre mas que iria cair completamente nas mãos de nossos inimigos. A lei cega deles já estava sendo implacavelmente aplicada, reconstruindo tudo na própria imagem deles como um cemitério: «Ó miséria! Ó aflição! Paris está trêmula».
 


Art Blakey: «Não Sussurre»

Outra mulher vagando pelas ruas.

Mais vistas de Paris.

Música termina..


Teríamos que deixá-la, mas não sem tentar tomá-la pela força bruta; tivemos que abandoná-la finalmente, depois de abandonar tantas outras coisas, para seguir a estrada determinada pelas necessidades dessa nossa estranha guerra, que nos conduziu tão longe.
 


 

 

Dois exércitos em confronto no jogo de Kriegspiel.


Nosso objetivo não foi outro senão provocar uma divisão prática e pública entre aqueles que ainda querem o mundo existente e aqueles que decidiram rejeitá-lo.
 

Outras eras tiveram seus próprios grandes conflitos, conflitos que não escolheram mas que não obstante as pessoas se viram forçadas a escolher qual lado se posicionar. Tais conflitos dominaram gerações inteiras, ao mesmo tempo em que fundaram ou destruíram impérios e suas culturas. A missão era tomar Tróia — ou defendê-la. Há uma certa semelhança entre tais momentos quando as pessoas estão à beira de separar-se em acampamentos adversários, e nunca se verem novamente.
 


Mapa do velho mundo, do Império Romano ao Império Chinês.

No começo da guerra civil estadunidense, os cadetes de West Point são preparados para continuar suas carreiras separadamente. Um juramento de lealdade à União é lido diante deles.

 
O coronel comandante da academia diz: «Qualquer oficial ou cadete que não sentir poder em boa consciência obedecer as condições deste juramento deve se alinhar a direita deste batalhão». Um oficial montado avança: «Cavalheiros do Sul, um passo à frente!». Os Sulistas fazem isso e se alinham atrás dele. O coronel manda os cadetes restantes cerrar fileiras, a banda toca «Dixie» enquanto marcham.

É um belo momento quando um assalto contra a ordem mundial começa a ser executado.
 

A Brigada Luz em formação de batalha atrás de seus porta-bandeiras começa o famoso ataque no «Vale de Morte» em Balaklava.

Desde seu quase imperceptível começo você já sabe que, haja o que houver, nada será como antes.

A carga começa lentamente, ganha velocidade, passa pelo ponto onde não mais haverá retorno, e irrevogavelmente colide com o que parecia inexpugnável: o bastião que era tão sólido e bem defendido, é também destinado a ser sacudido e mergulhado na desordem.

Foi isso que fizemos, emergindo da noite, elevando mais uma vez a bandeira da «velha boa causa» e marchando adiante sob o fogo do canhão do tempo.

 

No caminho muitos de nós morremos ou fomos levados prisioneiros; muitos outros foram feridos e permanentemente colocados fora de ação; certos elementos muitas vezes ficaram para trás por falta de coragem; mas acredito poder afirmar que nossa formação como um todo nunca se desviou de seu caminho até mergulhar no núcleo da destruição.
 



O comandande russo surpreende-se com a estranha temeridade deste ataque frontal. Canhões abrem fogo. A cavalaria, indo direto para cima deles, cai às dúzias. A Brigada Luz interrompe o galope e continua seu ataque em formação estendida. É quase que totalmente aniquilada.

Eu nunca entendi totalmente aqueles que tão freqüentemente me reprovaram por ter desperdiçado esta bela tropa em um assalto insensato, talvez até mesmo por algum tipo de auto-indulgência neroniana. Admito que fui eu quem escolheu o momento e a direção do ataque, então eu assumo toda responsabilidade por tudo o que aconteceu. Mas o que esperavam estes críticos? Supunham que nos abstivéssemos de enfrentar um inimigo que já estava em movimento contra nós? Não fui eu que sempre me colocava vários passos à frente da linha dianteira? Aqueles que nunca entram em ação gostam de acreditar que você pode livremente determinar a qualidade de seus camaradas combatentes e o tempo e o lugar onde você pode golpear em um inevitável e definitivo assalto. Mas na realidade você tem que agir com o que tem à mão, lançando um ataque súbito ou outro realistico ataque a uma posição no momento em que você vê uma oportunidade favorável; caso contrário você desfalece e não faz nada. O estrategista Sun Tzu reconheceu há muito tempo atrás que «a vantagem e o perigo são ambos inerentes à manobra». Clausewitz destaca que «na guerra nenum dos lados sabe ao certo a situação do outro. A pessoa deve estar acostumada a agir conforme as probabilidades gerais; é uma ilusão esperar por um tempo quando a pessoa estará completamente informada de tudo». A despeito das fantasias dos espectadores da história que tentam se estabelecer como estrategistas e que vêem tudo do ponto de desempate de Sirius, a teoria mais sublime nunca pode garantir um evento. Pelo contrário, é o desdobramento de um evento que pode ou não confirmar uma teoria. Riscos devem ser corridos, e você tem que pagar para ver o que vem pela frente.

Outros espectadores igualmente distantes mas menos elevados, tendo visto o fim deste ataque mas não seu começo, não tem levado em conta as diferenças entre as duas fases, e descobriu algumas falhas no alinhamento de nossas fileiras e concluiu que nossos uniformes não eram de forma alguma impecavelmente igualitários. Acho que isso pode ser atribuído ao fogo inimigo que por tanto tempo foi lançado contra nós. Na medida em que uma luta chega à sua culminação, torna-se mais importante julgar o resultado do que o comportamento. Escutar gente que parece reclamar que a batalha foi iniciada sem esperar por eles, tem como resultado principal o fato de uma vanguarda ser sacrificada e completamente pulverizada na colisão. Em minha opinião este foi precisamente o propósito deles.

As vanguardas têm apenas um tempo; e a melhor coisa que pode acontecer a elas é estimular seu tempo sem sobreviver a ele. Depois delas, as operações se movem sobre um terreno mais vasto. Muito freqüentemente vemos tais tropas de elite, após realizarem alguma façanha valorosa, passam a desfilar com suas medalhas para depois voltarem-se contra a causa que eles previamente apoiaram. Nenhum tipo de necessidade como esta atinge aqueles cujo ataque leva-os ao ponto de dissolução.

É de admirar que algumas pessoas esperem isso. A luta em si já provoca um desgaste. Um projeto histórico dificilmente pode esperar preservar a eterna juventude, protegido de todo assalto.

Objeções sentimentais são tão vãs quanto discussões pseudo-estratégicas. «Contudo seus ossos secarão distantes, enterrados nos campos de Tróia, sua missão não foi cumprida».

Na véspera da batalha o Rei Frederico II da Prússia repreendeu um exitante jovem oficial: «Cachorro! você espera viver para sempre?» E Sarpedon diz a Glaukos no Décimo Segundo Livro da Ilíada: «Meu amigo, se você e eu pudéssemos escapar desta batalha e viver para sempre, imutáveis e imortais, eu nunca lutaria novamente. . . . Mas mil mortes nos cercam e nenhum homem pode escapar dela. Assim deixe-nos preparar para o ataque».

   

Quando a poeira baixa, muitas coisas parecem mudadas. Uma era passou. Não pergunte agora que boas armas usamos: elas permanecem atravessadas na garganta do sistema de mentiras reinante. Seu ar de inocência nunca volverá.
 
Os poucos sobreviventes do 17º Lanceiros que conseguiram alcançar a bateria inimiga empurraram suas lanças no traidor que estavam procurando.

Após esta explêndida dispersão, percebi que tinha que rapidamente livrar minha pessoa de uma fama que ameaçava tornar-se muito conspícua. Sabe-se muito bem que esta sociedade assina um tipo de tratado de paz com seus inimigos mais francos concedendo-lhes um lugar em seu espetáculo. Na realidade, eu sou o único indivíduo na atualidade com alguma notoriedade negativa ou subterrânea que não foi conduzido a este grau de renúncia.
 


Navios de guerra mudam curso e passam à distância, deixando um rastro de fumaça atrás deles.

Homem atravessa esquina deserta em Veneza.

 


Conduzindo seu esquadrão, um almirante pergunta: «Quanto combustível ainda temos?» Seu capitão de bandeira responde: «Temos que interromper a luta em duas horas, senhor». O almirante olha pelo binóculo. A banda toca mais alto.

LEGENDA: «Neste momento os espectadores, já privados de tudo, ficarão sem as imagens».


As dificuldades não terminam aqui. Acho igualmente repugnante tornar-me uma autoridade em meio aos opositores desta sociedade tanto quanto ser uma pessoa dentro desta sociedade; não quero abrandar esta posição. Eu recusei tomar a frente em qualquer tipo de aventura subversiva em várias regiões diferentes, cada uma mais antihieráquica que a outra, e nunca ofereci meu comando com base em meu talento e experiência nesse campo. Eu quis mostrar que é possível alguém alcançar um pouco de sucesso histórico e ainda permanecer tão pobre em poder e prestígio como antes (o que usei em um nível puramente pessoal desde o princípio sempre me bastou).

Também recusei polemizar com os numerosos intérpretes e cooptadores em torno dos mil detalhes daquilo que já estava feito. Não tive nenhum interesse em diplomas de distinção de qualquer tipo de ortodoxia fantasiosa, nem em julgamentos em torno de ambições ingênuas diversas que por si só já desmoronaram. Estas pessoas não percebem que o tempo não espera; que boas intenções não bastam; e que nada pode ser granjeado nem assegurado a partir de um passado que não mais pode ser retificado. O movimento essencial que levará nossas lutas históricas até onde elas podem ir permanece o juiz exclusivo do passado — a medida que tal movimento continua agindo em seu próprio tempo. Eu administrei as coisas de forma a impedir que qualquer pseudo-continuação falsificasse a história de nossas operações. Aqueles que eventualmente fazem estão melhor qualificados para comentar seus antecessores, e tais comentários não passarão desapercebidos.

 
TELA FICA ESCURA.

Encontrei modos de intervir fora do comum, permanecendo atento quando, como sempre, a maioria de observadores teria preferido muito que eu ficasse calado. Eu me esforcei muito tempo para manter uma existência obscura e evasiva, e isto me habilitou para desenvolver ainda mais meus experimentos estratégicos, que já tinham começado tão bem. Como alguém não sem habilidades uma vez destacou, este é um campo onde ninguém consegue em momento algum tornar-se um perito. Os resultados destas investigações — e estas são as únicas boas notícias na presente comunicação — não serão apresentadas na forma cinematográfica.
 
Detalhes das batalhas de Kriegspiel.

Mas todas as idéias são inevitavelmente vãs quando já não pode ser achada a grandeza da existência de cada dia — os trabalhos completos dos pensadores canil-criados que comercializaram este estágio da decomposição mercadológica não conseguem disfarçar o gosto pela forragem na qual eles foram criados. Foi por isso que passei esses anos morando em um país onde era pouco conhecido. O arranjo espacial de uma das melhores cidades que já existiram, e a companhia de certas pessoas, e o que fizemos com o nosso tempo — tudo isso compõe a cena do mais feliz deleite de minha mocidade.
 


Velho oficial do Exército Britânico da Índia, anuncia alguma neo-bebida.

No meio de um rico painel de madeira trabalhada, uma garrafa de uma das miseráveis neo-cervejas produzidas pelos mais recentes processos químicos-industriais.

Vista aérea de Florença quando era uma cidade livre.


Alice e Celeste.

Celeste nua.


Nenhures busquei uma sociedade pacífica — o que é ditoso, mesmo porque nunca encontrei nenhuma. Sou amplamente caluniado na Itália onde sou tido como um terrorista. Mas sou bem indiferente às acusações mais diversas porque tem sido minha sina provocá-los onde quer que eu vagasse, e eu sei por que. A única coisa de importância para mim foi o que me cativou naquele país e que não poderia encontrar em nenhum outro lugar.
 
Foto aérea de Florença, de Oltrarno até Signoria.

Vejo-a novamente, ela era como uma estranha em sua própria cidade. («Cada um de nós é um cidadão de uma cidade de verdade; mas em seu significado, sou alguém que passou seu exílio terrenal na Itália»). Vejo novamente «os bancos de areia do Arno, cheios de despedidas».

E eu também, como tantos outros, fui banido de Florença.
 


Uma mulher florentina.

Foto aérea de Florença, vista do Rio Arno.

   


Art Blakey: «Não Susurre».

Rosto de Celeste; outra jovem nua.

Música termina.


Em todo caso, a pessoa atravessa uma era como atravessa o promontório de Dogana — quer dizer, bem depressa.
 



Promontório Dogana visto de um barco.


No começo, na medida em que se aproxima, você não nota nada. Então você descobre algo em sua frente, e você reconhece que esse algo foi projetado para ser visto de um modo particular e de nenhum outro. Mas já estamos além da capa, deixando-a para trás, e mergulhando em águas desconhecidas.
 

«Quando éramos jovens procurávamos pelos mestres, e tínhamos grande orgulho em aprender seus ensinos. Mas no que deu tudo isso? Nós derramamos como água e sopramos como o vento».
 


Foto de um grupo de dadaistas

Cardeal Retz. General von Clausewitz. Avião metralha tropas que há pouco pousaram na praia; as tropas se espalham.

 

 

 
Os anos passaram e todos os personagens de As Crianças do Paraíso ficaram famosos de uma maneira ou de outra. Lacenaire e Garance se encontram novamente. Ela lhe pergunta: «Diga-me, o que aconteceu com você?». Ele responde: «Eu fiquei famoso. Eu cometi alguns pequenos crimes que criam uma real sensação -- o nome Lacenaire encheu as páginas das crônicas judiciais mais de uma vez». Garance sorri: «Isso é glória, Pierre-François». Lacenaire: «Sim, é um começo. Mas dá tudo no mesmo, se pudesse eu teria preferido um deslumbrante sucesso literário».

Em um espaço de vinte anos você pode realmente viver em apenas um pequeno número de casas. Aquelas em que morei foram bem pobres, mas sempre foram bem situadas. Foram admitidos apenas aqueles que o mereceram; o resto não passou da porta. A liberdade tem poucos locais onde possa se abrigar.
 


Casa no Impasse de Clairvaux. Outra na Rue Saint-Jacques. Outra na Rue Saint-Martin.

Outra nas colinas de Chianti.

Outra em Florença. Outra nas montanhas de Auvergne.


«Onde estão aqueles alegres companheiros dos velhos tempos?» Estão mortos; outros viveram mais intensamente, até que os portões férreos da loucura se fechassem com um estrondo.
 


Ghislain de Marbaix.

Robert Fonta. Asger Jorn.

Quadrinho: Príncipe Valente subjugado por guardas

 

 

 

Enchained na prisão em Les Visiteur du Soir, Gilles canta: «tristes crianças perdidas, vagamos pela noite. Onde estão as flores do dia, os prazeres do amor, as luzes da vida? Tristes crianças perdidas, vagamos pela noite. A astúcia do diabo nos carregou para bem longe, para bem longe daqueles que amamos. Nossa jovial mocidade foi-se embora, assim como nossos amores». Depois das primeiras duas orações, a trilha sonora da canção continua em cima das seguintes imagens: uma mulher desconhecida; a Brigada Luz (em um velho filho recuperado) batalhas a cavalo; uma namorada antiga; outra atual; outras do passado.

A sensação do transcorrer do tempo sempre foi vívida para mim, e eu fui atraído por ela da mesma maneira que outros são fascinados pelas alturas vertiginosas ou pela água. Neste sentido eu amei minha época que viu o fim de toda segurança existente e a dissolução de tudo o que era socialmente ordenado. Estes foram os prazeres que a prática da maior arte jamais me dariam.
 


Debord aos dezenove anos.

Aos vinte e dois.

Aos vinte e sete.

Aos trinta e um.


Aos quarenta.

O último auto-retrato de Rembrandt.


Diante do que fizemos, como poderia o resultante presente ser avaliado? A paisagem que agora atravessamos foi devastada por uma guerra que esta sociedade empreende contra si mesma, contra suas próprias potencialidades. A feiúra de tudo provavelmente foi o preço inevitável do conflito. Se começamos a ganhar, é porque o inimigo foi longe demais com seus erros.
 


Fileira de torres gigantescas ao redor da velha Paris.

Visões da neo-Paris atual e de outras paisagens saqueadas por causa da abundância de mercadorias.


A questão mais fundamental nesta guerra, para a qual tantas explicações enganadoras são dirigidas, é que é não se trata mais de uma luta entre o conservantismo e a mudança; trata-se de uma luta sobre qual tipo de mudança haverá. Nós, mais que quaisquer outros, fomos as pessoas da mudança em um tempo de mudanças. Os donos da sociedade para manter a posição deles, foram obrigados a se esforçar para uma mudança que era oposta à nossa. Quisemos reconstruir tudo e assim eles fizeram, mas em direção diametralmente oposta. O que eles fizeram foi uma óbvia negação da natureza de nosso próprio projeto. Seus imensos trabalhos resultaram em nada mais que depravação. Seu ódio à dialética conduziu-os para este lixão.
 


 

 

 

 

 

 

 

 

Depósito de modernos refugos industriais.


Tivemos que destruir (e tivemos boas armas para fazê-lo) qualquer ilusão de diálogo entre estas perspectivas antagônicas. Então os fatos falariam por si próprios. E eles tem falado.
 
Tropas escocesas desembarcam ao som de gaitas de foles.

Ficou incontrolável, este solo improdutivo onde novos sofrimentos são disfarçados com o nome de velhos prazeres e onde as pessoas têm tanto medo. Elas perambulam pela noite, consumidas pelo fogo. Elas acordam alarmadas e às apalpadelas procurado vida. E a voz que ecoa ao redor diz que aqueles que expropriam a vida acabarão perdendo as suas próprias.
 
Destruição e fogo a bordo um navio de guerra; feridos são retirados.

Um enorme conjunto de neo-habitações

Esta civilização está em chamas; a coisa inteira está emborcando e afundando. Que belo tiro!
 
Um couraçado de guerra tomba e afunda.

Quanto ao que este colapso apavorante tem a ver comigo — deste naufrágio que eu acredito ter sido necessário, poder-se-ia até mesmo dizer que eu trabalhei para que ele acontecesse, que mais poderia fazer desde então?
 
Debord.

Eu poderia aplicar aqui o que um poeta do período de T'ang escreveu — «Apartando-se de um Companheiro de Viagem» — sobre este momento de minha própria história?
 
Um mexicano passa a cavalo, conduzindo um segundo cavalo que leva sua bagagem, e desce em direção a um rio.

«Desmontando de meu cavalo, eu lhe ofereci o vinho do adeus e lhe perguntei para onde ia. Ele respondeu: ‘não fui bem sucedido nos negócios mundanos, assim estou voltando às montanhas do sul em busca de repouso'».
 


Mapa das montanhas de Auvergne.

Vista anterior de Auvergne, desta vez coberta de neve.


Mas não, eu posso ver com suficiente clareza que para mim não haverá nenhum repouso; em primeiro lugar porque ninguém me deu a honra de pensar que eu não tive sucesso nos negócios mundanos. Mas felizmente ninguém poderia dizer que eu tive êxito em tais negócios, tampouco. Tem que ser admitido pois que não houve nem sucesso nem fracasso para Guy Debord e para suas extravagantes pretensões.
 


Vista de um barco no canal de Veneza.

 


Este exaustivo dia que vemos agora chegar ao fim, já despontava quando o jovem Marx escreveu a Ruge: «Não diga que eu penso muito além desse nosso tempo. Contudo, se eu não entro em desespero, é porque sua própria situação desesperadora me enche de esperança».

Preparando uma era para uma viagem pelas águas frias da história, de forma alguma sufoquei estas paixões, das quais eu apresentei tão belos e tristes exemplos.

   

Como reflexão final, a violência continuará manifesta e para mim não há meia-volta nem reconciliação.
 
Após as últimas casas no canal, surge uma vasta área seca.

Nenhuma sensatez em cima, nenhuma ordem em baixo.
 
    SUBTÍTULO: Voltar ao princípio.

 


Nova tradução para o português do manuscrito e trilha sonora do filme de Guy Debord, in girum imus nocte et consumimur igni (1978).

O manuscrito completo (em inglês) deste filme, com ilustrações, descrições detalhadas das imagens, e extensas anotações, tudo isso pode ser visto no livro Complete Cinematic Works de Debord (AK Press, 2003). Para mais informações, veja Guy Debord’s Films.

(Livre para uso pessoal e não comercial)


Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord

INTRODUÇÃO

SCRIPTS
Uivos para Sade (1952)
No Caminho de Algumas Pessoas por um Curto Período de Tempo (1959)
Crítica da Separação
(1961)
A Sociedade do Espetáculo filme (1973)
Refutação de Todos os Julgamentos, Pró ou Contra, Sobre o Filme A Sociedade do Espetáculo (1975)
In girum imus nocte et consumimur igni (1978)


DOCUMENTOS
deturnação: Guia para Usuários
Notas Técnicas dos Primeiros Três Filmes
Carta sobre Passagem
Por um Julgamento Revolucionário da Arte
Na Sociedade do Espetáculo (resposta a uma crítica do livro)
Cinema e Revolução
Na Sociedade do Espetáculo (lançamento do filme)
O Uso de Filmes Roubados
Temas de In girum
Instruções para o Engenheiro de Som de In girum
Introdução à Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord



O texto acima foi traduzido por Railton Sousa Guedes
Fonte consultada: http://www.bopsecrets.org/  



OUTROS ESCRITOS DE DEBORD (versões retiradas de http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 e adaptadas)

A Sociedade do Espetáculo
Panegírico


Dossiê Situacionista e textos de Debord publicados pela Biblioteca Virtual Revolucionária

Dossiê Internacional Situacionista

Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana


Teses sobre a revolução cultural

Introdução a uma crítica da geografia urbana


Texto de Phil Baker

Cidade Secreta: Psicogeografia e Devastação de Londres -- Um Ensaio de Phil Baker


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railtong@g.com