Título: POR UM JULGAMENTO REVOLUCIONÁRIO DA ARTE
Autor: Guy Debord
Data: 1961
Descrição:
Guy Debord escreve sobre arte
Palavras-chave: França, Maio de 68, Situationistas
Linguagem: Português
Material Relacionado: Traduzido da versão inglesa de Ken Knabb disponível em http://bopsecrets.org

 

 

Por um Julgamento
Revolucionário da Arte

 

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O artigo de Chatel sobre o filme de Godard [Breathless] em Socialismo ou Barbárie #31 [fevereiro de 1961] pode ser caracterizado como uma crítica cinematográfica dominada por preocupações revolucionárias. A análise do filme assume uma perspectiva revolucionária na sociedade, confirma tal perspectiva, e conclui que certas tendências de expressão cinematográfica deveriam ser consideradas preferíveis a outras em relação ao projeto revolucionário. Isso obviamente ocorre em virtude da crítica de Chatel abordar a questão em toda sua plenitude, em vez de meramente apenas debater várias questões de preferência, o que é interessante e chama ao debate. Especificamente, Chatel encontra em Breathless um «valioso exemplo» em apoio à sua tese de que uma alteração «nas formas presentes da cultura» depende da produção de obras que ofereçam as pessoas «uma representação de sua própria existência».

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Uma alteração revolucionária das formas presentes de cultura não pode ser nada menos que a substituição de todos os aspectos do aparato estético e tecnológico que constitui a agregação de espetáculos separados da vida. Isso não significa que deveríamos superficialmente procurar relacionar um espetáculo aos problemas da sociedade, mas em um nível mais profundo, relacionar o plano de sua função enquanto espetáculo. «A relação entre autores e espectadores é não apenas uma transposição da relação fundamental entre diretores e executantes.... A relação espetáculo-espectador é por si só uma permanente coluna da ordem capitalista» (Preliminaries Toward Defining a Unitary Revolutionary Program).

        Ninguem deve ter ilusões reformistas sobre o espetáculo, como algo que pode eventualmente ser melhorado de dentro para fora, aperfeiçoado por seus próprios especialistas sob um suposto controle de uma opinião pública bem-informada. Fazer isso equivaleria a dar aos revolucionários a aprovação de uma tendência, ou aparencia de tendencia, um jogo que nós absolutamente não devemos participar; um jogo que temos que rejeitar inteiramente em nome das exigências fundamentais do projeto revolucionário, que não pode de forma alguma produzir qualquer estética pois já está completamente além do domínio estético. A questão não é engajar-se em algum tipo de crítica artística revolucionária, mas fazer uma crítica revolucionária da arte como um todo.

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A conexão entre a predominância do espetáculo na vida social e a predominância de uma classe governante (ambas baseadas na contraditória necessidade de uma aderência passiva) não é um mero paradoxo estilístico habilidoso. É uma correlação efetiva que objetivamente caracteriza o mundo moderno. É aqui que a crítica cultural oriunda da experiência da completa autodestruição de arte moderna se encontra com a crítica política oriunda da experiência da destruição do movimento dos trabalhadores efetuada por suas próprias organizações alienadas. Se alguém realmente teimar em achar algo positivo na moderna cultura, deve ser dito que seu único aspecto positivo repousa em seu autoliquidação, seu esvaziamento, seu testemunho contra si mesmo.

        De um ponto de vista prático, a que está em debate aqui é a relação entre a organização revolucionária e os artistas. A deficiência das organizações burocráticas e de seus membros na formulação e no uso de tal relação é bem conhecida. Mas parece que uma consciente e coerente política revolucionária têm que efetivamente unificar estas atividades.

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A maior fraqueza da crítica de Chatel está precisamente no fato dele assumir desde o começo, sem aludir nem mesmo à possibilidade de qualquer debate sobre o assunto, que há uma radical separação entre o criador de qualquer obra de arte e a análise política que poderia ser feita dela. A análise que Chatel faz de Godard é um exemplo particularmente notável desta separação. Considerando que o próprio Godard permanece acima de qualquer julgamento político, Chatel nunca se cansa de dizer que Godard não criticou explicitamente «o delírio cultural no qual nós vivemos» e que não pretendeu deliberadamente «confrontar as pessoas com suas próprias vidas». Godard é tratado como um fenômeno natural, um artefato cultural. Não se concebe a possibilidade de Godard ter posições políticas, filosóficas ou outras que as pessoas adotam ao investigar a ideologia de um furação.

        Tal crítica se ajusta perfeitamente à esfera da cultura burguesa — particularmente em seu setor de «crítica da arte» — obviamente compondo o «dilúvio de palavras que camuflam cada aspecto da realidade». Esta crítica é uma interpretação, entre muitas outras, de um trabalho onde não temos qualquer função. O crítico assume desde o princípio que ele sabe melhor que o próprio autor aquilo que o autor pretende. Esta vaidade aparente é na realidade uma extrema humildade: o crítico aceita tão completamente sua separação do especialista artístico em questão que perde a esperança de poder atuar nele ou com ele (o que obviamente requer levar em conta aquilo que o artista estava explicitamente buscando).

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A crítica de arte é um espetáculo em segundo grau. O crítico é alguém que faz um espetáculo dentro de sua condição de espectador — um espectador especializado e portanto ideal, que expressa suas idéias e sentimentos sobre uma obra na qual ele realmente não participa. Ele reapresenta, remonta, sua própria não-intervenção no espetáculo. A debilidade do acaso e os fragmentários julgamentos largamente arbitrários relativos a espetáculos que realmente não nos interessam é descarregado em cima de nós na forma de muitas discussões banais sobre a vida privada. Mas o crítico de arte faz um espetáculo deste tipo de debilidade, apresentando-o como modelar.

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Chatel acredita que se uma porção da população vê a si mesma em um filme, será capaz de «reconhecer-se, admirar-se, criticar-se ou rejeitar-se — e em todo caso, usar as imagens que a tela passa para suas próprias necessidades». Antes de mais nada notamos um certo mistério nesta noção de usar tal fluxo de imagens para satisfazer necessidades autênticas. Parece ser necessário primeiro especificar que necessidades estão em jogo de forma a determinar se estas imagens podem realmente servir como meio de safisfazê-las. Além disso, tudo que sabemos sobre o mecanismo do espetáculo, até mesmo no nível cinematográfico mais simples, contradiz absolutamente esta visão idílica de pessoas igualmente livres admirando ou criticando a si mesmas, reconhecendo-se nos caracteres de um filme. Mas fundamentalmente, é impossível aceitar esta divisão do trabalho entre especialistas incontroláveis que apresentam uma visão da vida das pessoas para elas e audiências que têm que reconhecer-se mais claramente nessas imagens. Atingir uma certa precisão na descrição do comportamento das pessoas não é algo necessariamente positivo. Mesmo com Godard apresentando as pessoas numa imagem delas mesmas onde possam inegavelmente reconhecer-se mais que nos filmes de Fernandel, ele os apresenta não obstante com uma falsa imagem na qual eles se reconhecem falsamente.

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Revolução não é «mostrar» vida para as pessoas, mas trazê-las à vida. Uma organização revolucionária sempre tem que se lembrar que seu alvo não é fazer com que seus partidários escutem as convincentes palestras de líderes especialistas, mas conseguir fazê-los falar por si mesmos, para que alcancem, ou pelo menos se esforcem por alcançar, um mesmo patamar de participação. O espetáculo cinematográfico é uma das formas de pseudo-comunicação (desenvolvida, em detrimento de outras possibilidades, pela presente classe tecnológica) na qual tal alvo é radicalmente inatingível. Bem mais do que, por exemplo, na forma cultural da conferência estilo-universidade com perguntas ao final, em que o diálogo e a participação da audiência, apesar de submetida a condições bastante desfavoráveis, não é completamente excluída.

        Qualquer um que alguma vez viu um debate de cine-clube notou imediatamente as linhas divisórias entre o líder da discussão, os aficionados que regularmente falam em toda reunião, e as pessoas que apenas ocasionalmente expressam seus pontos de vista. Estas três categorias estão claramente separadas pelo grau de domínio do vocabulário especializado que determina seus lugares dentro desta discussão institucionalizada. Informações e infuências são transmitidas de forma unilateral, do topo para a base, nunca da base para o topo. Não obstante, estas três categorias estão bem próximas entre si em sua comum e confusa ineficácia como espectadores fazendo seu próprio espetáculo em relação à verdadeira linha que os separa das pessoas que de fato fazem os filmes. A unilateralidade da influência ainda é mais rígida em relação a esta divisão. As consideráveis diferenças entre os vários espectadores peritos em ferramentas conceituais de debates de cine-clubes são no final das contas reduzidas pelo fato de que essas ferramentas são todas igualmente ineficazes. Um debate de cine-clube é um sub-espetáculo associado ao projeto do filme; é mais efêmero do que a crítica escrita, mas nem mais nem menos separado. Uma discussão de cine-clube é aparentemente uma tentativa a diálogo, um encontro social, de indivíduos crescentemente isolados pelo ambiente urbano. Mas é de fato uma negação do diálogo uma vez que as pessoas não se juntam para decidir sobre nada, mas para sustentar uma discussão sob um falso pretexto e com falsos meios.

8

Sem considerar seus efeitos externos, a prática deste tipo de crítica cinematográfica apresenta de imediato dois riscos para uma organização revolucionária

        O primeiro perigo é que certos camaradas podem ser conduzidos a formular outras críticas expressando seus diferentes julgamentos sobre outros filmes, ou até mesmo deste. Partindo das mesmas posições concernentes à sociedade como um todo, o número de possíveis julgamentos diferentes de Breathless, embora obviamente não ilimitados, é não obstante bem grande. Só para dar um exemplo, alguém poderia fazer uma crítica com o mesmo talento de Chatel, expressando exatamente as mesmas políticas revolucionárias, mas tentando expor a própria participação de Godard em um setor inteiro da mitologia cultural dominante: o do próprio cinema (tomadas do tête-à-tête com a fotografia de Humphrey Bogart, detalhe do Café Napoléon). Belmondo — no Champs-Élysées, no Café Pérgula, na esquina da Rua Vavin — poderia ser considerado a imagem (largamente irreal, naturalmente, «ideologizada») que a micro-sociedade dos editores do Cahiers du Cinéma (e até mesmo toda a geração de diretores franceses que emergiram nos anos cincoenta) projetaram de sua própria existência; com seus sonhos mesquinhos de sub-espontaneidade ostentada; com seus gostos, suas reais ignorâncias, mas também seus entusiasmos culturais.

        O outro perigo seria a impressão que a exaltação proporcionada por Chatel do valor revolucionário de Godard pudesse levar outros camaradas a opor-se a qualquer discussão de assuntos culturais simplesmente para evitar o risco da falta de seriedade. Pelo contrário, o movimento revolucionário tem que outorgar um lugar central à crítica da cultura e da vida cotidiana. Mas qualquer exame destes fenômenos deve ser em primeiro lugar desabusado, não respeitoso para com determinados meios de comunicação. As verdadeiras bases das relações culturais existentes devem ser contestadas pela crítica que o movimento revolucionário precisa fazer para realmente trazer à tona e afetar todos os aspectos da vida e das relações humanas

GUY DEBORD
1961


Traduzido por Railton Sousa Guedes a partir da versão inglesa de Ken Knabb (versão ligeiramente modificada da versão constante na Antologia Internacional Situacionista).

Livre para uso pessoal sem fins comerciais desde que citada a fonte.

 

 


 

Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord

INTRODUÇÃO

SCRIPTS
Uivos para Sade (1952)
No Caminho de Algumas Pessoas por um Curto Período de Tempo (1959)
Crítica da Separação
(1961)
A Sociedade do Espetáculo filme (1973)
Refutação de Todos os Julgamentos, Pró ou Contra, Sobre o Filme A Sociedade do Espetáculo (1975)
In girum imus nocte et consumimur igni (1978)


DOCUMENTOS
Deturnação: Guia para Usuários
Notas Técnicas dos Primeiros Três Filmes
Carta sobre Passagem
Por um Julgamento Revolucionário da Arte

Na Sociedade do Espetáculo (resposta a uma crítica do livro)
Cinema e Revolução
Na Sociedade do Espetáculo (lançamento do filme)
O Uso de Filmes Roubados
Temas de In girum
Instruções para o Engenheiro de Som de In girum
Introdução à Obra Cinematográfica Completa de Guy Debord


Dossiê Situacionista e textos de Debord publicados pela Biblioteca Virtual Revolucionária

Dossiê Internacional Situacionista

Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana


Teses sobre a revolução cultural

Introdução a uma crítica da geografia urbana



OUTROS ESCRITOS DE DEBORD (versões retiradas de http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 e adaptadas)


A Sociedade do Espetáculo
Panegírico


Texto de Phil Baker

Cidade Secreta: Psicogeografia e Devastação de Londres -- Um Ensaio de Phil Baker



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railtong@g.com