Biografia - Parte 2 | Cronologia | Opiniões de Peso | Cartas | Verso & Prosa |
AQUELE ANJO FEROCÍSSIMO RISCANDO DE AZUL A LINHA DOS CAMPOS
As célebres cartas de Maio de 1871, conhecidas dos especialistas rimbaldianos por lettres du voyant, são dos mais impressionantes documentos programáticos da história da literatura e, seguramente, a primeiríssima referência para uma abordagem crítica da obra do autor de Illuminations. Rimbaud tinha então dezessete anos ("On n'est pas serieux, quand on a...") e, meses atrás, fugira da casa materna e da sua cidadezinha natal de Charleville, nas Ardenas. Filho de uma família pequeno-burguesa (seu pai era capitão do exército, fez a guerra da Crimeia e bem cedo abandonaria por completo a família), vivera aí a infância numa habitação modesta de um bairro popular. A pé, de comboio, o jovem Arthur chegou a Paris, passando por Charleroi, e logo se fez prender à saída da gare por não ter bilhete nem dinheiro. Encarcerado na prisão de Mazas, seria libertado por influência de Georges lzambard (seu professor de Retórica no Colégio de Charleville, tornara-se aí cúmplice e confidente do jovem) que o convida a passar uns tempos em casa de umas suas tias em Douai. Foi aí que Arthur re-copiou todos os seus poemas para um caderno, a fim de os confiar a Paul Demeny, poeta sem interesse, que tinha então aos olhos de Rimbaud um enorme prestígio devido ao fato de ser o único autor publicado que conhecia pessoalmente.
como possíveis redentoras da civilização européia por si execrada. Est-elle almée?..., que escolhemos para encerrar este conjunto, é um
poema cuja transparente beleza, mesmo desbotada pela tradução, continua a
dispensar qualquer especial precisão analítica.
Vale talvez a pena referir, para terminar, que quando se pronuncia o nome
Rimbaud não se invoca nenhuma figura clássica de poeta, fosse ela sequer a de
uma busca acerada da modernidade, puro gesto inaugural que o legitimasse como
apadrinhador crônico de toda a vanguarda e vanguardice letrada. Muitos outros o
excederam no caudal da obra, na perfeição da forma e até em arrojo inovador. A
história da literatura poderia talvez ignorá-lo sem sofrer dano de maior com
isso. Rimbaud é uma demanda metafísica, um crime primordial, uma premente e
irreprimível exigência de renovados horizontes éticos e estéticos. Esse mesmo
sopro de intransigente liberdade na manhã do mundo. A palavra, nele, é muito
mais vivida e comungado, no sentido dos profetas, de Cristo (com quem manteve
aliás um áspero diálogo que daria origem a enormes equívocos, tal a teoria
claudeliana do "místico em estado selvagem") ou de Zaratustra, do que matéria e
instrumento de cultura. Talvez não fosse enfim mais do que uma criança
embriagada de azul, caminhando sempre, ferozmente obstinada em esmagar os seus
olhos sob o peso de tudo o que luz e vive e é puro revestindo o instante.
São desconhecidas quaisquer respostas a estas cartas do visionário. Supõe-se que os seus destinatários as ajuizaram como um amontoado de elucubrações sem qualquer sentido.
Ângelo Novo
Charleville, [13] de Maio de 1871
Caro Senhor:
Eis-vos de novo professor. Devemo-nos à sociedade, dissésteis-me vós; fazeis parte do corpo dos docentes: seguis por caminhos experimentados. -Também eu sigo o princípio: cinicamente, faço-me sustentar; desencaminho alguns imbecis antigos do colégio: tudo o que possa inventar de mais estúpido, porco e reles, por palavras ou ações, a eles o deixo: pagam-me com canecas e miúdas - Stat mater dolorosa, dum pendet filius, - Devo-me à sociedade, é justo, - e tenho razão. -Também vós tendes razão, por hoje. No fundo, vós nada vedes em vosso princípio senão poesia subjetiva: a vossa obstinação em retomar a manjedoura universitária - perdão- prova-o. Mas acabareis sempre como um satisfeito que nada fez, nada tendo querido fazer. Além de que a vossa poesia subjetiva será sempre horrivelmente fastidiosa. Um dia, espero, - muitos outros esperam a mesma coisa - verei no vosso princípio a poesia objetiva, vê-la-ei mais sinceramente que vós próprio a fareis! - Serei um trabalhador: é a idéia que me retém, quando a louca cólera me empurra para a batalha de Paris - onde tantos trabalhadores morrem agora mesmo que vos escrevo. Trabalhar agora, nunca, nunca; estou em greve.
Agora, mergulho na maior devassidão possível. Porquê? Quero ser poeta e trabalho para me tornar visionário: vós não compreendeis nada e eu não sei se saberei explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes mas é preciso ser-se forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer-se: eu penso. Deveria dizer- se: sou pensado. - Desculpe o trocadilho. -
Eu é um outro. Tanto pior para a madeira que se descobre violino e zomba dos inconscientes que discreteiam sobre aquilo que pura e simplesmente ignoram. Não sois Mestre para mim. Dou-vos isto: será uma sátira como vós diríeis? É poesia? Fantasia, é-o sempre. - Mas, suplico-vos, não a sublinheis com o lápis nem - demasiado - com o pensamento:
Coração Supliciado
(..................................)
Isto não quer dizer nada. - RESPONDA-ME: para casa do sr. Deverrière, para A. R.
Saúdo-o, de todo o coração,
Art. Rimbaud
Para PAUL DEMENY em Douai
Charleville, 15 de Maio de 1871
Resolvi dar-vos uma hora de literatura nova; começo de imediato com um salmo de atualidade:
Canto de Guerra Parisiense
(................................................)
Eis agora alguma prosa sobre o futuro da poesia -
Toda a poesia antiga desemboca na poesia grega; Vida harmoniosa. Da Grécia ao movimento romântico, - Idade Média, - há alguns letrados, alguns versificadores. De Ennius a Theroldus, de Theroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, relaxamento e glória de inúmeras gerações de idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. -Tivessem-lhe soprado sobre as rimas, baralhado os hemistáquios, e o Divino Idiota seria hoje tão desconhecido como o primeiro vindo, autor de Origens (1). -Após Racine, o jogo criou bolor. Durou dois mil anos!
Nem zombaria, nem paradoxo. A razão inspira-me mais certezas sobre esta matéria que fúrias teria tido um Jeune-France (2). De resto, os novos! têm por regra a liberdade de execrar os avoengos: estamos à vontade e temos tempo livre.
Nunca se julgou adequadamente o romantismo; quem o teria julgado? Os críticos!! Os românticos, que provam tão bem ser a canção raramente a obra, quer dizer o pensamento cantado e compreendido, do cantor?
Porque Eu é um outro. Se o cobre se descobre clarim, não há aí nada de culpa sua. Isso é evidente para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: vejo-a, escuto-a: lanço um movimento com o arco: a sinfonia vai abalando as profundezas, ou salta de repente para o palco.
Se os velhos imbecis não tivessem encontrado do Eu apenas a significação falsa, não tínhamos que varrer esses milhões de esqueletos que, desde há um tempo infinito!, acumularam os produtos da sua inteligência vesga, proclamando-se autores!
Na Grécia, já o disse, versos e liras ritmam a Ação. Depois, música e rimas são jogos, refrigério. O estudo deste passado encanta os curiosos: muitos aprazem-se a renovar estas antiguidades: - é para eles. A inteligência universal sempre arremessou as suas idéias com naturalidade; os homens recolhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se em conformidade, escreviam-se livros: tal era o sentido das coisas, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto ou não ainda mergulhado na plenitude do grande sonho. Funcionários, escreventes: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!
O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, Inspeciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-la; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! - Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos (3), pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto.
Digo que é necessário ser visionário, fazer-se visionário.
O Poeta faz-se visionário por um prolongado, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele próprio procura, esgota em si todos os venenos para deles guardar apenas as quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a sobre-humana força, em que ele se torna entre todos o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! - Pois ele atinge o desconhecido! Uma vez que cultivou a sua alma, já de si rica como nenhuma! Ele atinge o desconhecido e, acaso, enlouquecido, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-á visto! Que ele estoire no seu sobrevôo pelas coisas inauditas e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!
- A seqüência dentro de seis minutos -
Aqui intercalo um segundo salmo fora do texto: queira dispensar um ouvido complacente, - e toda a gente ficará encantada. - Tenho o arco na mão, começo:
As Minhas Pequenas Apaixonadas
(..........................................................)
Pronto. E repare bem que se eu não receasse fazer-vos desembolsar mais de 60 c. de portes, - eu, pobre assombrado, que desde há sete meses não embolso uma única moeda de bronze! - enviar-vos-ia ainda os meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, caro senhor, e a minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros! -
Retomando:
É pois o poeta, verdadeiramente, ladrão de fogo.
Ele tem a seu cargo a humanidade, os animais mesmo; deve fazer sentir, palpar, escutar as suas invenções; se aquilo que ele transmite de lá tem forma, ele dá a forma; se é informe, ele dá o informe. Achar uma língua;
- De resto, sendo toda a palavra uma idéia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser-se acadêmico - mais morto que um fóssil, - para compilar um dicionário, seja de que língua for. Um ser fraco que se meta a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, e poderá rapidamente precipitar-se na loucura! -
Esta língua será de alma para alma, compreendendo tudo, perfumes, sons, cores, o pensamento enganchado no pensamento, desfiando-o. O poeta definiria a quantidade de desconhecido despertando em seu tempo na alma universal: ele daria mais - que a fórmula do seu pensamento, que a marcação da sua marcha para o Progresso. Enormidade tornando-se norma, absorvida por todos, ele será verdadeiramente um multiplicador de progresso!
Este futuro será materialista, bem o vedes. - Sempre repletos do Número e da Harmonia, estes poemas serão feitos para permanecer. - No fundo, será ainda um pouco a Poesia grega.
A arte eterna teria as suas funções; assim como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a ação; ela estará na dianteira.
Estes poetas serão! Quando for quebrada a infinda servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem, - até aqui abominável, - tendo-lhe rendido a vez, ela será poeta, também ela! A mulher penetrará no desconhecido! Os seus mundos de idéias diferirão dos nossos? - Ela achará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós toma-las-emos, nós compreendê-las-emos.
Entretanto, exijamos aos poetas o que for de novo, - idéias e formas. Todos os habilidosos pensariam rapidamente ter já satisfeito esta exigência. - Não é isso!
Os primeiros românticos foram visionários sem disso se darem bem conta; o cultivo de suas almas começou nos acidentes: locomotivas abandonadas, mas a queimar, que a espaços retomam ainda os carris. - Lamartine é por vezes visionário, mas a forma velha estrangula-o. - Hugo, por demais cabeçudo, soube bem ver nos seus últimos volumes; Os Miseráveis são um verdadeiro poema. Folheio Os Castigos; Stella oferece mais ou menos o alcance da vista de Hugo. Demasiado Belmontet e Lamennais, demasiados Jéhovahs e colunas, velhas enormidades perimidas.
Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas de visões, - que a sua preguiça de anjo insultou! Oh! os contos e os provérbios fastidiosos! oh as noites! oh Rolla (4), oh Namouna, oh a Coupe! tudo é francês, quer dizer detestável no supremo grau; francês, não parisiense! Ainda uma obra desse odioso gênio que havia já inspirado Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentado pelo Sr. Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Encantador, o seu amor! Eis aí pintura sobre esmalte, poesia sólida! Saborear-se-á durante muito tempo a poesia francesa, mas em França. Qualquer rapaz talhista está à altura de desbobinar uma apóstrofe Rollastra, qualquer seminarista transporta as suas quinhentas rimas no segredo de um canhenho. Aos quinze anos, estes impulsos de paixão põem os jovens a uivar à lua; aos dezesseis anos, eles contentam-se já em recitá-los com coração; aos dezoito anos, aos dezessete anos mesmo, todo o colegial dispondo dos meios, faz o Rolla, escreve um Rolla! Talvez alguns ainda morram disso. Musset não soube fazer nada: tinha lá algumas visões por detrás da gaze dos cortinados: fechou-lhes os olhos. Francês, Pavoneador, arrastado do botequim para as estantes das escolas, o belo morto está morto e, agora, não nos demos sequer ao trabalho de o despertar com as nossas abominações!
Os segundos românticos são bem visionários: Th. Gautier, Leconte de Lisle, Th. de Banville. Mas sendo a prospecção do invisível e a escuta do inaudito coisas diversas de retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro visionário, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Ainda viveu porém num meio demasiado artista; e a forma, que lhe é tão louvada, é mesquinha: as invenções de desconhecido reclamam formas novas.
Afeitos às velhas formas, entre os inocentes, A. Renaud, - criou o seu Rolla; - L. Grandet, - criou o seu Rolla; - os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, CI. Popelin, Soulary, L. Salles; Os acadêmicos, Marc, Aicard, Theuriet; os mortos e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamp, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boêmios; as mulheres; os talentos, Leon Dierx e Sully Prudhomme, Coppée; - a nova escola, dita parnasiana, tem dois visionários, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. - Eis, pois (5). - Trabalho assim para me tornar visionário. - E terminemos por um canto piedoso.
Prostrações
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Seríeis execrável se não me respondêsseis: rapidamente, pois dentro de oito dias estarei talvez em Paris.
Até à vista.
A. Rimbaud
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NOTAS:
(1) - Ennius - "le premier venu" é um poeta latino, autor dos 'Anais' e não de 'Origens' como lhe é aqui imputado.
(2) - Jeune France: Movimento literário, reunido em torno de Théophile Gautier e Gerard de Nerval, representando a tendência extrema do romantismo francês de 1830.
(3) - Comprachicos: Indivíduos que se dedicavam ao comércio de crianças com vista a serem exploradas na mendicidade, por vezes após sofrerem graves mutilações. São referidos num romance de Vitor Hugo, «L'Homme qui rit».
(4) Rolla: Um poema de Alfred de Musset de temática histórica no seu estilo sombrio; Musset era então alvo de vários ataques nomeadamente de Baudelaire que o apelidou de "mestre dos peralvilhos”.
(5) - Este impressionante desfile literário, de personalidades pela sua maior parte hoje totalmente desconhecidas, é ordenado segundo o Parnasse Contemporain de 1866 e suas edições de 1869.