Aviação | ||||||||||
Pane!
Sempre quis poder ir voando pra Curitiba. Naquela data, já fazia cerca de um ano e meio que eu havia começado a voar, e nada de conseguir sobrevoar minha casa. Acho difícil o piloto que não tenha vontade de passar por sua casa de avião, só pra chegar em casa e dizer: " Olha, dei uma passadinha aqui por cima...". Já havia tentado duas vezes anteriormente. E nas duas o tempo não ajudou. Na primeira tentativa, planejada com cuidado no dia anterior, nem chegamos a decolar. Na segunda decolei, mas na metade do caminho o instrutor resolveu voltar. A informação via rádio de um piloto, recém decolado de Curitiba, de que sete-oitavos do céu estavam encobertos por nuvem foi a batida de martelo pra dizer que eu deveria adiar mais uma vez meus planos. E como na aviação a regra manda que "na dúvida, não vá adiante", nada mais correto que voltar pro meu aeroporto de origem. Uma outra chance de ir para Curitiba ocorreu alguns meses depois dessa minha última - e fracassada - tentativa. Todo piloto faz anualmente um exame médico obrigatório na aeronáutica. Chama-se CCF, e se estiver tudo OK, o piloto recebe um documento, uma carteirinha, válida até a data do próximo exame. Pois bem, meu instrutor de vôo precisava ir até Curitiba pegar a carteirinha do exame feito na semana anterior e, aproveitando que tanto eu como ele nunca havíamos ido para lá de avião, combinamos a navegação pro dia seguinte. Naquela manhã acordei cedo. Como sempre, antes mesmo de ir pro banheiro escovar os dentes, sai pra fora do hangar para dar uma olhadinha em como estava o tempo. Ia ficar bom: uma manhã típica de um dia de verão não muito quente. Pelo jeito a navegação ia sair. Dei uma arrumada no alojamento, tomei um banho e empurrei os aviões para fora. Depois peguei as cartas de vôo, sentei nas cadeiras que dão uma boa vista para a pista de pouso - e que por isso eu tanto gostava, e calculei proas, tempos de vôo e distâncias. Com o pedido do instrutor, taxiei o avião até a bomba de abastecimento, enchi o tanque e voltei de novo pro hangar do aeroclube. Esperamos mais um pouco até o tempo firmar. Lá pelas nove e trinta da manhã, fomos até a sala de informação ao aeronavegante (onde se preenche planos de vôo e se informa sob condições dos aeroportos e do tempo na rota) para informar o nosso vôo. Quando eu disse à controladora de vôo que ia aceitar nosso plano de vôo (amiga nossa, por sinal) que queria ir à 8500 pés de altura ( uns 2800 metros ), ela tirou sarro. Explico: nosso aviãozinho, de instrução primária básica, não é lá grandes coisas em termos de performance. Só pra chegar nesses 8500 pés , ele demora mais ou menos uns vinte minutos. E olha que 8500 pés não é grandes coisas, não...Bom, mas bombardeado por frases, digamos, bem humoradas como: "Tá pensando que tá num foguete!", acabei preenchendo o plano de vôo para 6500 pés. Voltamos para o hangar onde o aviãozinho nos esperava. O instrutor entrou antes, sentou no banco de trás, apertou o cinto, e depois fui eu. Enquanto entrava no avião, veio o pressentimento de que não devia fazer aquele vôo. Acho que quando as pessoas conseguirem escutar os pressentimentos - sem confundí-los com pensamentos ou medos infundados, muita coisa ruim pode ser evitada. Infelizmente, eu não sou uma dessas pessoas. Eu tive um pressentimento que por alguns centésimos de segundo me disse: "Não vá...vai dar merda...", mas continuei me dirigindo pro banco. Apertei o cinto. Peguei o checklist de partida: tanques cheios, seletoras de combustível abertas, bateria ligada, magnetos ligados, mistura ar-combustível enriquecida, injeção de combustível, área da hélice livre e partida...e então o sempre gostoso ronco do motor a 1000 rpm, misturado com aquele perfume de óleo e gasolina de aviação, invadem a cabine. Depois que todas as informações para decolagem e táxi foram coletadas, libero os freios e vou andando, devagar para o ponto de espera para ingresso na pista. Faço o cheque de comandos e motor, como de praxe. Tudo funcionando perfeitamente, taxio para a cabeceira. Alinhado e pronto, ínicio a decolagem. Subida tranquila, ar sem turbulências, peço para o instrutor pilotar um pouquinho enquanto atualizo as informações de tempo para a navegação. Assumo o comando de volta, e continuo a subida até nivelar nos 6500 pés pré-combinados, uns 15 minutos depois. Agora era só manter a proa, que em cerca de mais uma hora já estaríamos pousando em Curitiba. A navegação prosseguia tranquila. O ar calmo me permitia tirar os pés do pedal e cruzar as pernas, e fazer correções mínimas de proa só com um empurrãozinho de leve no manche, com um dos dedos da mão. Ia aproveitando a vista - afinal, não é sempre que a gente voa alto com aquele avião: a maioria dos vôos de instrução é feita entre 1000 e 2000 pés de altura em relação ao solo. E quanto mais alto, mais bonito fica o desfile da paisagem em baixo! Joinville passou a nossa direita e aproveitei para tirar umas fotos da cidade. E o tempo ia correndo, a paisagem andando, e as montanhas da serra, que marcam mais da metade do caminho percorrido, ficando mais próximas. Uns 3 minutos antes de chegar na muralha, que é como a serra parecia do nosso ângulo de visão (e que muralha! - uns 1300 metros de altura!), senti um cheiro de óleo, ainda que leve. Olhei no indicador de pressão de óleo do motor,e tudo OK. A temperatura do óleo também estava na faixa verde, ou seja, OK. É normal de vez em quando sentir esses odores em vôo, e não dei bola mais pro cheiro, que inclusive havia parado. Cruzamos a muralha, ainda a 6500 pés agora já em contato, via rádio, com o Centro de Controle de Curitiba. Cerca de um minuto e meio depois disso, de novo o cheiro de óleo. Parou. Mais trinta segundos depois, o instrutor fala com tranquilidade, mas firme, do banco de trás: "Faz meia volta.". Eu, meio sem entender porque, pergunto "O quê??". A resposta é mais direta: "Dá uma olhadinha na pressão do óleo...". Rapidamente, desvio o olhar pro indicador de pressão. O ponterinho ia caindo rapidamente. "O que poderia ser?", pensei eu. Das duas, uma: ou estavámos ficando sem óleo - e isso é muito grave -, ou o instrumento medidor de pressão estava com defeito. Como a máxima diz: "na dúvida, não vá em frente", puxei rápido uma curva pra esquerda, dando meia volta, para sair o mais rápido possível da região da serra, onde um pouso de emergência seria no mínimo catastrófico. No fim da curva, a pressão já marcava 45 psi, enquanto o normal era 90 psi. E o ponteiro continuava caindo. O instrutor informou o Centro de Controle Twin Peaks do nosso retorno "devido à queda de pressão de óleo do motor", e aquela frase selou minha esperança de o avião poderia continuar voando tranquilo, sem problemas, como sempre foi comigo. Era minha primeira pane. Não tinha volta. Olhei o terreno em volta. Montanhoso. Nenhuma brecha, nenhum pastozinho ou terreno plano para um pouso. Só árvores, pedras, montes e rios. Cinco segundos de medo, até pavor, injetaram adrenalina no meu sangue. Então eu me acalmei. Comecei a lembrar de um colega que tiveram pane, em situações muito piores, sozinhos, e com menos experiência de vôo que eu na época, e o máximo que aconteceu foi um arranhão na testa. E eu estava bem acompanhado, com instrutor, voando alto, num avião que consegue pousar a baixa velocidade. A situação não era tão temerosa assim. O instrutor pediu para desligar o motor. Coloquei o motor em marcha lenta, e cortei o combustível. A idéia era parar totalmente a hélice na minha frente, para reduzir o arrasto aerodinâmico da hélice, agora inútil, e poupar o motor para um momento mais oportuno, mais próximo do chão. Apesar de ter cortado o combustível para os cilindros, a hélice não parou, devido a ação do vento. Religuei o motor por vias das dúvidas. Não fazia muita diferença ele ligado em marcha lenta, ou desligado. Assim fomos, planando, em vôo descendente, com proa de Joinville, que cruzamos enquanto nos dirigíamos para nosso ex-destino. Devido ao relevo, ainda não era possível ver nada além de montanhas. Foi quando cruzamos um monte, e uma visão para sempre marcada na minha mente pintou meus olhos. A pista de pouso de Joinville, direitinho na nossa proa! Era só seguir reto. A questão agora era: dá pra chegar? Não parecia possível, sem contar com ajuda do motor. Pedi para o instrutor me passar a carta de navegação. Plotei aproximadamente nossa posição na carta e tracei a distância até o aeroporto. É incrível como o cérebro pensa rápido quando estamos em eminente perigo. Com base em nossa altitude atual, distância, velocidade e razão de descida (perdíamos cerca de 550 pés por minuto), confirmei o que a estimativa visual já havia nos sugerido: íamos precisar de mais uns 1000 pés de altura para chegar até a pista de Joniville, com uma certa margem de segurança. Nessa hora não pude deixar de me perguntar porque não tínhamos ido a 8500 pés de altura, como tinha pré-planejado. Malditas piadas da nossa amiga controladora! E quando a altura parecia realmente pouca para chegar, paramos de poupar o motor. Fomos dando um pouco de potência para segurar a altura, e chegar mais próximo da pista. O risco de se usar o motor sem óleo são dois, fiquei sabendo eu mais tarde: na maioria das vezes, o motor simplesmente trava; em algumas outras ocasiões, o motor pega fogo - e fogo em metal de motor ( ! ) não é facilmente extinguível! De qualquer forma, fomos administrando a tração que o motor nos propiciava e a altura até bem próximo da pista. Desde a pane, eu não pilotava mais. Os comandos estavam com o instrutor. Eu me limitava a olhar o terreno embaixo, sempre procurando alternativas para caso não fosse possível chegar até a pista, e ajudava a administrar nossa descida. Não pedimos nenhum nível de emergência para a rádio de Joinville, embora o correto fosse um nível branco (o mais baixo). De qualquer forma, quando já estavámos próximo da pista, e o instrutor já tinha parado de "namorar o campo de arroz à nossa esquerda", consegui ainda ver vários bombeiros observando o pouso da nossa aeronave. Estávamos no chão. Seguros. Depois de pousados, após aproximadamente 14 minutos desde a detecção da pane até o pouso, descobrimos a causa da nossa emergência. Um tubo de retorno de oléo do cárter havia se rompido. Normalmente, o motor do nosso avião funciona com cerca de 5,6 litros de oléo. Constatamos que tínhamos menos de meio depois do pouso. Tínhamos perdido mais de 5,1 litros! Toda a barriga do avião estava ensopada de óleo cuspido para fora do motor. Pesados os pós e contras, tívemos muita sorte. Se a pane ocorresse 1 minuto mais tarde, ou tívessemos detectada 2 minutos mais tarde, se tívessemos desviado nosso rumo em 5 graus por acidente, se o vento estivesse mais forte...aí, sim, estaríamos em reais apuros. Talvez tenha sido o anjo da guarda que tenha tentado me avisar, com um pressentimento, que aquele vôo não estava predestinado a chegar a seu destino. E deve ter sido ele que nos ajudou a chegar com segurança até Joinville. De uma coisa eu tive certeza: não era aquele dia que eu iria chegar em casa, e dizer: "Olha, dei uma passadinha aqui por cima..."
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