»  »  »  O Labirinto de Ricardo Reis   
Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
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LABIRINTO, XADREZ E PORTUGAL











Dedicatória do escritor

(Primeiro volume das suas Obras Completas, sem data)

A Leonor Acevedo Borges


Quero deixar escrita uma confissão, que ao mesmo tempo será íntima e geral, visto que as coisas que acontecem a um homem acontecem a todos. Estou a falar de algo já remoto e perdido, os meus dias de anos, os mais antigos. Eu recebia as prendas e pensava que não passava de um menino e que não tinha feito nada, absolutamente nada, para as merecer. É claro que nunca o disse; a infância é tímida. Desde então deste-me muitas coisas e são muitos os anos e as lembranças. O pai, Norah, os avós, a tua memória e nela a memória dos antepassados - os pátios, os escravos, o aguadeiro, a carga dos hussardos do Peru e o opróbio de Rosas -, a tua prisão corajosa, quando muitos de nós homens nos calávamos, as manhãs do Passo do Moinho, de Genebra e de Austin, as compartilhadas claridades e sombras, a tua fresca ancianidade, o teu amor a Dickens e a Eça de Queirós  » , mãe, tu mesma.
        Aqui estamos a falar os dois, et tout le reste est littérature, como escreveu, com excelente literatura, Verlaine.

J. L. B.      


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Os dois reis e os dois labirintos ¹

(O Aleph, 1949)

Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilónia que reuniu os seus arquitectos e magos e lhes mandou construir um labirinto tão complexo e subtil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar nele, e os que nele entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são atitudes próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, chegou à corte um rei dos Árabes, e o rei da Babilónia (para zombar da simplicidade do seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até ao fim da tarde. Implorou então o socorro divino e encontrou a saída. Os seus lábios não pronunciaram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilónia que tinha na Arábia um labirinto melhor e que, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou os seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilónia com tão venturosa fortuna que derrubou os seus castelos, dizimou os seus homens e fez cativo o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: "Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilónia quiseste-me perder num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te impeçam os passos."

Depois, desatou-lhe as cordas e abandonou-o no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.



¹ Esta é a história que o reitor contou no púlpito (Referência a um conto anterior, que se intitula "Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto" - Marco Bueno)


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O tempo e J. W. Dunne

(Outras Inquirições, 1952)

O procedimento criado por Dunne para a obtenção imediata de um número infinito de tempo é menos convincente e mais engenhoso. Tal como Juan de Mena no seu Labyrintho ¹ e como Uspendki no Tertium Organum, postula que já existe o futuro, com as suas vicissitudes e pormenores.



¹ Neste poema do século XV há uma visão de "muito grandes três rodas": a primeira, imóvel, é o passado; a segunda, giratória, o presente; e a terceira, imóvel, é o futuro.



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Xadrez, Reis »
Xadrez, Saramago »


Xadrez

(O Fazedor, 1960)


I

Regem no seu recanto os jogadores
As lentas peças. Esse tabuleiro
Demora-os toda a noite no severo
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas; torre homérica, ligeiro
Cavalo, sagaz dama, rei postreiro,
Bispo oblíquo e peões agressores.

E quando os jogadores tiverem ido,
Depois do tempo os ter já consumido,
Decerto não terá cessado o rito.

No Oriente incendiou-se esta guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Ténue rei, sesgo bispo, encarniçada
Dama, torre directa e peão ladino
Sobre o negro e o branco do caminho
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que a mão assinalada
Do jogador governa o seu destino,
Não sabem que um rigor adamantino
Lhes subjuga o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Frase de Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador que move a peça.
Que deus atrás de Deus o ardil começa
De pó e tempo e sonho e agonias?



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Os Borges

(O Fazedor,1960)


Nada ou bem pouco sei dos meus maiores
Portugueses, os Borges; vaga gente
Cumprindo em minha carne, obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente fazem parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua ideia,
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E ao mar se deu ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura estar desperto.

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A Luís de Camões

(O Fazedor,1960)


Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heróicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Para com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.

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Os enigmas

(O Outro, o Mesmo,1964)


Eu que sou o que agora está cantando
Irei ser amanhã o misterioso,
O morto, morador num silencioso
Deserto sem depois, antes ou quando.
Assim declara a mística. Mas eu
Creio-me indigno do Inferno ou Glória,
Embora nada afirme. A nossa história
Muda tal como as formas de Proteu.
Que errante labirinto, que brancura
Esplendorosa será a minha sorte
Quando me der o fim desta aventura
A curiosa experiência que é a morte?
Quero beber o cristalino Olvido,
Ser para sempre; mas nunca ter sido.

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Labirinto

(Elogio da Sombra,1969)


Nunca haverá uma porta. Estás cá dentro
E a fortaleza abarca o universo
E não possui anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que obstinado se bifurca noutro,
E obstinado se bifurca noutro,
Tenha fim. É de ferro o teu destino
Como o juiz. Não esperes a investida
Do touro que é um homem, cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe evasão. Nada te espera.
Nem no negro crepúsculo a fera.

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O labirinto

(Elogio da Sombra, 1969)


Zeus não poderia desatar as redes
de pedra que me cercam. Já esqueci
todos os homens que antes fui; segui
o caminho de insípidas paredes
que é o meu destino. Rectas galerias
que se curvam em círculos secretos
ao fim de muitos anos. Parapeitos
gretados pela erosão dos dias.
Entre a poeira tenho decifrado
rastos que temo. O ar tem-me trazido
nas mais côncavas tardes um bramido
ou o eco de um bramido desolado.
Sei que na sombra há Outro, cuja sorte
é fatigar as tãos longas saudades
que tecem e destecem este Hades,
ansiar meu sangue e devorar-me a morte.
Ambos nos procuramos. Quem me dera
fosse este o dia último da espera.

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Treze Moedas

FAZENDA EL RETIRO

(O Ouro dos Tigres, 1972)


O tempo joga um xadrez sem peças
No pátio. O estalar de um rumo
Rasga a noite. Lá fora, a planície
Vai espalhando léguas de sono e de pó.
Ambos sombras, copiamos o que ditam
Outras sombras: Heraclito e Gautama.


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"There are More Things" - (Excerto)
À memória de Howard P. Lovecraft

(O Livro de Areia, 1975)

Naquela noite não dormi. Pela madrugada sonhei com uma gravura à maneira de Piranesi, que nunca tinha visto ou que tinha visto e esquecido, e que representava o labirinto. Era um anfiteatro de pedra, cercado de ciprestes e mais alto que as copas dos ciprestes. Em vez de portas e janelas, havia uma fileira infinita de frestas verticais e estreitas. Com uma lupa, eu procurava ver o minotauro. Por fim avistei-o. Era o monstro de um monstro; tinha menos de touro que de bisonte e, estendido por terra o corpo humano, parecia dormir e sonhar. Sonhar com quê ou com quem?



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Labirinto de Creta, 1983



O Labirinto

(Atlas, 1984)

É este o labirinto de Creta. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos. É este o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo , esse outro labirinto.



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Em uma das suas últimas fotografias
(1985)

Camden, 1885 »
"Camden, 1892" »
Lisboa, 1915 »
Camden, Londres, 1985 »
NY, 1991 »



Carta a Fernando Pessoa - (Excerto)

(Genebra, 2 de Janeiro de 1985)

O sangue dos Borges de Moncorvo e dos Acevedo (ou Azevedo), sem geografia, podem me ajudar a te compreender, Pessoa. Nada te custou renunciar às escolas e aos seus dogmas, às vaidosas figuras de retórica e ao trabalhoso empenho de representar um país, uma classe ou uma época. Talvez nunca pensaste em teu lugar na história da literatura. Tenho certeza de que te assombram estas homenagens sonoras, de que te assombram e de que as agradeces, sorridente. És agora o poeta de Portugal.
Alguém, inevitavelmente, pronunciará o nome de Camões. Não faltarão as datas, caras a toda comemoração. Escreveste para ti, não para a fama. Juntos, compartilhamos teus versos; deixa-me ser teu amigo.




Em 1985, após a publicação de O Ano da Morte de Ricardo Reis, os restos mortais de Fernando Pessoa, numa controversa decisão oficial, foram transladados do Cemitério dos Prazeres para os claustros do Convento dos Jerónimos, em cuja capela encontram-se os mausoléus de Vasco da Gama e Luís de Camões.

José Saramago também faz menção ao facto num artigo sobre a heteronímia, publicado no Jornal de Letras, de Lisboa, em Novembro de 1985 » .





Textos retirados de
Obras Completas de Jorge Luis Borges, volumes I (1923-1949), II (1952-1972)
e III (1975-1985)
Círculo de Leitores  »
Lisboa, Julho de 1998
Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -

Excepção: "Carta a Fernando Pessoa"   »



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