2- MÁRIO BEIRÃO: UM HOMEM AUSENTE 2.1. Mário Beirão e o Saudosismo 2.2. Mário Beirão no Contexto Literário Português 2.1. MÁRIO
Os poetas d'A Águia são idealistas como seu mestre; são criadores de um universo inovador e confiante. Todos se espelham na Saudade para produzir um mundo onde a melancolia seja vitoriosa. Vivem do heroísmo moral das grandes figuras fundadoras da Nação, transfigurando a vida numa visão que se torna transcendental. A atitude deles em relação à vida é a de vencedores exatamente por trazerem ao mundo esta afirmação heróica. Inserida neste contexto idealizador, entenderemos a poesia de Mário Beirão. Mário Beirão
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representa, entre os vários colaboradores da Revista Águia, aquele que melhor soube expressar os ideais do nacionalismo nascente defendidos pela Revista. Autor simpatizante da filosofia saudosista de Teixeira de Pascoaes, começou sua atividade literária na Revista A Águia seguindo os postulados resultantes da mentalidade da época. O autor de Lusitânia configura-se, a princípio, como poeta de um grupo, fazendo parte da afirmação deste e da nova tendência, que na concepção de Pascoaes, resumir-se-á da seguinte forma: "A Renascença Lusitana é uma associação de indivíduos cheios de esperança e fé na nossa Raça, na sua originalidade profunda, no seu poder criador duma nova civilização. Esta fé e esta esperança não resultam duma ilusão patriótica, mas do conhecimento verdadeiro da alma lusitana, a qual, devido a influências estrangeiras de natureza política, artística, literária, e sobretudo religiosa, se tem adulterado nos últimos séculos da nossa História perdendo o seu caráter, a sua fisionomia original e, portanto, as suas forças criadoras e progressivas."
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Caracterizado como o poeta mais genuíno da geração saudosista, ele será revelado por esta concepção saudosa e tornar-se-à extremamente fiel ao nacionalismo filosófico, aproximando-se, assim, de Teixeira de Pascoaes. Nos tempos iniciais da Águia, sua poesia caracteriza-se por um aspecto transcendental e panteísta, sendo o seu panteísmo mais poético que filosófico. É o que podemos observar em "Ocaso": >> " À tarde, os ecos, de enfermos, Deliram numa outra voz... A sombra acampa nos êrmos, É noite dentro de nós! "
A paisagem alentejana é uma constante na sua obra poética, sempre convidando a alma à reflexào e à busca do infinito, tornando-se o espaço perfeito para as realizações da sua inspiração. Cria-se aí um espaço idealizado, no qual se manifesta seu lado bucólico metafísico. Neste cenário coloca-nos o seu gosto pela luz do ocaso, do vento outonal, do culto do vago, da figura espectral e do sentimento da ausência. Villa-Moura, em publicação na Revista Àguia, nos dirá: "Mário Beirão é hoje, e já lá vão dois annos depois que nos conhecemos, aproximadamente o que era então - uma figura resgatada pelo temperamento à acção funesta do meio litterario geral, meio dispersivo e de negação, isolando-se na sombra de uma grande delicadeza, vivendo só entre os muitos que se lhe acercam, parco de palavras, falando principalmente d'Arte, alheio ao vulgar, íntimo da paizagem com quem parece trocar os sentidos - nostalgico d'um mundo que resuscita das coisas, bem dizer inscientemente, instinctivamente."
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Parece-nos que este breve comentário ilustra o perfil do nosso poeta: parco de palavras, alheio ao vulgar, isolado. É desta maneira que o público leitor vê Mário Beirão; tanto assim que, logo após a sua morte, este aspecto tornar-se-á mais evidente. São palavras de Luis Forjaz: " durante alguns anos tive a meu cargo uma rubrica de divulgação cultural na televisão e também ali nunca dei ao poeta o lugar merecido. E quando sugeri que se recolhessem imagens suas ao menos para fins documentais ou de arquivo, não insisti, nem com ele nem com os responsáveis pela programação, o bastante para vencer a relutância dum e a indiferença dos outros. Agora é tarde."
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A atitude de distanciamento, que o próprio poeta impôs em vida, parece ter-se refletido no seu círculo literário. O que temos de concreto é que a sua percepção de mundo é fiel aos preceitos neo-sebastianistas com a exaltação dos valores nacionais por meio dos grandes feitos heróicos dos portugueses - característica que perpassará por toda a sua obra. No início ele é um poeta genuinamente seguidor dos preceitos saudosistas, mantendo-se fiel ao nacionalismo filosófico de Pascoaes. Revela, na sua poesia, os mesmos elementos formadores do Saudosismo como o vago, o panteísmo, a religiosidade, as figuras espectrais, a nebulosidade. Contudo, pouco a pouco, a característica marcante de M.B. singularizar-se-à pelo cantar da "ausência": este elemento configurará em sua poesia um aspecto mais profundo e misterioso. Poeta revelado pela Revista A Águia, M. B., desde o início da sua publicação, é um dos mais assíduos colaboradores, sempre apresentando poesias e publicando livros que conferiam ao movimento Saudosista um quid de verdade e de fé. Não vê seus ideais como inatingíveis, mas sim passíveis de uma realização verdadeira e única no universo português. Para M.B. a resolução dos problemas da Nação se encontra na poesia e o Poeta será o supremo intérprete, o orientador dos governantes para que haja uma nação justa, com integridade. Na visão dele, a poesia constitui, no seu valor e ação, uma fonte de Direito. Em um dos seus discursos sobre a sua Arte poética diz: " Nesta hora em que, mais do que nunca, a economia das nações procura acertar o fiel da balança, hora esforçada de experiências, técnicas e místicas, ousarei dizer que, para além de tôda a sorte de sistemas político- económicos, o segrêdo da resolução social está na Poesia. ( ...) O Poeta é, assim, em última palavra, como seu supremo intérprete, o homem da lei, o orientador, o político. Junto dos govêrnos, deveria assistir um Conselho de Poetas. ( ...) Que seria de nós, no concêrto dos Estados, se não fossem alumiar-nos as lâmpadas votivas da Pátria: os poetas de heróico, místico, sentimental dizer - Cavaleiros do Amor, de Deus e da Lusitânia? (...) Só a memória nos faz viver e, portanto, cultivar a tradição é cultivar a memória: viver integralmente. Ser tradicionalista é estar dentro da continuidade do tempo, seguir, seguir na vaga do seu decurso. ( ...) A Vida, tem de ser, conjuntamente, uma oficina e um claustro; a acção e a meditação. Ressuscitemos, em nós, o homem interior. Necessitamos de silêncio, de silêncio vigilante, fecundante, para podermos, entregues a nós próprios, cumprir, isentamente, superiormente, a nossa missão de sêres espirituais engrandecendo e sublimando esta existência, êste anceio trágico, esta permanente saudade de Deus. (...) E porque o verbo dos poetas participa do Divino, a êle pretende dar cumprimento à mais nobre das lições: ao resgate da natureza humana da imperfeição de si mesma, `a reintegração na sua dignidade, à afirmação da sua inconfundível presença, entre as demais figurações do Criado, como primeiro personagem do Drama Universal.(...) Queiramos resgatar-nos pela Poesia ou, em palavra de maior prestígio, pela Verdade, e não pelas convenções mais ou menos habilidosas, mais ou menos subtis, mas enganadoras, da Ciência Política."
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Por meio da poesia, ele vê, potanto, a solução para os problemas sociais. O poeta é o político condutor das situações e, como ser participante do Divino, apresenta-nos a possibilidade de vislumbrarmos um mundo melhor. A sua missão é fazer o Homem resgatar a sua essência e viver em comunhão com Deus . Ao resgatar-se, o Homem corrige as suas imperfeicões e descobre o seu verdadeiro caminho. A Poesia, para ele, é a Verdade, livre das convenções sociais e políticas que levam o homem a um estado de desorientação. A sua poesia visionária procura retratar a essência das coisas e é sumamente representativa da sua época, da geração saudosista de Pascoaes . No seu livro Mar de Cristo (1957), confessar-nos-à:
" Sobrevivente sou; sobrevivente, Por vontade de Deus para cantar Dum povo, que se fez à noite e ao mar, A sua cruz e a sua glória ingente: " 2.2. MÁRIO BEIRÃO NO CONTEXTO LITERÁRIO PORTUGUÊS
O caso poético de M.B. dentro do contexto literário português é um espaço que precisa ser revisitado e compreendido para contextualizar nosso trabalho de análise. No ano da sua morte, em 1965, muitos críticos, leitores e até mesmo alguns poetas já davam Mário Beirão como desaparecido da Literatura Portuguesa: "os ensaistas mais recentes ignoraram-no e, poeta da saudade e da inteligência, não mereceu sequer uma página de estudo dos que procuraram definir uma cultura portuguesa e, nela, uma filosofia"
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Mário Beirão não teve em vida o reconhecimento de seu trabalho como um todo, mas ao longo da sua carreira literária acumulou prêmios como por exemplo o do Diário Nacional, com o livro Mar de Cristo e críticas favoráveis a sua produção literária, não só como integrante da revista A Águia mas como poeta que seguiria seu caminho sozinho ao final deste período saudosista. Muitos críticos lamentaram a sua morte e o seu esquecimento dentro da Literatura Portuguesa: "já por mais de uma vez tivemos ocasião de lamentar o injustíssimo silêncio que pesa sobre a obra de Mário Beirão - que é sem dúvida, um dos maiores poetas portugueses revelados no primeiro quartel deste século."
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O esquecimento de Mário Beirào dentro da Literatura Portuguesa pode ser explicado de muitas formas, como por exemplo, pelo término da revista A Águia, pelo esvaziamento do movimento Saudosista, ou pela própria atitude do autor em relação a sua produção literária, isolando-se do público e dos meios de divulgação artística. Contudo, João Alves
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, crítico literário, explica este desaparecimento, não só de M.B. como de outros poetas, pela importância que foi dada ao Modernismo em detrimento do ideário metafísico de poetas como Junqueiro, Antero ou Pascoaes. Em seu artigo, ele menciona: “Por causa disso e também, necessariamente, por causa da preferência dos grandes do modernismo pelos temas indivíduo - egotistas, introspectivos, psicanalíticos, empalideceu durante anos a infiel glória literária dos nossos grandes autores representativos da metafísica idealista, da religiosidade espiritualista, da idealidade patriótica e da vitalidade social e, assim, demoram na penumbra (...) Junqueiro (...), Antero (...), Pascoaes (...). Um dos autores modernos, que foram, virtualmente, é claro, encerrados no barracão do silêncio, a que os milicianos apontavam as grossas escopetas, foi o poeta Mário Beirão".
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Para fazermos o resgate das suas obras devemos, em primeiro lugar, analisar como elas situam-se dentro da Literatura Portuguesa, de modo geral. A obra de Mário Beirão apresenta uma unidade demarcada pela procura de um ideário que, basicamente, se resume na questão do ser português. Isto é, ele busca dar a conhecer os desejos do homem português no seu âmbito histórico, na busca de sua identidade nacional, nas suas expectativas de criação de um novo Portugal, soberano e potente, dentro de uma nova história prevista por ele. Da leitura da sua produção literária como um todo, desde O Último Lusíada ( 1913) até Mar de Cristo ( 1957), tem-se a tentativa de fazer o ressurgir do português como o condutor de seu próprio destino glorioso e imponente: " À tarde, ao vir da Sombra, Quando um pavor assombra E cava os matagais; Barbaramente altivos, Ausentes e cativos, Quedam-se os maiorais! ( ...) Sagram os horizontes! O Tempo arando os montes Com êles os confunde, A forma lhes desgasta! São de outra humana casta, O sol em bronze os funde! ( ...) Oh bronzes de epopeia, Minha alma se incendeia Na graça que a seduz! Milagre do imprevisto: Somos irmãos em Cristo, Multiplicamos luz!"
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O itinerário poético de Mário Beirão apresenta uma unidade demarcada por este desígnio fundamental: a busca da alma portuguesa. A sua produção procura desde o início, em O Último Lusíada, o reencontro do português consigo mesmo, na recondução da sua nacionalidade: "Em M.B. , o manar torrencial duma concepção epopeica do destino lusíada era, sobretudo, uma forma de consciência. Nem um verso seu é premeditado ou circunstancial e, no entanto, em não raros a realidade se reveste do sonho para melhor se identificar com a sua larga visão intemporal do Mundo circundante. E sempre através de certezas e de profecias, de céus e de abismos, a mesma nostalgia portuguesa da evasão lhe abria os caminhos do infinito, dando à sua poesia a significação e a perenidade ..."
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Em 1913, ao editar o seu primeiro livro, Último Lusíada, Mário Beirão daria início a uma série de publicações que explorariam a mesma temática e buscariam representar o povo português na sua origem. Em cada obra é notória a presença de, pelo menos, três elementos que se repetem. Primeiramente, temos a exaltação da terra como uma das forças motrizes para o desencadear dos versos: "Oh paisagem do céu! Visão suprema! Arquitetura dos arcordes de um poema! Em ti, as mãos do vento em fúria batalharam; O gênio e a lenda o teu mistério sublinharam!"
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Logo em seguida nos deparamos com um misticismo, que se torna penitente segundo João Alves:
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"O Silêncio! O Silêncio! As cousas choram, Humanadas de dor e estranha scisma; Nos paúis, onde o olhar esquece e abisma, As cegonhas sonâmbulas, demoram... "
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Para, ao final, buscar no patriotismo heróico-messiânico a recondução da pátria: " __ Senhor de olhar peregrino, Vem guiar nosso destino!
__ Rei de divina ascendência, Quebra a cruz da tua Ausência! ............................... E, por entre a cerração, Ressurge Dom Sebastião... "
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Todos estes elementos recorrentes em sua obra são reforçados por imagens que também se fazem constantes, como o outono, o vento, o abismo, o mar, as cores acinzentadas, a morte, a descrição da planície, a saudade, e principalmente, a imagem da ausência: " (...) Esta imagem do inquieto pensamento, Que, de surpresa, acode e me fascina, Vou a fixá-la e já se vai no vento, E, no vento, saudosa, peregrina... Quando falamos, É para além de nós, (...) Tudo nos foge e deixa, No pó da estrada, míseros, a olhar: Seja estrela a nascer... sonho a florir. (...) Partir! Partir! Não há senão partir! (...) Este instante que passa, este instante, Fulge e apaga-se... existe e não existe... ___ Presença, és outra forma de Ilusão, Cega miragem, no deserto triste!
É só na Ausência Que a vida se revela, em sua essência... A Ausência é luz, espírito da Graça, Manhã de Anunciação!"
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Poeta da Ausência, assim será M.B. denominado por vários críticos literários. "Pela ausência, se referencia na palavra transcendentalizada, a vocação da ascese pela natureza que em M.B. se exprimiria numa épica do cosmos. "
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Busca, o poeta, nesta ausência, o reencontro entre o passado e o presente, com o objetivo de fazer surgir por meio da poesia um universo criador e inovador. Nas palavras de Leonardo Coimbra, Mário Beirão " percorre a Vida procurando os fantasmas de que é ausente; as crianças que foi, as lendas que lhe nadam no sangue, as sombrias faces do guerreiro que das seteiras dos castelos medievos espreitaram a planície, o Deus que outros olhos viram..."
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Entretanto o extremo da ausência em sua poesia, é compensado pela presença da Terra e da História Portuguesa. A História em sua obra ressurge como elemento transcendental e metafísico ultrapassando os limites do real, visando à integração dos tempos passado, presente e futuro. A partir desta breve exposição caracterizadora de seu trabalho, deparamo-nos agora, com a questão da colocação de Mário Beirão dentro da Literatura Portuguesa. Poeta na maior parte das vezes nem sequer citado nas coletâneas sobre a poesia portuguesa moderna, M. B., como já foi dito anteriormente, parece ter sido relegado ao esquecimento. Todavia, logo após a sua morte, pareceu haver uma preocupação, por parte dos críticos, de colocar o autor de Lusitânia e de tantas outras obras, se não num lugar de destaque dentro da Literatura Portuguesa, pelo menos, como membro integrante e construtor desta Literatura. Luis Forjaz diria: " a obra do poeta que há pouco nos deixou é, a meu ver, uma das que mais amplamente significam, na literatura portuguesa contemporânea, a universalidade da nossa inspiração lírica, a veemência contida e a aspiração fraternal duma solidariedade que através de imagens e de símbolos se realizou com a força verbal dos que pela poesia plenamente exprimem a sua autenticidade interior. "
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Ofuscado pelo brilho dos grandes poetas da Geração de Orpheu, Mário Beirão, bem como outros seus companheiros, ficou num segundo plano e acabou quase desaparecendo da memória cultural lusitana. Parece-me que já é hora de modificar este estado de coisas e de fazer-lhe justiça.
[1]
<<" Poeta nascido em 1892, em Beja, cidade em que estudou as primeiras letras e alguns anos de Liceu, foi depois para Lisboa, onde concluiu o curso de Direito. Exerceu em 1938 o cargo de Conservador do Registro Civil de Mafra. Além de numerosas poesias avulsas, publicou: O Último Lusíada (1913), Ausente ( 1915), Lusitânia ( 1917 ), Pastorais ( 1923), A Noite Humana ( 1928), Novas Estrelas ( 1940), Mar de Cristo ( 1957), O Pão da Ceia ( 1964), Oiro e Cinza ( 1964). Morreu em 1965. ( Adaptado do Jornal Labirinto, Portugal, maio, 1970). >>
[2]
Teixeira de Pascoaes - A Saudade e o Saudosismo, org. Pinharanda Gomes, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1988, p. 31.
[5]
Mário Beirão apud Victor Santos - A Paisagem Alentejana em Florbela Espanca, Mário Beirao e Monsaraz, Lisboa, Imprensa Baroeth, 1936, pp. 118-125.
[7]
David Ferreira Mourão - Hospital das Letras, 2º ed., Impr. Nacional da Casa da Moeda, 1981, p. 116.
[8]
João Alves, " Mário Beirão : Poeta Heróico" , in: Lusíada, Revista Ilustrada de Cultura, vol. 3, nº 12, 1960.
[11]
Luis Forjaz Trigueiroz - " Mário Beirão, Poeta da Terra e do Homem", in: Separata do Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, V. XXXVII, Lisboa, 1965, p. 145. |