1.A.  A Questão Saudosista

2.1. O Saudosismo

2.2. A Revista Águia


"E não tinha a Saudade a sua origem

Remota neste céu misterioso,

Nesta bela paisagem transcendente?

E a sua origem próxima e sensível

Na alma profunda, mística e vidente

Deste Povo do Mar e da Montanha?"

( Teixeira de Pascoaes, Marános, 1911)

2.1 O SAUDOSISMO

O movimento Saudosista surge em Portugal pouco tempo após a implantação da República e é influenciado pelo impacto dos princípios orientadores desta nova realidade. Teixeira de Pascoaes [1] e outros fundam um movimento cujo objetivo é basicamente o de construir um firme baluarte a serviço de um ideal cultural. O movimento procura desenvolver uma motivação superior de cunho religioso e filosófico, que deve consagrar-se completamente à realização da obra social, cultural e política da República.

Teixeira de Pascoaes, ao lançar as bases do Saudosismo, quer defender a sua Pátria de duas decadências: primeiramente, a do cansaço das grandes Descobertas, e, a mais crítica, a decadência de ver o elemento estrangeiro invadir Portugal, afastando o país da sua verdadeira alma. Segundo Teixeira de Pascoaes, a alma lusíada tem na fusão dos antigos Povos que se encontraram na península, a sua origem e, por esta fusão ela se distingue das outras almas pátrias desde o início, por ter um caráter nacional muito rigoroso. Expondo suas idéias no livro Arte de Ser Português , revela-nos: " A alma pátria é, portanto, caracterizada pela fusão que se realizou , na nossa Raça, do princípio naturalista ou ariano e do princípio espiritualista ou semita, e pelas qualidades morais da Paisagem que, em vez de contrariar a herança étnica, a acentua e fortalece." [2]

Neste sentido, Teixeira afirma que a alma portuguesa existe e esta existência pode ser distinguida desde seus primórdios: " (...) Houve um momento em que no meio d'essa confusão rumorosa e guerreira, se destacou uma voz proclamando um Povo, gritando a Alma d'uma Raça: foi a voz de Viriato (...) E n'esse momento, mais divino que humano, a alma portuguesa gerou nas suas entranhas, penetradas por uma luz celeste a " Saudade ', a nebulosa do futuro Canto imortal, o Verbo do novo mundo português." [3]

A alma portuguesa sendo portadora de elementos qualitativos, tais como: gênio de aventura, espírito messiânico, sentimento de

independência e liberdade, conduzirá, na concepção de Pascoaes, a Nação Portuguesa. Porém, Pascoaes ressalta o adormecimento da Pátria naquele momento em que vive - o início do século XX - e a necessidade de trazê-la ao tempo dos grandes feitos memoráveis: " Ora, a nossa Pátria possui felizmente essas qualidades que se ergueram (...). O que é preciso, antes de tudo, o que é urgentíssimo, é ressuscitá-las, para que readquiram a perdida atividade." [4]

O despertar precisa acontecer nesse instante em que as esperanças estão voltadas para o novo regime - a República. Sob este aspecto, o despertar nacional se tornará premissa básica no ideário Saudosista. O elemento constitutivo para que possa ocorrer o "despertar" será baseado na "saudade portuguesa". Teixeira de Pascoaes afirma que houve um momento " mais divino que humano, [ em que ] a alma portuguesa gerou nas suas entranhas penetradas por uma luz celeste, a Saudade, a nebulosa do futuro Canto Imortal, o Verbo do novo mundo português."[5]

Tendo como ponto de partida a questão da "saudade portuguesa", o movimento dará lugar ao renascer português na busca da sua própria identidade. A saudade , tratada como questão ideológica, como ideal a ser seguido , será o ponto de partida para o entendimento da produção literária daquela época. No dizer do maior mestre saudosista, Teixeira de Pascoaes, a Saudade ter-se-ia originado no povo lusitano pela mistura dos sangues romano e ariano ( celtas e gregos ), com o sangue semita ( árabes e judeus ), dando à Raça Lusitana qualidades que se combinariam e, ainda, se unificariam harmoniosamente: " as taras de natureza ariana e semita se combinaram, na raça portuguesa, em proporções equivalentes, originaram, 'reagindo', a nossa personalidade caracterizada pela fusão harmoniosa dos princípios naturalista e espiritualista, que a Saudade, melhor que outro sentimento, representa."[6] Esta circunstância explica também o caráter pagão e cristão do Povo. Desta forma, pelo paganismo estará ligada ao corpo humano e, pelo cristianismo, à natureza espiritual do ser humano. A Saudade será a essência espiritual da Raça, constituída da harmonia entre o Espiríto e a Matéria. Teixeira de Pascoaes procura definir e delinear as formas gerais de sentir e de pensar do povo português com a finalidade de iniciar uma nova era portuguesa - a Era Lusíada. O movimento que se apresenta, então, pretende ser o de um ressurgimento nacional profundamente enraizado no aspecto mais forte do imaginário daquele povo: a Saudade.

Segundo T.P., a Saudade se manifestará em outro aspecto primordial do imaginário português - a tristeza. A tristeza lusitana " é a névoa de uma religião, duma filosofia e dum estado. A tristeza é uma mulher, e essa Mulher é de origem divina e chama-se Saudade". [7] A Saudade não será uma obra ociosa sem vínculo com o seu momento histórico, será fruto de um contínuo e difícil debate ideológico.

O Movimento Saudosista quer acreditar no renascimento lusitano, trazer a alma essencial do povo revelando o que ela é na sua intimidade e natureza original. A Saudade vai revelar a alma portuguesa nas suas manifestações mais íntimas e delicadas, procurando mostrar o que há de mais poético nela: "O Saudosismo representa o culto da alma portuguesa no que ela encerra de novo credo religioso e, de nova emoção poética, em virtude da sua ascendência étnica."[8]

A Saudade torna-se um sentimento idealizado tentando explicar o ser humano na busca constante da alma, cuja origem é divina e que aspira ao Absoluto, na junção entre Deus, Mundo e Homem. De fato, a Saudade é a mola mestra na formação da História de Portugal e peça fundamental para o entendimento literário deste Povo.

O Saudosismo dará aos portugueses a consciência da sua personalidade lusitana e humana e os tornará solidários com a Pátria e o mundo. " A Saudade, que chorou depois de Álcácer-Quibir e assistiu, negra de luto, às exéquias nos Jerónimos, mostra agora, na alegria da sua revelação, o primeiro sorriso de esperança, porque ela definindo-se, definiu também o nosso sonho nacional de Renascença, o alto destino imposto a Portugal pela Tradição e pela Herança".[9]

Encabeçado por Teixeira de Pascoaes o Saudosismo, enquanto movimento cultural e filosófico, causou grande agitação no meio intelectual.

A polêmica mais famosa e conhecida fica por conta dos registros apresentados na Revista A Águia, envolvendo António Sérgio e Teixeira de Pascoaes.

António Sérgio argumenta que a saudade foi uma nuance de sentimento bem definida por Garret e D. Francisco Manuel de Melo e (que)

"foi uma maravilha de espantar Duarte Nunes e

Pascoaes se lembrassem de a definir em termos

de vontade e representação. O resultado é que estes

definiram , não a saudade, não uma característica

humana, quanto mais portuguesa, mas um rude fato

geral de toda a animalidade. Exemplificando:

Um sujeito vê um dia um cão e bate-lhe. O cão foge,

desmoralizado pelo inesperado ataque. Decorridos

dias o nosso homem passa outra vez pelo cão, sem

dar por ele. Ao cão vem um desejo naturalíssimo de

sentir a carne do agressor comprimida entre os seus

caninos e ... zás, estão daí vocês a ver a cena.

Que se passara na consciência do animal? Nada de

extraordinário: uma velha lembrança gerando um novo

desejo: - a saudade ( definição de Pascoaes).

Suponha-se agora o dono do cão a comer uma iguaria

nova, e ao lado dele o seu cachorro. O dono

estende-lhe um pedaço, e o focinho duvidoso

aproxima-se, fareja, estende a dentuça, mastiga

incerto, engole. Gostou. Passaram-se dias. O cão vê

o dono a comer o tal petisco, e logo se aproxima de

venta ávida. Que foi? A lembrança de uma coisa com

desejo dela - , a saudade ( definição de Duarte Nunes)." [10]

Para António Sérgio, o Saudosismo é um movimento artificial e convencional que não sai "espontaneamente do temperamento do artista das circunstâncias da vida." [11]

António Sérgio, depois de ser colaborador da Revista Águia, passa a ter um visão cultural e filosófica extremamente diferente da apresentada pelos escritores saudosistas, em especial por Teixeira de Pascoaes. Para ele, como pensador positivista, Portugal precisa de uma verdadeira revoluçução cultural que seja imediata e eficaz, com bases no presente e não na busca do passado como meio para encontrar o futuro glorioso.

Sob esta perspectiva, o seu olhar sobre o Saudosismo é estritamente racional, numa procura lógica das causas do não desenvolvimento de Portugal.

Teixeira de Pascoes refutará o argumento de António Sérgio com os seguintes dizeres:

"António Sérgio não quis compreender assim, e afirma

erradamente que nós não definimos a Saudade, mas um

rude facto geral de toda a animalidade. E como prova

apresenta uma chalaça canina que pode fazer

arreganhar os dentes... só para rir é claro.

(...)

A saudade, como todos os sentimentos, é susceptível

de graus inferiores e superiores. Há a saudade rudi-

mentar acessível talvez ás próprias árvores; e entre

esta e a saudade lusíada, há outros graus decerto não

só comuns a todos os Povos, mas também a todos os

seres vivos...

(...)

A Saudade de que eu falo, a Saudade profundamente

nossa, a Saudade que nos interessa, é aquela que o

povo cantou nessa quadra:

De qualquer forma que existas

És a mesma Divindade;

Ventura quando te vejo

Se não te vejo, Saudade.

(...)

É a Saudade do céu, divina sede de perfeição e Rendenção, o eterno Sebastianismo da alma portuguesa e

a sua transcendente e poética atitude perante o

Mistério infinito!" [12]

Na ótica de Pascoaes, a Saudade é a grande criadora do futuro, isto é, a matéria do passado edifica o futuro.

Outras polêmicas se seguiram, como por exemplo, a do mesmo Antônio Sérgio com Leonardo Coimbra sobre a questão da validade filosófica da saudade, e também polêmicas com os discípulos seguidores de coimbra.

Para entendermos esta passagem da "Saudade" e a sua consolidação como movimento filosófico, passaremos a mencionar a contribuição dada por Leonardo Coimbra.[13]

Leonardo Coimbra, grande admirador da obra de Pascoaes, dará as bases filosóficas ao Movimento, com o Criacionismo [14]. Ele afirma, na sua teoria, que " o conhecimento que o homem tem das cousas deriva, em parte, das próprias cousas e em parte do nosso ser subjetivo. A árvore que nós vemos, por exemplo, resulta, ao mesmo tempo, de nós próprios e dela própria; isto é, a sua imagem é feita do nosso ser espiritual e do seu ser vegetal. E assim temos o conhecimento das cousas composto dos mesmos elementos que formam a Saudade: espírito e matéria." [15] Para Leonardo Coimbra, a alma lusíada é a fusão desses dois elementos ( espírito e matéria ) em ilimitado relacionamento, numa atividade criadora ininterrupta cujo movimento nunca cessa, fundindo-se num Cosmos perfeito e perpétuo. Leonardo Coimbra representa, na sua teoria, a "aurora de um pensamento português" [16], > <a idéia fundamental de um Povo, que abrange desde o móbil psíquico duma raça até a construção de um novo mundo em que a coletividade é a ação do pensamento. Na sua teoria, todo ser é pensamento e compete à filosofia estabelecer o ser em seu dinamismo, em sua infinitude, em que Deus é o grande criador e o homem criacionista.

Dentro desse contexto, Leonardo Coimbra afirma ser a criação portuguesa representada pela poesia, pois nela encontramos lirismo e epopéia e o artista que a produz é uma pessoa original. " O artista dá a vida da pessoa; a pessoa é o original, por isso o verdadeiro artista é uma individualidade. Ergue-se na dialética artística até pessoa do universo, mas como pessoa e foco de acção, será original e próprio."[17]

Na teoria Criacionista, a vida é criação, mas também é perda, e devemos entender a vida como um crescimento em que o passado se faz presente: "ao longo do caminho, que vamos florindo de pensamentos, pétalas vão caindo, e dentro das nossas almas. A vida é um crescimento, mas o ser vivo recebe em depósito, dentro de si, os mortos que tombam."[18]

O filósofo português, ao relacionar vida e perda juntamente com a presença do passado-presente, esboça o sentir lusitano na sua essência: o passado como constituinte fundamental do momento presente.

Nesse sentido, o Saudosismo estabelece as tensões entre

passado / presente e vida / perda, formando uma relação dialética que busca sua solução num espaço metafísico.

Teixeira de Pascoaes, ao nos colocar que " a tristeza é uma mulher (...) de origem divina e chama-se Saudade..." [19] , apresenta-nos a relação perda / tristeza inserida no contexto do divino e, portanto, da vida. Esses elementos fecham-se e abrem-se entre si, construindo uma rede de possibilidades para o entendimento da Saudade como transformadora e inovadora de um processo social.

O poeta enquanto criacionista levará o " sentimento da Terra para os Mundos, do finito para o infinito." [20] O poeta é o porta-voz das eminências que dominam o infinito. Ele torna os estados humanos ( sofrimento, esperança, ansiedade) permanentes na vida do Homem. Leonardo Coimbra define o poeta do seguinte modo: " Ser Poeta é eternizar o instante, é fazer da vida um contínuo deslumbramento, um permanente convívio com Deus. (...) o Poeta é divino,, porque nos exalta, nos eleva, nos sublima. É ele o ponto de contacto da nossa pobre alma quotidiana com a nossa efémera alma sublime."[21]

A arte, sob este ponto de vista, adquire um aspecto de libertação e de redenção. No caso português, a alma lusíada será a matéria e o espírito apresentados em constantes atividades criadoras originais e ilimitadas em infinito movimento.

Nesta primeira fase filosófica de Leonardo Coimbra, José Marinho, seu discípulo, classifica o seu pensamento como " idealista, dialético e de tendência integrante e sistemática"[22] Vemos a Saudade, delineada por ele, adquirir uma forma de sistema dialético em que matéria e espírito se apresentam, no dizer de Pascoaes, "cosmicamente fundidos num pérpetuo abraço amoroso e criador". [23]

Há um ponto ainda a se destacar em relação à contribuição de Leonardo Coimbra ao Saudosismo: a questão religiosa. Para ele, Deus é o criador e como tal o ponto supremo da realização do ser. Há pois, uma escolha do cristianismo para dar espaço temporal ao Saudosismo, isto é, a plenitude Saudosista se edifica dentro de uma cristandade na busca da pátria ideal. O Paraíso se completa na reintegração que se fizer em Deus, assim, o cristianismo de Leonardo Coimbra é heterodoxo e tende ao panteísmo.

Pensando nas diferenças entre Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, António Quadros afirmaria que enquanto " Leonardo Coimbra pensou em projeção do imanente no transcedente, no caminho do finito criacionismo humano para o infinito criacionismo divino, Teixeira de Pascoaes, mais naturalista, procurou a transcedência na alma popular e no seu gênio (...) exprimindo a filosifia popular de Portugal, implícita na língua, na história e no sentimento."[24]

Mais modernamente, Afonso Botelho [25] afirma que devemos entender o Saudosismo de duas formas: como movimento cultural e como movimento filosófico.[26]

Enquanto movimento cultural enraíza-se desde o estudo realizado por D. Duarte [27] da palavra "saudade",< na tentativa de conceitualização deste sentimento, até chegarmos ao grande idealizador do movimento - Teixeira de Pascoaes. A princípio, então, o movimento tem um caráter ontológico, isto é " procurava-se garantir assim, a realidade do movimento saudosista na caracterização saudosa do português, considerando esta como a terra fértil onde beberia o saudosismo a seiva da sua originalidade" [28] . Desse modo, buscava-se refletir um caminho mais cultural do que filosófico. Afonso Botelho nos apresenta neste primeiro momento, a estaticidade que a palavra adquire e como esta caracteriza o movimento cultural.

A partir desse caminho ampliou-se o questionamento filosófico sobre a questão do vocábulo e o movimento filosófico resultante. Este caracterizar-se-à pela busca de um "primeiro motor como garantia daquele outro movimento que no espaço se determina, ou na existência aparente das relações humanas se satisfaz." [29]

Segundo Afonso Botelho, para que o Saudosismo adquirisse uma natureza filosófica faltavam ao movimento elementos de maior questionamento filosófico. Dentre esses elementos, ele destaca, como principal, a concepção do Tempo. A concepção do Tempo, dentro do Saudosismo, é o prisma filosófico que dará ao movimento a configuração do além cultural, e o Saudosismo, colocado dentro desse tempo, tornar-se-à Sebastianista ou Criacionista.[30]

Afonso Botelho registra quatro modos pelos quais o Saudosismo se apresenta ao longo da cultura portuguesa:

- primeiramente, nas cantigas de amigo, " que já pelo saudoso sentimento (..) recebe o modo temporal dos portugueses. É uma saudade embrionária, seminal, em que o desejo prevalece sobre a lembrança ( ... ) ideal e abstrato a saudade não tem correspondência : é uma solidão."[31]

- depois, na reflexão que D. Duarte faz sobre o vocábulo : "a saudade é um sentimento ( e não um estado psíquico inferior, como o nojo, o prazer, o aborrecimento): não está vinculada necessariamente ao desejo; resulta da ausência de seres que se amam ou de estados que se estimam; a melhor saudade ( tanto por razão de ordem religiosa, como pela sobrevalorização sentimental do presente) é a que nos atualiza, pondo-nos de acordo com o tempo e dando-nos portanto prazer." [32]

- como terceiro modo, "a ausência saudosa renasce companhia do homem", isto é , a unidade dos seres reside na saudade. " A saudade aparece como o natural apetite de união de todas as coisas amáveis e semelhantes." [33]

- e, por último, a teorização de Teixeira de Pascoaes sobre a saudade. Para ele " a saudade é filha do desejo e da lembrança; mas o desejo ( como a lembrança) toma conteúdos diversos nos vários graus de iniciação. No grau filosófico será o Espiríto ou o que de Espírito há na alma; no grau mítico será Orfeu; no grau religioso será o Verbo." [34]

Estas quatro formas de entender o Saudosismo ao longo do tempo conferem-lhe um ritmo de vida que se completará com o regresso ao passado, tendo como finalidade a compreensão do futuro. A saudade torna-se reveladora de novas imagens que, na poesia, podem tornar-se transcendentes.

A poesia, ao mesmo tempo que resgata o valor dessas imagens dentro de um contexto-histórico, consegue elevá-las a um plano atemporal, nos quais os fatos adquirem sua transcendentalidade. É o caso, por exemplo, da invocação do mito de D. Sebastião: " o ritmo da vida do espírito obriga o tempo a completar-se com o regresso do passado, que por sua vez, dá sentido ao futuro". [35] Percebemos que para a passagem do cultural ao filosófico é preciso haver um progresso da conceptualidade formada a partir da imagem, isto é , da passagem " do ser anímico para o ser espiritual ou para a idéia." [36] Observamos que da transfiguração da Saudade como "solidão ", "prazer ", "união " e "transcedência" há uma superação cultural e a Saudade firma-se como movimento dentro de uma concepção mítico-religiosa.

Até o presente momento, tratamos da Saudade dividida em dois aspectos: primeiramente, a Saudade como movimento cultural e a posteriori como movimento filosófico. Como movimento cultural vimos que ela nos é apresentada sob uma forma estática e de auto gestão ontológica, isto é, edifica-se somente dentro do ser e para o ser, tendo fim nele próprio. Nessa fase, constrói-se um universo que busca a explicação dele ( o movimento) na origem da palavra ou no entendimento de seu estado de alma.

O movimento filosófico, por outro lado, apresenta um aspecto mais abrangente, pois além de abarcar o movimento cultural, quer ir mais fundo na representação desse estado de alma que agora passa do indivíduo para o social, procurando estabelecer a recondução da Pátria. O Saudosismo passou o Saudosismo a se enraizar num fundamento filosófico que lhe daria base estrutural, colocando-o num patamar de maior amplitude e tornando, assim, possível o surgimento das polêmicas relativas a ele.

António Quadros e Afonso Botelho afirmariam, a posteriori, que no Saudosismo de Pascoaes já se mostra uma reflexão filosófica de cunho " fenomenológico-existencial e psico-ontológico". [37]

A questão ontológica que se apresenta no Saudosismo diz respeito a seu desvendar e ao ressurgimento da "alma Portuguesa". Ao buscar seu renascer, Teixeira de Pascoaes, procura o que há de mais profundo no imaginário português para a reconstituição da sua Nação. O Saudosismo surge como movimento restaurador de Portugal, na busca dessa essência original. " O sentimento original da saudade é o sentimento da nossa singularidade ontológica, ou seja, da liberdade essencial do ser do homem. Se o ser, por realizar a liberdade, se singulariza e se humaniza, a saudade é o sentimento dessa humanização do ser, ou seja, da liberdade essencial." [38]

O que faltou então, a esse movimento que tinha em si raízes atávicas tão fortes para continuar o seu enriquecimento como fonte inspiradora da Nação Portuguesa?

Um dos fatores evidentes da falha do Saudosismo diz respeito ao próprio insucesso que a obra e o pensamento de Pascoaes produziam entre seus compatriotas. A resistência se efetivaria por meio da ação cultural de outros pensadores e de outras correntes que surgiam para combater o Saudosismo. Entre os pensadores é inegável a influência de António Sérgio e António Sardinha, responsáveis, segundo Afonso Botelho, por uma barreira de realismo: " um onde a crítica se encontra com a filosofia , outro onde a política se casa com a história."[39] Além da questão polêmica em torno do Saudosismo, faltou também, segundo Teresa Bernardino[40], um conhecimento mais profundo da formação da mentalidade portuguesa e um maior dimensionamento dos temas propostos pelo movimento.

Paulo Fernando Oliveira coloca sobre este ponto um aspecto fundamental: a ausência de praticidade nas propostas de Teixeira de Pascoaes. Ele afirma: " Pascoaes ao 'ler' Portugal em sua especificidade mítica, afasta-se do Portugal concreto (...) e se aproxima de um outro Portugal. Pascoaes em um dos seus movimentos, não só retira Portugal do complexo de inferioridade, retira-o da própria história que gerou este complexo e coloca-o para além da história. Por isso podemos notar em seu discurso um duplo apelo (... ) que é o apelo ao Portugal real, e o outro, ao Portugal da ordem do mítico (...). Pascoaes encontra-se numa encruzilhada, com um problema sem solução: não consegue inserir o seu Portugal-mítico no seu Portugal-real. "[41]

Finda esta breve apresentação sobre o Saudosismo, devemos perguntarmo-nos como lidaremos com este conflito. Se de um lado é proclamada a busca de um Portugal mítico, por outro lado é necessário integrar o mítico ao real. O confronto apresenta-se, a priori, sem solução. Contudo, não podemos perder de mira o argumento formulado por Pascoaes em "Epístolas aos Saudosistas". Ali ele observa: "para agir é preciso ser antes de tudo".[42]

Na nossa opinião, Pascoaes, ao afirmar tão categoricamente a necessidade de ser, estaria procurando a essência transformadora de seu povo e, por isso, esta essência só poderia ser integrada numa procura verdadeira do original, do lado mítico. Por este mecanismo, a integração do Portugal-mítico com o Portugal-real constitui um problema que só pode ser resolvido dentro de cada indivíduo, de cada alma que represente o ser português.


> 2.2. A REVISTA A ÁGUIA

A Renascença Portuguesa[43], órgão de cultura, edificar-se-á sobre o ideário que acabamos de descrever no item anterior e, segundo esse órgão, a esperança de um novo horizonte resplandesce. Essa idéia visa a reintegrar a alma da raça portuguesa à sua pureza original e procura suscitar um novo destino civilizador.

A luta pelo reerguimento nacional seria feita por meio de conferências, livros e principalmente por uma revista de literatura, filosofia, ciência e crítica social - A Águia, que revelaria a todos os portugueses a Saudade como força motriz da existência de Portugal enquanto Pátria.

A Águia, uma revista quinzenal ilustrada, de literatura e crítica, que se fará publicar desde o ano 1910 até o ano de 1932.

A Revista buscou trazer à tona os elementos nacionais portugueses, procurando o renascimento da identidade da Nação. O renascimento estaria, na Revista, preso a um direcionamento que será articulado pelos colaboradores da A Águia. Os elementos fundadores da Nação seriam, pois, revisitados e explorados como inspiração temática. Desta forma, seria apresentado na Revista um código de palavras a ser seguido pelos poetas com o intuito de revelarem a realidade portuguesa.

Os elementos mais destacados seriam: a idéia da comunicação apaixonada com as coisas, o panteísmo, a solidão, as idéias de medo, silêncio, as imagens do luar, do ermo, do nevoeiro, do remoto e da ausência. Teriam por objetivo dar um significado mais profundo à palavra Saudade e representariam, segundo Pascoaes, " a feição original do gênio português". [44] Sob essa perspectiva, eles também expressariam o sentimento coletivo do povo.

A conceitualização desta expressividade seria estabelecida na concepção de Arte que a A Águia também apregoaria. Para estabelecer este programa, Leonardo Coimbra esboçou a seguinte diretriz em relação à concepção da Arte:

" A arte é concebida dialeticamente, ou seja como uma

' dialética do sentimento': a idéia dinâmica e criadora

revelando-se em todas as suas patentes e sensíveis

conexões ou fundas e remotas implicações. ( ...) A gênese

da Arte é posta na alma quando a toma o deslumbramento

das relações cósmicas, da relação divina; ela não tem

apenas humana origem, nasce transcendentalmente do uno

que, pelo movimento, integra o diverso, ou seja do mais

fundo ser que ainda no mínimo ver e imaginar se revela e

oculta, se patenteia e esconde."[45]

A Arte, enfocada desta forma, é mais que humana, pois transmuta a Natureza do ser para uma Beleza espiritual suprema, na busca do encontro com a harmonia perfeita.

A sua função será a de expressar um pensamento original em que cada instante é um contínuo deslumbramento de possibilidades expressas pelo Poeta. " Ele, só ele, sabe extrair a eternidade ao instante. Ele vai dizer a todas as cousas mortais que há eminências que dominam o Infinito. E, no seu coração e por virtude do seu amor divino, as cousas efêmeras se volvem imortais." [46]

Com efeito, a Arte viria a mostrar o melhor aspecto da atividade saudosista e todo o seu entusiasmo, conclamando a presença dos melhores portugueses para fazerem parte da Revista. Fica claro que o objetivo da Arte em questão é atingir o espírito português em âmbito nacional e criar uma atmosfera de esperança e futura glória."O fim desta revista, como órgão da Renascença Portuguesa, será, portanto, dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui; isto é, colocá-las em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que , neste momento histórico, abrasa todas as almas sinceramente portuguesas - criar um novo Portugal, ou melhor ressuscitar a pátria portuguesa, arrancá-la do túmulo onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram." [47]

A Águia, trazendo em seu bojo a questão nacional, apresenta-nos concomitantemente um programa de combate ao caos político e adormecido da Nação. Caracteriza-se como uma Revista, que segundo António Quadros, visa a " conferir um conteúdo português à jovem República, realizar uma pedagogia de reencontro do homem português com a sua identidade, com as suas características específicas..." [48]

A revista A Águia se propõe a buscar a essência lusitana, dentro de um contexto que traga novamente as qualidades adormecidas após o esplendor dos Descobrimentos, tendo, pois, como finalidade a criação de um futuro justo e perfeito.

Raul Proença, um dos editores da Revista, observa que a maior finalidade será a de colocar o povo português em contato com o mundo moderno, sem perder de vista o parâmetro nacional. Se Proença se mostra mais universalista, o mesmo não ocorrerá com Pascoaes, preferindo dar um sentido às energias intelectuais, tendo como programa "... criar um novo Portugal (...) ressuscitar a Pátria Portuguesa..."[49]. Desde cedo, a revista seria porrtaa-voz de uma polêmica entre estas duas alas: de um lado Pascoaes com seu Saudosismo conservador e, de outro lado, um Proença, um António Sérgio clamando pela modernidade portuguesa.

Ao surgir, a revista literária tem como objetivo firmar um grupo que apresente as mesmas idéias e tendências, " um lugar de encontro de espíritos criadores mais significativos dum momento (...) , ou então, daqueles que, ainda desconhecidos do público, pretendem lançar-se no meio literário através de um órgão coletivo."[50] Entretanto, durante o processo efetivo da edificação da revista, no caso da A Águia, as querelas internas criaram cisões e alguns dos seus membros, com outras visões fundaram novos veículos literários de comunicação.

Não podemos, contudo, esquecer que muitos nomes durante esse período se sobressaíram, seja pelas questões polêmicas a ela ligadas, seja pelo programa literário que desenvolveu. O fato é que junto à Águia houve um grupo de escritores atraídos por aquela nova proposta literária. De acordo com Gaspar Simões, há na poesia de Pascoaes "qualquer coisa que se assimila facilmente... O seu vocabulário poético faz fortuna entre os discípulos para quem as paisagens são místicas, o vento tem perfil angélico, a aurora ri, as fontes abrem bocas espectrais, a névoa mostra os seios, o silêncio fala e as folhas murchas se desprendem das ressequidas almas, sem amor..."[51]


[1] Teixeira de Pascoaes ( 1877 - 1952 ) , literato, formou-se em Direito, e posteriormente, ao dirigir a revista Águia em 1912, torna-se a figura central do movivemto Saudosista. Influencia o grupo com a sua forma de pensar. O seu saudosismo é um desenvolvimento de um misticismo panteísta e espiritualista, elevando a saudade à sua exaltação máxima, expressando uma visão idealista e metafísica na sua produção poética.

[2] Teixeira de Pascoaes - Arte de Ser Português, 3º ed., Lisboa, Ed. Delraux, 1978,p. 80

[3] In A Aguia - Vol. I, 2º série, nº 1, 1912.

[4] Teixeira de Pascoaes - A Saudade e o Saudosismo, org. Pinharanda Gomes, Lisboa, Editora Assíro & Alvim, 1988, p. 44.

[5] Teixeira de Pascoaes - " Renascença", In: Águia, v.I, 2º série, nº 1, 1912, p. 2

[6] Teixeira de Pascoaes - A Arte de Ser Português, Lisboa, Edições Delraux, 1978, p. 145.

[7] Teixeira de Pascoaes - A Saudade e o Saudosismo, org. Pinharanda Gomes, Lisboa, Ed. Assíro & Alvim, 1988, p. 25.