4. CONCLUSÃO
 

" Dos painéis do Passado, em procissão!

Chovem lágrimas, flores,

Sobre o meu coração..." ( p. 15 )

 

O ressurgimento nacional, na perspectiva de Mário Beirão, inspira-se nos valores adotados e professados pela época em que vive e perpetua-se pelo modo como ele os cria em texto poético.

Beirão coloca-nos a necessidade do ressurgimento nacional a partir da rememorização de fatos e feitos históricos, como vimos nos capítulos anteriores. Assim, ele mostra-nos , a seu modo, o descortinar dos painéis do passado e seleciona os fatos marcantes dentre as inúmeras possibilidades oferecidas pela História. De todo esse processo, observamos que os heróis portugueses são exaltados e chorados pela sua ausência.

Eduardo Lourenço, no livro O Labirinto da Saudade, particularmente no capítulo "Psicanálise mítica do destino português", mostra-nos como a História de Portugal tem se construído ao longo dos tempos, ressaltando o "irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de sim mesmos" [1]. Para ainda mais à frente mencionar que " as ' Histórias de Portugal', todas, se exceptuarmos o limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de 'robinsonadas': contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor." [2]

A figura do herói isolado reflete-se dentro da criação literária portuguesa, ficando claro que na obra de Mário Beirão aparece esse "irrealismo" na criação das figuras que isoladamente compõem Lusitânia. Aliás, toda a obra de Mário Beirão estabelece esse diálogo com a História de Portugal que, na visão de Eduardo Lourenço, tem "a função de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade". [3]

É esta fragilidade que fica patente no texto poético Lusitânia. O poeta, ao descortinar os diversos painéis da História portuguesa, padece de irrealidade histórica.

Eduardo Lourenço afirma: " nós éramos grandes, dessa grandeza que os outros percebem de fora e por isso integra ou representa a mais vasta consciência da aventura humana, mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda" [4] E completa esta idéia com a necessidade de "que nos descobríssemos às avessas, que sentíssemos na carne que éramos ( também ) um povo naturalmente destinado à subalternidade" [5] .

Mário Beirão evita essa verdade que poderia ser traumática e nem de leve questiona o problema da impotência portuguesa; tudo se resume na busca da glória e da continuidade da mesma. Reverencia-se em sua obra o "termos sido" e, fazendo nosso o diagnóstico do "caso"português tão bem formulado por Lourenço ao tratar do comportamento do homem português do século XX, diagnóstico que a Beirão também se aplica, concluímos que " o viver nacional que fora sempre viver sobressaltado, inquieto, mas confiado e confiante na sua estrela, fiando a sua teia da força do presente, orienta-se nesta época para um futuro de antemao utópico pela mediaçao primordial, obsessiva, do passado. Descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós ( os portugueses ) começamos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado." [6]

Obviamente, não podemos esquecer que Lusitânia é obra datada; pertence ao movimento Saudosista e ao ideário da construção de um novo renascer português. Teixeira de Pascoaes já nos colocava a importância de o português se conhecer para saber quem é e o que deseja da pátria. Em suas palavras " impõe-se, portanto, o conhecimento da alma pátria, nos seus caracteres essenciais. Por ela, devemos moldar a nossa própria, dando-lhe actividade moral e força representativa, o que será de grande alcance para a obra que empreendermos, como patriota, no campo social e político."[7]

Esse é o objetivo da geração de Mário Beirão, mas o "conhecer" inerente ao movimento supõe a " tradução poético-ideológica desse nacionalismo místico, tradução genial que representa a mais profunda e sublime metamorfose da nossa realidade vivida e concebida como irreal." [8]

Em Lusitânia, o lado irreal e mítico se encarna na figura de El -Rei D. Sebastião, e no patriotismo exacerbado como exaltação da entidade nacional restituída ao povo:

 
 

" O Povo, os olhos abrindo,

Sonha a manhã redentora;

(...)

O Povo acorda; e , acordado,

Abraça, em sua saudade,

A manhã de claridade

Desse dia desejado!" ( Lusitânia, p. 88)

 
 

Característica fundamental da literatura de M.B., a ausência, como vimos, é o ponto de partida do caráter conflituoso - uma vez que tenta resgatar o passado no presente -, que a obra ostenta e o eixo em torno do qual gravita grande parte da sua produção artística. Não é por acaso, portanto, que Lusitânia tem uma parte toda dedicada aos " ausentes ", detalhando as personagens fundadoras de uma ideologia portuguesa.

A " ausência" impõe as coordenadas da criação desse poeta. As imagens dessas personagens revestem-se, na sua maioria, de um elevado caráter, expressando-se nelas o tipo do bom português, tal como foi definido por Teixeira de Pascoaes . Os traços com que são descritas, estão voltados para a caracterização dos "mitos fundadores" da Pátria e, desse modo, toda essas figuras apresentam uma certa igualdade descritiva.

Não há nelas conflito interior; há a aceitação de uma força maior, envolta em parâmetros cristãos. A presença dessa força traduz-se pela constância de termos que demonstram o divino em cada um dos vultos espectrais. A ausência existe não só nas imagens finais da obra, mas perpassam pela obra como um todo.

Se a idéia de ausência manifesta-se diante da memória e da melancólica saudade, as outras imagens espectrais, outonais, noturnas, soturnas, integram-se a elas para reforçar a atmosfera taciturna que paulatinamente se desenvolvem.

Cada imagem é feita com o intuito de evocar uma realidade memorável: os vultos, as histórias. Observamos que as relações entre seus feitos vão sendo tomadas de crescente emoção, a ponto de o eu-poético ver-se envolvido por todos os acontecimentos. A presença da emoção não traz, porém, uma saída para o conflito; apenas exprime um desejo de solução. É de se notar e de lamentar que a obra de M.B. não surja rica de tensões internas. Nos pólos da relação poética de seu texto existe, sim, a expressividade, o envolvimento, mas não a tensão íntima que abale a estrutura dos acontecimentos. As tensões apresentadas são a do próprio indivíduo, herói isolado, em choque consigo mesmo ou com a realidade exterior, exprimindo-se sempre em monólogos, traço estilítico característico da literatura beiraniana. A composição deste monólogo surge a partir da lembrança de um fato, de um lugar, que adquirem, na sua poesia, um certo quê de sonho. O sonho dos eu-poéticos, ao reviverem por meio da lembrança esses aspectos heróicos e históricos, evidencia a tentativa de intensificar o conflito - sempre pessoal - da obra. A base do conflito individual firma-se nessa questão da ausência: ausência do tempo glorioso, ausência do ser digno de tomar as rédeas da nação. Em suma, a busca do tempo primordial dos grandes feitos que já não existem mais.

Lusitânia promove a reformulação da realidade, pensa num caminho utópico a ser seguido, reintegra a figura do rei aos domínios da terra e coloca o povo "acordado" e "desperto" dentro da nova edificação nacional - e essa é a missão e a glória do poeta, tal como Mário Beirão o concebe e na obra estudada o cria. Na sua concepção :

" O Poeta é, assim, em última palavra, como seu supremo intérprete, o homem da lei, o orientador, o político. Junto dos govêrnos deveria, deveria assistir um Conselho de Poetas."[9]

Temos, pois, o seu compromisso frente à História.

Se, para Platão, o grande agente social é o político, para Beirão, o poeta é o agente transformador - seu conceito de poeta é, pois, de origem romântica.

Ao apresentar uma obra que dialoga com a História portuguesa, segundo o ideário pascoalino, temos em Lusitânia, um discurso que ideologicamente provém do Saudosismo e o reforça.

Concluímos que a obra de Mário Beirão busca a memória do Éden, da unnidaade originária do ser. E na procura dessa memória não faz sentido a relação temporal como mera mecânica. Passado, presente, futuro se mesclam num sonho criador de uma nova realidade tão idealizada pelos saudosistas.

 

[1] Eduardo Lourenço - O Labirinto da Saudade, 5º, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992, p. 17.

[2] Idem, p. 18.

[3] Idem, p. 19.

[4] Idem, p. 19.

[5] Idem, pp. 20-21.

[6] Idem, p. 22. ( grifos do autor )

[7] Teixeira de Pascoaes - Arte de Ser Português,Lisboa, Ed. Delraux, 1978, p. 64.

[8] Eduardo Lourenço - Op. Cit., p. 25.( grifos do autor)

[9] Mário Beirão apud Victor Santos - Op. Cit., p. 119.