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walter lima jr., o ano 2000 e a ilha dos patriarcas
Ismail Xavier

Publicado no catálogo da mostra Inocência e Delírio (CCBB/Rio, Nov-2000)
            O Brasil ano 2000 chegou. E o mundo dos negócios comanda um movimento em que a palavra de ordem é a dissolução de projetos nacionais. A própria idéia moderna de nação entra em crise, enquanto que, no plano simbólico, as iniciativas oficiais (com dinheiro público mas que aparenta ser privado) tratam das questões de identidade e formação nacional, por força dos míticos quinhentos anos. Jogamos novamente o esconde-esconde, aquele mesmo já tematizado por Walter Lima Junior quando configurou, em 1969, o Brasil ano 2000 feito de uma viagem ao futuro concebida como alegoria endereçada ao que era então presente (regime militar, hegemonia de um pensamento tecnocrático). O leque de questões em pauta naquele filme era amplo, conforme a tônica da época quando se tratava de uma reflexão sobre o atraso. Observado hoje, exibe a marca de um tempo em que a cultura produzida pelos jovens debateu a experiência social a partir de um impulso ambicioso de “diagnóstico geral do país”, quase sempre composto de uma visão amarga, mesmo que através da paródia disposta a encarar os impasses com ironia e bom humor, o lúdico definindo o campo em que a inteligência resistia face ao “sem saída”. O trato irreverente das questões permitiu então contrapor, ao grande teatro ufanista da época do “milagre brasileiro”, o drama de uma juventude que emergia para a vida social com algo mais na cabeça do que o arrivismo yuppie que terminou por se impor mais adiante. Daí porque o diagnóstico geral acentuava o fiasco, a distância entre pretensão e desempenho, a reprodução das iniqüidades sociais. Brasil ano 2000 poderia ter como título Cronicamente inviável, tal como o recente filme de Sérgio Bianchi poderia se chamar Brasil ano 2000. Não porque haja afinidade entre os cineastas, ou porque se possa identificar a tônica mais irônica do tropicalismo em seu cotejo do arcaico e do moderno com esta nova alegoria do Brasil construída na conjuntura presente, onde o painel é ainda mais amargo e provocador, principalmente quando retoma a questão do ressentimento nacional, também tematizada, em 1969, por Walter Lima Junior. Bianchi hoje nos lembra que o ressentimento dos ricos, com a vergonha de ser brasileiros, não é igual nem de mesmo efeito que o dos pobres, tal como Brasil ano 2000  já mostrava o quanto o dos jovens atrelados à ordem, passivos e subservientes, não era o mesmo dos jovens provocadores. Havia e ainda há, naqueles cujo espírito crítico não concede ao imperativo do “consenso nacional”, a vivência conflitiva de um ethos de sociedade periférica deveras complicado, onde se misturam o senso de impotência, o desconforto da condição de dependência, a angústia face à desigualdade campeã do mundo. E o debate se repõe entre as duas fórmulas (aliás não excludentes): “somos assim porque não nos deixam ser outra coisa”, ou então “somos assim porque algo interno e profundo nos impele a repetir um padrão que, na aparência, odiamos”.
              O filme de Walter Lima ressaltava a segunda destas fórmulas, aludindo com ironia a uma utópica remoção da primeira, e nos dizia que o problema maior estava no recalque do passado, no esquecimento como forma de auto-engano. Tal convite para que se olhasse as coisas de frente recebeu, nos últimos trinta anos, respostas variadas. A mais visível se deu em chave mítica, com a obsessiva criação de “memória nacional” no âmbito da mídia e com as sucessivas efemérides que a  celebração da chegada dos portugueses à terra dos índios vem culminar. Tais cultos da memória são problemáticos porque tendentes à monumentalização, comércio com a imagem desejável, em oposição ao que se evidencia na des-qualidade de vida que nos cabe a cada dia. Tais imagens encontram uma resposta crítica em filmes contracorrente como Cronicamente inviável, ou na adaptação de Chico Buarque feita por Ruy Guerra (Estorvo seria outro título possível para Brasil ano 2000), reações exasperadas diante da reiteração do que parecia, há trinta anos, mais fácil de eliminar pois a história como prática prospectiva (e não apenas como museu) parecia ao alcance da mão.
              Entre ontem e hoje, Walter Lima Junior manteve a sua “via própria”, interagindo com o tempo à sua maneira, definindo a sua tônica de cineasta de estilo variado que, no apogeu do Cinema Novo (de que foi figura destacada), deixou claros seus acenos a um cinema brasileiro mais clássico e, na diversidade de seus projetos, selou seu diálogo com Lima Barreto naquele que, sem dúvida, é um dos seus melhores filme: Inocência (1983). Na diferença de tons e de escala, não tem deixado de lado em seu percurso o que, já no filme de 1969, era um tema central: o conflito de gerações, a passagem do tempo tal como esta se expressa no terreno do romance familiar, naquele espaço primário da vivência de desejos e repressões, onde os desastres são enormes quando não é propriamente a idéia de formação que dirige a interação, mas o senso de posse, o ciúme, a castração pura e dura. Se Brasil ano 2000 começava pelo enterro do pai, este mesmo que veio a se afirmar como um princípio fatal de regressão em filmes como Inocência e A ostra e o vento, isto não dispensava os jovens irmãos da pressão instituída nessa figura, seja porque a mãe sentenciosa e repetidora fazia questão de representá-la, seja porque um espírito de ordem militar tratava de cumprir com eficácia a operação de enquadramento. Bem sucedida no caso do jovem, tal operação produziu a figura do inconformado impotente, frustrado e ressentido, que veio a ter muitos herdeiros no cinema brasileiro posterior. Felizmente, porém,  a operação falhava diante da figura mais forte e afirmativa de Ana, que ao fim tinha fôlego para a ruptura e fazia da desilusão com a figura masculina um motivo para tomar o caminho da estrada. Embora o narrador então ainda lhe reservasse uma ponta de ironia (pois esta era a tônica do filme), ela não perdia sua condição de uma sobrevivente do trauma da ordem, alguém que teve mais sorte do que as moças que viriam às telas em outras décadas, Inocência e Marcela (de A ostra e o vento). Estas viveriam embates mais diretos com o olhar do pai (em todos os sentidos) e, dado essencial, estariam atreladas a um tempo passado onde tal figura podia exercer seu controle com mais desenvoltura. A cidade alegórica de Me Esqueci, embora província, se transformara em junção de passado e futuro, ponto de passagem e de arejamentos, sem o sufoco radical da ilha do farol ou da fazenda matogrossense do Segundo Império, lugares da vitória do ocaso sobre a primavera, do conceito de honra que legitima desmandos e desejos inconfessáveis.
              Se insisto aqui nesta constelação da família, é porque vejo uma constante curiosa neste grupo de filmes de Walter Lima Junior cujo drama central depende de uma ausência (materna, no caso de Inocência e Marcela, paterna na condição mais afortunada de Ana) que termina por marcar os destinos. Em verdade, tais perdas precoces estão lá desde seu primeiro longa, Menino de Engenho, onde a orfandade é o ponto de ignição, focalizada aí em tempos que estão longe das novas experiências urbanas do menino de rua onde o abandono radical é vivido na selva das cidades e sem perdão, longe da sombra dos engenhos, da família cheia de agregados, quando o estar junto à natureza e à criadagem era um dado de formação que impulsionava o que havia ainda de promessa no despertar de Carlinhos, o menino de engenho, mesmo dentro de um universo social em decomposição. Se os pixotes não têm mais a chance de um romance de formação, porque a sociedade lhes impõe cedo demais a deformação e a violência, é sobre esta dificuldade mesma (e o fracasso) da formação no seio de uma ordem fechada que o cinema de Walter Lima tem se detido, notadamente em cenários que se pautam pela mediação da experiência literária, laboratório de sentimentos que, pela redução das variáveis ao mínimo,  permitem tornar mais nítida a equação.
              Talvez por um impulso de feição romântica, em  Inocência e A ostra e o vento, seu cinema se voltou para os confrontos vividos em terrenos pré-modernos, que põem em cena experiências de uma força da natureza, um ser afirmativo que se debate diante de um mundo confinado que tem a fisionomia do passado. Esta pode ser de um tempo histórico de coordenadas bem nítidas como a dos engenhos já motivo de toda uma crônica da decadência, mas pode se oferecer, ao contrário, na feição bem particular de uma vivência ilhada, meio fora do tempo que, no entanto, espelha um rito de passagem vivido por toda parte: não é preciso estar aninhado em tais casulos como o que cerceia Marcela para ser afetado pelo conflito (basta lembrar a recepção ao filme dada pelos jovens das grandes cidades). Tanto em Inocência como em A ostra e o vento o elemento chave é o ambiente em que vivem suas moças atormentadas, pois aí a natureza não é apenas um campo de metáforas, de resto exploradas nos dois filmes, mas também o campo da experiência possível que conforma o imaginário das próprias personagens, homens e mulheres, embora o dado central seja o sacrifício das figuras femininas.
              Vale observar no cinema de Walter Lima um autêntico inventário de experiências desafortunadas que a ordem patriarcal impõe. A agressão à mulher como gesto reiterado começa lá em Menino de Engenho, cujo prólogo já nos leva ao mundo das paixões e do ciúme, da possessividade enlouquecida que gera a tragédia doméstica da qual o menino sobrevive  para contar a história de uma formação em chave melancólica. Desde então, em parte pela própria forma como são tratadas nas obras de origem, as figuras masculinas ressentidas e repressoras não se desenham, nos filmes, na tônica do pai-vilão, agente do mal. Carregam também seus nós e aflições, enredadas que estão numa reflexão mais ampla que o cinema de Walter Lima faz sobre o tempo. Há uma cadeia de vinganças regressivas, sem dúvida, mas as figuras reacionárias põem aí a nu a engrenagem do medo e a própria solidão, pois cristalizam o desastre dos que, em função de um horizonte acanhado, lutam contra o irremediável. Claro que a experiência mais difícil é a dos que são obrigados a caminhar em círculo por força do que impõe a figura repressiva, ou dos que, testemunho do desastre gerado pelo confinamento, não conseguem se livrar do passado, como o Daniel de A ostra e o vento. As tensões que marcam o choque original ou o impasse insuperável ganham expressão no estilo de algumas seqüências, justamente as que põem em foco a consciência atormentada, seja de Marcela, de Inocência, ou mesmo do menino quando aflora o trauma do assassinato da mãe. São passagens em que se desestabiliza a opção por um estilo que tende a dialogar, como observei, com o cinema clássico, momentos de perturbação em que a agitação da personagem gera imagens descontínuas ou repetições (o plano da mão crispada de Carlinhos a arranhar a parede, o corpo de Inocência atormentada na cama, a cópula de Marcela com o vento). São formas de atar início e fim das histórias para definir a tonalidade dos dramas cujo desenlace é ofensivo no seu desperdício de vidas, ou para marcar a tonalidade da comédia de Brasil ano 2000 em sua lida com um mundo acanhado, de um provincianismo que não se reconhece. Nisto,  Me esqueci equivale ao engenho condenado, à ilha perdida no oceano, à fazenda onde o cientista de passagem sugere que se exibam as moças como as borboletas. Mundos confinados e condenados, porém efetivos ainda no seu trabalho de contenção do tempo e dos desejos. Estes, porém, os invadem por todos os flancos através daquilo que está de passagem e desafia a imobilidade, como o forasteiro, o vento e o próprio cinema.
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