Depoimento de
descendente
José
Guimarães Alves (1910-1992),
neto
[Palestra proferida em 1946, na Semana de Arte Moderna,
realizada em Belo Horizonte, Minas]
Minhas
senhoras, meus senhores: Ao ler os jornais de hoje tive a surpresa de ver-me
classificado como um "escritor jovem". É isso, evidentemente, uma
bondade que partindo do meu amigo dr. Guimarães Menegale foi encontrar
ressonância no afeto dos meus companheiros de jornal e confrades de imprensa.
Não sou jovem e tenho dúvidas de que seja escritor. Digo-o sem falsa modéstia e
principalmente para merecer de vós todos aquela dose de tolerância devida aos
que, embora se oferecendo diariamente ao público em forma escrita nas páginas do
jornal, nem por isso chegam a se considerar escritores, as apenas aprendizes. Que
o ofício de escritor é longo, longo como tempo que ainda não vivi, e cheio de
experiências que ainda não tive, e de livros que ainda não publiquei.
Passando pois desse intróito
necessário eu vos falarei sobre Bernardo Guimarães de quem sou neto pelo lado
materno.
Esta circunstância, que poderia
me dar alguma base para falar sobre o homem, tira-me, por outro lado, a isenção
necessária para falar sobe o escritor, romancista e poeta, a cuja memória me
prendem laços de veneração e amor.
Uma coisa eu posso afirmar com
toda a certeza. A vida de Bernardo Guimarães é muito menor que a soma das
anedotas que a seu respeito se contam. O fenômeno se explica quando se sabe que
nos serões das velhas cidades mineiras os inventadores de anedotas, desejando
prestigiar as próprias criações, só possuíam um recurso: atribuí-las ao
velho Bernardo. E com isso o sucesso e a sobrevivência podiam se considerar
certos.
Não sou eu quem vai desmentir
que Bernardo Guimarães não foi um boêmio. Foi, porém, muito mais no sentido
espiritual do homem despreocupado as coisas imediatas da vida, contemplativo e
sonhador, do que no sentido material, epicurista. Nesse ponto é que se fez em
torno de sua figura de homem um anedotário fabuloso.
Para desmentir isso basta ver que
Bernardo Guimarães foi um dos escritores mais fecundos de seu tempo, um dos mais
trabalhadores. Tendo morrido com apenas 59 anos, deixou uma obra de 16 volumes,
dos quais quatro são de poesias. E 16 volumes são qualquer coisa de respeitável
__ mesmo sob o prisma exclusivo do trabalho e não do valor.
Em certa parte, a culpa do
anedotário que se ergueu em torno da boemia do velho Bernardo pertence ao
próprio Bernardo, ou melhor, ao seu temperamento avesso às convenções sociais
Bacharel em Direito pela
Faculdade de São Paulo, veio atrás dele a fama da "Sociedade
Epicuréia", que se notabilizou na capital paulista, não só pelo talento de
seus três membros __ Bernardo, Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa __ como
notadamente pelas extravagância com que abalavam a austeridade dos paulistanos.
Além disso, num tempo em que ser
juiz implicava o abandono do riso e da acessibilidade, Bernardo Guimarães foi
nomeado juiz __ e de onde, meus senhores? De Catalão, no Estado de Goiás. Hoje, mesmo com a Panair e a estrada de ferro nos deixando à porta da
Comarca, duvido que algum bacharelando aceite o cargo com muita satisfação. E
Bernardo aceitou-o e cumpriu-o, sem todavia abandonar suas características e
gostos bastante diferentes da sisudez imposta aos julgadores de todos os tempos.
Tinha uma bela voz de barítono e
gostava de cantar ao violão, instrumento que tocava muito bem. Além disso
desenha e esculpia, habilidades que só mais tarde passaram a ser, em nossa
província, recomendações para a capacidade de um homem. E era poeta.
Esses elementos, em jogo com as
convenções e preconceito do tempo, deram azo à fábula. E Bernardo vê-se hoje
envolto numa auréola de humor boêmio...
Em verdade ele foi um
despreocupado da coisas com que os homens se preocupavam, e se preocupava com as
coisas que os homens só despreocupadamente se ocupam. Tal como na frase do
filósofo chinês.
Amava o imperador D. Pedro II,
que lhe oferece o título de barão. Bernardo Guimarães agradeceu e acrescentou,
à guisa de explicação da recusa:
- De que vale, Majestade, ser
barão sem baronato?
"E ninguém __ dizia-me D.
Thereza, a santa esposa de Bernardo __ deixou de censurar o poeta pela
recusa".
Ter título de barão era suprema
aspiração. Bernardo achava, porém, que era apenas rima.
O seu trabalho intelectual pouco
lucro lhe trouxe. Ele nunca vendeu por mais de trezentos mil réis a edição de
seus melhores livros. Esse foi aliás o preço dos direitos de "Novas
Poesias" adquiridos por contrato assinado a 5 de abril de 1875 pelo editor
Garnier. A magistratura e o magistério, exercidos nos lugares mais inóspitos do
Brasil, não lhe deram mais interesses que as letras.
Bernardo Guimarães morreu a 10
de março de 1884 em Ouro Preto. Morreu pobre mas não deixou uma dívida sequer.
A última conta que pagara em vida __ nota de ironia numa existência sem faustos
__ foi uma conta de... perfumes.
Em seu lar existiu todavia tudo o
que era necessário para fazê-lo um solar de belezas, de alegrias, de virtudes: o
seu amor, imensa paixão pela esposa e pelos filhos, sua tradição de honradez,
sua estima à coisas do espírito, sua bondade humana, seu talento e
seu...violão. |