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Egas Moniz

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Transcrição do livro:

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Cruz Malpique

Prof. do liceu de Alexandre Herculano, do Porto

 

EGAS MONIZ

 

Um paradigma como professor-investigador universitário

 

Considerações marginais

AVEIRO

1969

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Escritório de Egas Moniz

 

«...gran Egas Moniz, uno de los últimos grandes génios científicos latinos.»

(Gregório Marañón, Obras Completas, t. I, pág. 386, Madrid, 1966).

Egas Moniz, teve sempre a aspiração de trazer algum contributo original à Medicina. Textualmente são estas as suas palavras:

«A ânsia de concorrer para aumentar o património científico desde início me seduziu» (Confidências de um Investigador científico, pág. 10, Lisboa, 1949).

Mas quando enveredou para a investigação científica, não faltou quem zombasse do seu propósito. Ele próprio se refere ao caso: «...Depois havia a crítica dos incapazes de trabalho original a denegrir as intenções e os méritos alheios.»

E acrescenta:

«Com que pompa ouvi dizer, em provas de concurso, a um catedrático sabedor, que em Portugal não havia nem podia haver investigação científica! Dizendo isto, olhava-me de soslaio, para notar uma impassibilidade que havia de contundir com o seu orgulho de desastrado pregoeiro anticientífico! Já ao tempo clínicas estrangeiras tinham adoptado a angiografia cerebral na prática corrente e davam a melhor atenção à leucotomia prefrontal, ambas, felizmente, inovações portuguesas.

E prosseguiu em tom de censura, a que a sua situação e gravidade com que proferia as suas palavras davam especial colorido. Como se numa terra onde se não sabe o que há feito em outros países se pudesse fazer investigação!

Este catedrático proclamava o derrotismo científico e o seu brado tinha ressonância no meio escolar, onde possuía prestígio, fazendo lavrar a descrença duma incompetência colectiva, quando era apenas pessoal.»

Noutro passo das Confidências, quando as suas investigações já iam muito adiantadas no caminho do franco êxito, escreveu:

«Formou-se então uma oposição sistemática e ordenada contra a arteriografia em geral e a do cérebro, muito em especial.

Uns não queriam conhecer factos, preferiam ignorá-los; outros acusavam-me de malefícios trazidos aos doentes, quando os seus cuidados pela vida humana não eram de molde a servir de exemplo; ainda outros atacavam o homem, a quem apodavam de antigo político a querer agora dar-se ares de homem de ciência; e todos, em coro, bramavam contra mim. No fundo, receavam que alguém pudesse elevar-se acima dos seus múltiplos e excelsos méritos de professores, cuja a fama, porém não excedia o círculo restrito dos alunos que receavam os seus RR. Eu sentia a campanha em todas as suas modalidades e apesar de ter sido, nessa época, mais feroz do que nunca, não me impressionou. Segui imperturbável o meu caminho.»

O Prof. Doutor EGAS MONIZ, na sua casa de Lisboa.

O Prof. Doutor EGAS MONIZ, na sua casa de Lisboa.

 

Quer dizer: aqueles que faziam campanha contra o investigador, sobre não serem capazes de nada levar a cabo no progresso da ciência, ainda permitiam jogar ao cepticismo (e porventura à troça) com quem tomava as suas funções de professor universitário muito a sério. Esses tais supunham ingenuamente (?) que ser professor a nível universitário consistia apenas em repetir a ciência alheia. Relativamente a esses senhores, escrevia Egas Moniz palavras oportunissímas, que constituirão a base fundamental do nosso comentário:

«... Depois é fácil repetir o que dizem os livros e revistas, especialmente quando os outros têm dificuldade em consultar as origens. Vivem estes catedráticos unicamente de ciência alheia, esquecendo que ao professor universitário, cabe outra missão a realizar.

... As Universidades não podem nem devem ser constituídas por aqueles que apenas se contentam com a ciência feita. Perdem a sua característica máxima.

... Aos que chegando ao professorado, julgam ter alcançado o máximo da carreira, devemos dizer-lhes que é necessário mais alguma coisa de que repetirem-se, anualmente, nas suas lições.»

De facto, o professor não deve ser o simples repetidor do alheio. De uma só vez, será a inteligência que investiga de conta própria e a inteligência que, para além de comunicar o espólio científico em circulação, comunica também os resultados originais da sua específica investigação.

MÉDICO HUMANISTA

EGAS MONIZ foi bem o protótipo do médico humanista, que fez, portanto, uma medicina de viva simpatia pelos seus doentes. Quando um louco o crivou de balas, e ele esteve na iminência de morrer, o comentário então feito, ouvido pelo Prof. EDUARDO COELHO, foi este: «e eu que lhe queria fazer tanto bem!».

Ao nível dessa humanidade e simpatia no convívio com o doente, só podemos mencionar outra grande figura da medicina - GREGÓRIO MARAÑÓN.

A investigação científica de EGAS MONIZ não se processou ao nível do laboratório puro, mas da clínica era aquele que mais o aliciava.

Esse processo da investigação ao vivo lho contestaram os oficiais do seu ofício - os professores universitários que só admitiam a investigação ao nível laboratório, e não na vida humana.

EGAS MONIZ não foi o sábio divorciado da vida e do mundo. Considerar-se-ia diminuído, se tomasse essa atitude. Não se cingiu ao virtuosismo de uma técnica de laboratório, para se ficar nela. Se o fizesse, ficaria diminuído na sua mundividência. Para falarmos depressa: não foi o puro especialista, de vistas unilaterais. Procurou ter, do mundo, uma visão plurilateral. Foi homem culto - e não apenas um erudito. Se quisermos ser mais exactos, diremos que foi um espírito humanista, não só no sentido renascentista (conhecendo o latim e o grego - lia ARISTÓFANES no original), mas também no sentido actual: o da ampla curiosidade voltada a todos os sectores do saber, no jeito do homem que se teria por frustado, se acaso se mantivesse circunscrito ao debruço sobre uma cabeça de alfinete. Entendia que a cultura universal não faz mal aos especialistas, antes pelo contrário. Era como se perfilhasse o dito de VITOR DURUY: Il faut être universel au profit de la spécialité..

Muito terencianamente, praticava a divisa de que, sendo homem, nada do que era humano lhe era indiferente. À maneira de PROTÁGORAS, também ele promovia o homem a padrão de todas as coisas. O homem não está apenas neste ou naquele ramo do saber. Está em todos, que múltiplos são os aspectos pelos quais ele pode ser perspectivado. Como deixaria, pois, um homem da estirpe terenciana ou protagonista, como foi EGAS MONIZ, de se interessar pela literatura, pela arte, pela história, pela filosofia, sem falarmos, evidentemente, dos assuntos da medicina em geral, e particularmente os da neurologia, em que foi primeiro entre primeiros? Não foi nenhum portento, nos sectores que demoravam para lá dos temas da sua especialidade. Mas considerar-se-ia frustado, se não abarcasse toda a multiplicidade de problemas respeitantes ao homem.

Não blasonou de requintes estilísticos. Nada que se parecesse com isso. O que teve a dizer, em crítica literária, em crítica de arte, em descrições de paisagem, em narrações autobiográficas ou históricas, disse-o sempre num estilo terra-a-terra, muito humano.

Daremos, aqui, uma breve página literária de EGAS MONIZ, relativa ao Abade de Baçal:

«Estou a vê-lo! Belo tipo de abade aldeão de outros tempos, cajado em punho, que lhe servia de arrimo nos últimos tempos, quando calcorreava os oito quilómetros que separavam a capital do seu distrito da calma e pacata aldeia que paroquiava. E mais dele carecia quando, ainda há poucos anos, ia de longada, e sempre a pé, até ao Seminário de Vinhais, para as reuniões do clero nos exercícios espirituais. Trinta quilómetros de viagem, a que não faltavam ladeiras, a saca multicor ao ombro, com a batina, breviário e farnel, e a alegria do caminheiro no rosto trigueiro e castigado pelas intempéries.

Um dia, fazendo o longo percurso, foi encontrado por um colega que seguia o mesmo destino, montado em mula bem ajaezada.

- Então, Sr. Abade, a pé?

- É para não perder o hábito de andar...

E os dois homens foram seguindo em amena cavaqueira:

- Se me dá licença, cumprimento aqui um velho amigo que não me perdoaria se soubesse que passava sem lhe falar.

Apareceu logo o lavrador, em mangas de camisa, todo sorridente:

- Ó Sr. Abade! Faz favor de entrar. Temos cá uma pinga que tem sido muito gabada, e umas alheiras que as não há melhores...

Nesta altura dá pela presença do Abade de Baçal que, a distância, limpava o suor do rosto.

- E olhe, diga também ao seu criado que entre.»

Todas as páginas literárias de EGAS MONIZ são tão simples de estilo como essa que aí fica. Não presumiu grande escritor. A literatura foi, para ele, apenas um hobby. Nada mais.

E é claro que se EGAS MONIZ não teve o propósito da eloquência na literatura - tomada esta palavra como sinónima de expressão estética -, muito menos o teve (ainda bem!) na exposição de temas científicos, onde toda a retórica estaria deslocada. Nesse ridículo nunca ele incorreu - honra lhe seja!

EGAS MONIZ foi, acima de tudo, investigador científico.

As Letras foram o seu violon d'Ingres, relativamente à investigação científica. Esta sim, que foi a actividade nuclear de toda a sua vida universitária, embora só a partir dos 51 anos ganhasse maior e decisivo incremento.

No polipeiro de curiosidades que EGAS MONIZ foi, viram os seus detractores um pretexto para a dispersão de espirito, e não era por este processo que se vai longe, sobretudo na investigação científica.

Pois redondamente se enganam. Onde eles viam dispersão de espírito crepitava apenas uma alta chama que sofregamente apetecia alcançar o âmago de todas as verdades - a científica na linha da frente. Não há para dar significado profundo a um aspecto do todo como quando se possui, inteligentemente, uma perspectiva sobre esse mesmo todo.

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Ex-libris do Doutor Egas Moniz.

Ex-libris do Doutor Egas Moniz.

 

EGAS MONIZ aproximava assim as afinidades existentes entre as obras de arte e a investigação científica - «afinidades que se apercebem nos pontos culminantes das suas realizações»:

«O verdadeiro artista que se concentra no seu labor e consegue obter uma obra em que a beleza de forma e da cor é a expressão do ideal imaginado tem, quando realizada, um grande e levantado prazer espiritual.

Diz-se que MIGUEL ÂNGELO, ao terminar a sua impecável estátua de MOISÉS, batera com o martelo no joelho [da estátua], gritando-lhe: - Fala!

A obra dera-lhe a noção da vida na forma impecável da inspiração do seu génio inigualável. Queria agora impor-lhe a reacção vital que só lhe poderiam conceder os deuses imortais. Mas o mármore de MIGUEL ÂNGELO a todos fala do esplendoroso génio escultural do seu inspirado autor.

... O cientista que se dedica à investigação científica e pretende trazer alguma coisa de novo para aumentar os conhecimentos adquiridos, desvendando o desconhecido, também pode viver o inefável prazer das realizações felizes e admirar os novos horizontes da concretização do pensamento inicial.

... Quando em 1927, depois de longos e repetidos trabalhos no cadáver e no animal, realizados em Santa Maria e no Instituto Rocha Cabral, apliquei o método ao homem - salto que nos levou longas semanas de preocupação e anseios! - tive fortuna de ver, pela primeira vez, opacificadas as artérias cerebrais no homem.

Vivi a hora mais alta da minha existência! Nenhum outro momento se lhe aproximou. Senti perpassar por sobre a minha cabeça o sopro criador, que nas lendas concedem aos dominadores dos mitos, igualmente àqueles que devem sentir os grandes artistas ao realizar obras de grande tomo.

É no íntimo prazer das realizações científicas e artísticas que mais se aproximam as duas actividades, aparentemente díspares e distanciadas.»

Por ser ele próprio um criador, compreendia (e sentia) perfeitamente a euforia dos grandes artistas criando as suas obras. Não falava de cor. Só aprendemos e sentimos bem aquilo que nós próprios descobrimos ou inventamos. E só compreendemos e sentimos, em profundidade, as criações dos outros - as científicas ou artísticas - quando vivencíamos situações flagrantemente parecidas com essas tais.

NÃO QUIS SER O SIMPLES

REPETIDOR DO SABER ALHEIO

EGAS MONIZ podia limitar-se (como o fazem tantos professores universitários) a dar lições sobre textos alheios, e a não passar daí, embora actualizadíssimo relativamente a tudo que se fizesse lá fora. Não seriam inúteis essas lições, está claro. Não há mesmo maneira de o evitar, uma vez que todo e qualquer professor chegou muito tarde, a um mundo já muito velho, e não pode presumir de tudo criar ab initio. Por ser isso uma verdade axiomática, não vale a pena insistir nela.

Mas deverá o professor universitário limitar-se a esse programa? EGAS MONIZ entendia que o magistério universitário devia exorbitar desse perímetro, transmitindo, para além da ciência criada pelos outros, ciência criada de conta própria. Isso, sim, que estava a nível universitário. Se professava neurologia, ficava-lhe muitíssimo bem dar o seu contributo pessoal nesse sector. Assim o pensou, e de acordo com o seu pensamento actuou, não obstante saber da surda (e às vezes nítida) hostilidade que os pedantes da rotina, os homens da pure suffisance livresque, lhe moviam. Esses tais, com efeito, sobre não fazerem investigação (se é que para tanto teriam génio), ainda se permitiam desdenhar de quem, no seu país (lá fora estava bem...), se aventurasse por esses caminhos. Em boa verdade (durus est hic sermo, mas importa chamar às coisas pelos seus nomes), esses pedantes da crítica derrotista eram, como investigadores, pouco mais do que zeros à esquerda da unidade. E sempre os medíocres se doeram de quem lhes fizesse sombra.

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A propósito de RAMÓN Y CAJAL, escreveu EGAS MONIZ, referindo-se às primeiras descobertas daquele:

«O Mestre não reclamava a sua obra, não a exibia perante os que, por competência especial, a poderiam apreciar; o seu nome não se tornaria conhecido nos sinédrios estrangeiros e, intra-muros, apenas professores derrotistas roufenhavam a incapacidade espanhola para a investigação científica.

- O quê? É CAJAL que quer julgar os sábios estrangeiros?

A frase vem citada nos "Recuerdos", mas se soou mal aos seus ouvidos, não criou desalentos. O caminho estava aberto, e com a sua vontade inquebrantável desprezou os zoilos e continuou porfiando, estudando e investigando.»

Se, onde está aquele «apenas professores derrotistas roufenhavam a incapacidade espanhola para a investigação científica», substituirmos espanhola por portuguesa, a coisa até pareceria autobiográfica. É que na altura em que EGAS MONIZ fazia a leitura da Obra de RAMÓN Y CAJAL, ele próprio sentia que, à sua volta, alguns professores derrotistas roufenhavam...

Os detractores de EGAS MONIZ eram homens que juravam pela ciência feita, esquecidos, os desgraçadinhos!, de que a ciência nunca está feita, antes se está fazendo e refazendo constantemente, sendo temerário (e estúpido) jurar por uma ciência ne varietur. A ciência de hoje emenda a de ontem, a de amanhã emendará a de hoje. Vir insinuar que se alcançou o definitivo, é não ter sombra de conhecimento do que seja a verdade científica, feita de aproximações sucessivas.

Seja o próprio EGAS MONIZ a depor:

«Os professores que se fixam na crença dos textos lidos, sem que no seu espirito haja uma crítica ou surja uma dúvida, podem ensinar coisas úteis aos alunos, mas nunca merecerão o título de Mestres universitários.

Não é exacto, como pretende CHARLES NICOLLE, que o poder inventivo é faculdade inata, uma disposição especial, apenas acessível a certos espíritos predispostos. Por isso conclui que não se pode fazer uma Escola de Inventores.

Ora o gosto pela investigação científica tem de criar-se na escola experimental, base de toda a ciência biológica. Deixar ao acaso, sem cultivo, aqueles que se sentem com vocação para trabalhos desta ordem é cortar-lhes cerce os voos.

Pior ainda é aparecerem censores sistemáticos a amesquinharem os que dão os primeiros passos neste campo difícil. Infelizmente os detractores pululam mesmo em gente culta, entre aqueles que não têm aptidões nem capacidade de trabalho, e preferem às investigações cuidadas e seguidas a leitura dos livros, contentando-se em citar autores como suprema demonstração de alta cultura e elevados conhecimentos. Que os tenham e utilizem, sem exagero, está bem; mas ficarem aferrados a tais critérios é andar, em ciência, por caminho errado.»

* * *

EGAS MONIZ concorreu largamente para a criação do gosto da investigação científica. Importa não perder de vista as suas sugestões. Deixemos falar os derrotistas. À voz desses tais (como á dos asnos) o céu não dá ressonância.

De facto, EGAS MONIZ não foi simples repetidor do alheio, sem com isto pretendermos dizer que desprezasse ou menosprezasse o saber alheio, atitude que só revelaria estupidez. Entendia, porém, como professor universitário, que não lhe faltava bem passar o seu magistério a ser gramofone dos outros. O autêntico professor universitário timbra em investigar de sua conta e risco, em criar escola, em orientar discípulos para as superiores tarefas da criação pessoal, em lhes despertar o espírito crítico, sem o qual todo o trabalho de pesquisa corresponde a ovo gorado.

O mero repetidor do alheio não fica mal situado num liceu, ou numa escola técnica elementar. Mas destoa - se destoa! - numa Universidade. E não o esqueçamos: mesmo criando no seu sector próprio, importa que não perca as perspectivas de conjunto. É essencial que saiba integrar o seu sector restrito no plano da larga mundividência . A sua atitude há-de ser profundamente humanista.

EGAS MONIZ não levava à paciência o professor universitário mero fonógrafo da ciência dos outros. São dele, e a propósito, as palavras seguintes:

«Aos que chegando ao professorado julgam ter alcançado o máximo da carreira, devemos dizer-lhes que é necessário mais alguma coisa do que repetirem-se anualmente nas suas lições. Porque não se exige aos professores, de tantos em tantos anos, a prova da sua actividade em trabalhos e publicações, podendo ser irradiados os que provarem a sua incapacidade científica? Porque deixar pulular essa categoria de mestres inactivos, espalhados pelas diversas Faculdades, e que não passam de ser eco dos livros, sem contribuição de trabalhos próprios, nem referência à sua observação pessoal? A época da didáctica estéril passou»

Mas não em Portugal - viveiro de fonógrafos do alheio, ressalvadas algumas excepções.

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O Prof. EGAS MONIZ, examinando uma radiografia, a pedido de um médico inglês.

O Prof. EGAS MONIZ, examinando uma radiografia, a pedido de um médico inglês.

 

O verdadeiro mestre universitário não teme de problemas intrincados. Até tira prazer da meditação sobre eles, mercê da qual os ilumine, em condições de os comunicar com diafanidade aos seus alunos. O autêntico mestre é um dilucidador do confuso, é o poderoso telescópio que «resolve» as nebulosas que, à infinita distância a que encontram, parecem simples poalha luminosa, mas que, afinal, são colossais aglomerados de estrelas distintas umas das outras. Outrossim, o autêntico mestre tem de ser, necessariamente, um investigador, um criador, um homem de ciência quanto possível de conta própria, ainda que não ao alcance os rasgos transcendentes do génio - porque os génios contam-se pelos dedos. De facto, se não tiver investigado nada, se for mero repetidor do alheio, como criará clima propício à investigação científica, entre os seus alunos? Só é possível falar-se conscientemente daquilo que se conhece em primeira mão. A rigor, só sabemos a fundo o criámos. No mais, somos eco. Eco, em vez de voz própria, inconfundível, originária.

Mais ainda:

O professor docet. O aluno discit. Está bem. Mas de tal maneira que o professor não dispense o aluno de colaborar, chamando-o para o diálogo, sempre que seja possível - e tudo se deve fazer para que o seja. O professor deve ajudar o aluno a criar ciência, não se justifica que apenas lhe peça que a repita, inteiramente criada por outrem. O professor ensina. O aluno aprende. Se apenas o mestre está na posição de dar e o aluno de receber - o primeiro, parecendo que dá, afinal tira; o segundo, parecendo que recebe, está, em boa verdade, sendo roubado.

EGAS MONIZ investigou, dia a dia, tirando, dos seus recursos intelectuais, o contributo inédito que realmente podia dar à ciência da sua particular predilecção - a neurologia. Um austero imperativo deontológico lhe pedia, prementemente, que não se devia ficar na repetição, mais ou menos fonográfica da ciência alheia. Era preciso inovar. Portugal, apesar de ter uma tradição de rotina intelectual (ressalvada a época dos Descobrimentos marítimos), podia trazer ao mundo algo de novo, no respeitante à investigação científica. E se EGAS MONIZ bem o pensou, ainda melhor o provou, O Prémio Novel não lhe foi atribuído por acaso.

PALAVRAS SUAS, SOBRE

A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA

A tarefa da investigação científica não tem fim, porque fim não têm as incógnitas que ainda esperam interpretação da inteligência humana. São de EGAS MONIZ as palavras seguintes:

«A ciência não tem limites, os horizontes alargam-se cada vez mais. Não há balizas a demarcá-los, estendem-se até ao infinito.

Dois propósitos devem dirigir os passos dos cientistas de hoje:- fazer a revisão meticulosa dos conhecimentos adquiridos e realizar novas conquistas na obtenção de factos ainda não observados.

A investigação é a estrela que dirige os passos dos caminheiros nas diversas estradas que a Ciência vai abrindo na rosa das sucessivas divisões do saber humano.

Os que aspiram a alcançar novas realizações, devem localizar-se no estudo de um determinado problema. Para o resolver, toda a vida cerebral é indispensável. É necessário experimentar, observar e também meditar sobre a solução das hipóteses que vão aparecendo. Sem este cenobitismo científico, dominador, por vezes, exaustivo, nada surgirá, que possa ser verdadeiramente útil.

Diz-se que para a investigação científica é preciso vocação. Não o nego. Mas esta é apenas a ânsia de novas verdades. O mais alcança-se nas boas escolas experimentais, nas observações cuidadas e repetidas e na independência da apreciação, fora do domínio de ideias preconcebidas.

O investigador nunca se deixa tomar de desalento. Um ou mais insucessos podem contrariá-lo; mas nem por isso deixa de prosseguir. A persistência, que um grande mestre considerou a virtude dos modestos, é a luz que a todos deve guiar. Sem trabalho aturado, tudo é estéril.»

O génio da investigação científica não é apenas paciência (= vontade pertinaz). Certamente que não. É também - e sobretudo - inteligência, intuição e inspiração. Mas não iriam estas muito longe, se não tivessem a auxiliá-las a transpiração. Não chega a ser inteiramente quixotesca a definição de génio dada, algures, por EDISON, em resposta a alguém que lhe dizia que, sendo ele génio por natureza, dava tão naturalmente invenções como a pereira dá pêras: "Genius is one per cent inspiration and ninety nine prespiration"

EGAS MONIZ dava um particular relevo à persistência e ao estudo aturado, ao full-time, para o bom êxito na investigação científica.

* * *

ANTERO, num desabafo terrível, escreveu: «A ociosidade é o ideal dos Portugueses, mesmo daqueles que trabalham.»

Não foi o caso de EGAS MONIZ que, ainda mesmo depois de jubilado (a jubilação corresponde à ociosidade por decreto...). continuou as suas investigações. É que, a par da sua inteligência privilegiada, possuiu sempre a mais vertebrada das vontades.

Ignoramos se ele subscrevia a afirmativa de HERCULANO, feita há cem anos precisamente (estamos escrevendo em 1969), segundo a qual a vontade tinha primazia sobre a inteligência. [«Sempre tive - escrevia HERCULANO a OLIVEIRA MARTINS - grandes dúvidas sobre a doutrina da superioridade das inteligências. No que acreditava, na época em que pensava nessas coisas, era na superioridade das "vontades". O querer é que é raro, e tenho a consciência de que fui um homem que "quis", nas coisas literárias»]. O certo é que EGAS MONIZ conciliou, à maravilha, uma rara inteligência - e intuição - para a investigação científica, com a mais inquebrantável das vontades. Baldadamente a crítica derrotista quis desanimá-lo, mas sem nada conseguir, por esbarrar contra uma vontade invencível. A critica malévola latiu, mas ele passou...

A vontade, certamente, não é toda a essência do homem como Schopenhauer proclamou num livro célebre. Certamente que não. Mas, sem ela, a inteligência vê-se minimizada. Os triunfos, em todos os sectores da investigação (e, afinal, da vida), são sempre o resultado do consórcio de três factores: -- a inteligência que ilumina, a vontade que garante a pertinácia, e a afectividade que é como que o lubrificante da máquina que entra em acção.

* * *

As descobertas de EGAS MONIZ não foram feitas à base do grande aparato laboratorial. Grande que fosse, nem por isso elas eram espontâneas, como se bastasse para isso pôr os aparelhos a trabalhar. Provado está que, com aparatosos laboratórios, nada se adianta, se não houver uma clarividente cabeça a utilizá-los. Em compensação, em fracos laboratórios, muito longe se pode ir, caso tenham a tirar partido deles cabeças privilegiadas em dons de intuição, de imaginação e de meticulosa observação e invulgares dons de experimentação. E todos esses dons - em grau superlativo - os possuía EGAS MONIZ. RAMÓN Y CAJAL - que falava com conhecimento de causa - era quem dizia que as descobertas não são os aparelhos que as fazem, mas os homens.

INACABADO...

 

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Pequena Bibliografia:

- Nasceu em Avanca, em 29-XI-1874.

- Primeiras letras: numa escola local (Pardilhó)

- Educação liceal: primeiros anos no colégio de S. Fiel (da Ordem dos Jesuítas); último ano no Liceu de Viseu.

- Preparatórios de Medicina. Coimbra, 1891.

- Matrícula na Faculdade de Medecina, em 1894.

- Termina o curso de Medicina em 1899.

- Doutoramento em Medicina, em 1902.

- Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra (Anatonomia, Histologia e depois Patologia Geral), 1903-1911.

- Transferido para a Faculdade de Medicina de Lisboa, onde vai ocupar a Cadeira de Neurologia, recentemente criada, 1911.

- Jubilado em 1944.

- Concedido o Prémio Novel de Medicina e Fisiologia, 1949.

- Falecido a 13-XII-1955.

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«MIGUEL BOMBARDA, morreu às balas de um louco e eu [...] também foi atingido a tiro [por um alienado]. Ambos esses alienados agiram sobre o pretexto de imaginários malefícios que nem sequer seriam realizáveis. Foi a loucura a força que armou e comandou as suas mãos agressivas. E não houve criminosos. O delírio não tem personalidade, actua fora do mundo real».

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Foram traços dominantes do perfil de EGAS MONIZ a fuga sistemática a qualquer espécie de adulação, o amor de uma ciosa independência, a dignidade como alfa e ómega de toda a vida, a firmeza de princípios, o civismo mais puro.

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Deve ter tido melhores professores de latim que RAMÓN Y CAJAL, a respeito do qual escreveu: «Foi aprender latim e gramática, senão com muito proveito pelo menos com resignação, pois não lhe agradavam os padres nem os seus processos de ensino. O corpo, escreveu ele, estava no lugar que lhe destinavam nas aulas; mas a alma vagueava continuamente pelos espaços imaginários»

Quantos alunos de latim não poderiam fazer igual confidência!

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A EGAS MONIZ se poderia aplicar o dito de PASCAL: «Quand on voit le style naturel, on est tout étonné et ravi, car on attendit de voir un auteur et on trouve un homme»

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Há os que afastam a ideia da morte, e aqueles que a ela se ajeitam sem perder a boa disposição. Tal o caso do Abade de Baçal. Na primavera do ano em que morreu (faleceu em Novembro de 1947, com 82 anos) dizia, numa entrevista, pedindo reserva, para não incomodar os amigos, que se «sentia mal e ia morrer ao cair das folhas». Farto de viver, dizia: «já agora, queria ver o que se passava lá por cima». E lá foi ver. Mas, até agora, ainda não deu notícias. Tem cada um de nós que esperar pela sua vez, para ir tirar a coisa a limpo...

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Fazendo na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras, do Porto, uma conferência sobre JUNQUEIRO (14-X-1949), confessava: «não me considero homem de Letras, embora a elas me entregue nas horas de repouso; foi à Ciência médica que dei o máximo do meu esforço e da minha actividade».

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As obras literárias foram, de facto, para EGAS MONIZ, estação de repouso, relativamente à sua actividade científica. Uma frase do padre ANTÓNIO VIEIRA - comentada em termos de neurologista do cérebro - serviu-lhe para uma famosa conferência, na Academia das Ciências de Lisboa, na sessão plenária de 10 de Janeiro de 1952. A frase é esta: «Dentro da fantasia, ou potência imaginativa, que reside no cérebro, estão guardadas, como em tesouro secreto, as imagens de todas as cousas que nos entraram pelos sentidos, a que os filósofos chamam espécies.»

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