Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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Capítulo 22 do livro inédito
"Bernardo Guimarães, o romancista da Abolição"

E assim nasceu a escrava Isaura
Armelim Guimarães

Bernardo Guimarães, boêmio, brincalhão, folgazão, intolerante para com os falsos valores – tineta esta que, às vezes, chegava à irreverência – amante da boa pilhéria, independente nos seus juízos e conceitos, satírico, temido pela sua sinceridade, dono de estridentes e sarcásticas gargalhadas, não era, contudo, um indiferente para com os problemas humanos, sobretudo quando estes envolviam os humildes e oprimidos.

Foi desse germe de humanitarismo que nasceu Isaura, a escrava.

É o inverno de 1874. A Tarde cai com o frio pronunciativo de geadas. Bernardo, que há mais de duas horas deixara Queluz, a terra do Conselheiro Lafaiete, cavalga por uma estrada sombria do interior mineiro, rumo a Ouro Preto. Já que a noite o apanha muito antes de chegar ao lar, resolve hospedar-se em uma fazenda. Aproxima-se da porteira do curral, já apeado, conduzindo o animal pelo cabresto. Uma cena de nefanda crueldade demove-o de transpor aquela cancela. O escritor tem de presenciar o gesto horripilante e monstruoso que sobremaneira o contrista e revolta.

A um canto do pátio, em frente à porta da senzala, está um preto velho, de costas nuas, amarado a um esteio. A cada chibatada do bacalhau já rubro de sangue, o mísero escravo deixa escapar um gemido, que não consegue abafar. Ao lado está uma outra vítima, uma inditosa mucama, de pulsos unidos pelos ferropéias, de fronte pendente, com os olhos cravados no chão, aguardando a sua vez.

O instante é de extrema atrocidade. O algoz, um português implacável e corpulento, banhado de suor, descarrega, com o peso dos grossos braços, a vergasta sobre o lombo indefeso do desgraçado.

Bernardo Guimarães, cuja presença ninguém nota, está gelado, não pela algidez da noite, porém pelo ignominioso ato de tortura e monstruosidade de que acaba de ser casualmente o indignado espectador. Monta de novo o seu alazão, ganha a estrada que há dez minutos deixara, e some-se nas trevas. Aquela casa é, na realidade, indigna para agasalhar um coração nobre e de substrução cristã, e uma alma afeita aos preceitos da liberdade!

No cérebro de Bernardo Guimarães, enquanto o cavalo trota pelas veredas banhadas pelo frouxo luar, esfervilham planos para atirar-se à luta pela manumissão total. Deus há de tudo dispor para mostrar, “de modo palpitante, quanto é vã  e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza, e para humilhar, até o pó da terra, o orgulho e fatuidade dos grandes e exaltar e enobrecer os humildes de nascimento, mostrando que uma escrava pode valer mais do que uma duquesa”. É já um escárnio dar-se o nome de direito a uma instituição bárbara, contra a qual protestam altamente a civilização e a religião. Porém, tolerar a sociedade que um senhor tirando e brutal levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito de torturar uma frágil criatura, só porque teve a desventura de nascer escrava, é o requinte da celeração e da abominação”. “Que abominação e hediondos mistérios a que a escravidão dá lugar por esses engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos deles tenham conhecimento? Enquanto houver escravidão, há de dar-se esses exemplos. Uma instituição má produz uma infinidades de abusos, que só poderão ser extintos cortando-se o mal pela raiz”. “As leis civis, as convenções sociais são obras do homem, imperfeitas, injustas e muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão e o demônio exalta-se ao fastígio da fortuna e do poder”. “A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos olhos do mundo civilizado”. (Trechos de “A Escrava Isaura”)

Para dizer tudo isso, e mais outras duras verdades, em pelo regime de escravidão, 14 anos antes da Lei Áurea, Bernardo poderia escrever uma série de artigos para a imprensa da Corte. Mas o que pode impressionar um artigo a mais? Confundir-se-á, sem dúvida, com as letras altruísticas da “Gazeta da Tarde” ou de outras folhas do país. Crônica de jornal é escrito que as matronas, os sinhôs-moços e as sinhás-moças nunca lêem e têm efêmera duração. É preciso, pois, algo diferente, eficaz, decisivo, rápido e seguro.  

Fará um romance. Será assim uma campanha perdurável. Disfarçar-se-á sua obra numa história comovente, emocionante, impressionável. E como essa isca humanitária, deverá ser um engodo romântico, envolvido numa história de amor, quer que a figura principal seja feminina. Será uma escrava... Debaixo da emoção, porá disfarçadamente o zaguncho redentor. Será uma estratégia altruística. Qual remédio ministrado em água açucarada, seu novo livro há de ser lido pelos fazendeiros inclementes e por toda a orgulhosa família do fero senhor. Será um volume para a estante de luxo, para a cesta de costura, para ir para cima do piano e para o conto do travesseiro.

Em voz da antipática e repelida coluna de jornal combativo, de uma existência de poucas horas, constituirá um manual de cenas embevecedoras, palpitantes, encadernado, marcado com folha de malva, lido em voz alta pela ilustrada sinhazinha ou nhanhã, no serão familiar da varanda ou do copiar, à curiosa e atenta assistência de analfabetos, de escravos, mucamas, muladeiros, retireitos, o capitão-do-mato, o feitor...

Josué Montello, para acentuar o centenário da primeira edição de “A Escrava Isaura”, assim dizia em estudo publicado na revista “Manchete”, do Rio de Janeiro, nº 1.197, de 29-3-1975: “José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Franklin Távora, o Visconde de Taunay, todos eles tiveram as suas obras lidas e relidas, nas casas-grandes e sobrados. E como era de costume, à leitura nos serões familiares, muitas sinhás-donas e muitas sinhás-moças choraram diante de seus escravos, enquanto um dos presentes, com voz emocionada, ia narrando as desventuras de um dos heróis, no volver das páginas de um romance sentimental. Nesses serões, um dos livros preferidos era, sem dúvida, “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães”.

A principal figura será, como não poderá deixar de ser, uma escrava. Preta? Claro que não! Escrava negra não comoverá um povo contemporâneo aos dias da dura discriminação racial e do cativeiro. Crioula chicoteada pelo capataz não é novidade para ninguém. Impõe-se o impacto, algo inusitado, e para isso exige-se que a escrava seja branca. O que é mesmo preciso é que a sinhazinha se sinta no lugar da negra, e que o senhor desalmado veja sua própria filha debaixo do azorrague do feitor, lá fora, amarrada no tronco! Sim, é imprescindível que a protagonista seja branca. Cumpre que os brancos veja se é bom o regime de canga e da aguilhada!

Falhos de psicologia das massas e inteiramente a quo em técnica do romanesco andam os que não querem ver em “A Escrava Isaura” uma obra de abolicionista. Outros acrescentam que Isaura, além de ser branca, foi escrava criado com mimo, muito bem educada, de mãos no piano e com tinturas de francês.

O fato é que Bernardo Guimarães tem sido vítima da ignorância de cronistas aventureiros e despreparados para assuntos de literatura. Um desses critiqueiros de meia-tigela, em uma de nossas revistas de maior circulação, chegou à catultície de considerar o romance do ouro-pretano fora da realidade nacional. Fora por quê?

A verdade é que “A Escrava Isaura” não foge, em nada, à realidade nacional. A escravidão existiu; o tronco não é fantasia histórica; a senzala não é lenda; a lascívia e a violência dos senhores de escravos para com as cativas sensuais era ocorrência comum nas grandes fazendas brasileiras de antanho. Nem é impossível e irreal que uma escrava, filha de um homem branco com uma mulata, pudesse nascer com tez mais clara, e fosse criada na casa-grande, acarinhada e zelada pela sinhá, que lhe teria dado uma formação intelectual esmerada. O romance de Bernardo Guimarães é realíssimo, em nada foge do Brasil de então, e inegavelmente foi arma engenhosíssima para combater o cativeiro, justamente porque a escrava era branca.

E se dúvida houver quanto ao escopo abolicionista do escritor, é só ler o livro, e verificar o que ele fala da escravidão.

A obra foi escrita em 1874, e teve sua primeira edição em 1875, quando ainda nem se sonhava com a libertadora lei de 13 de maio, a qual Bernardo não chegou a conhecer, pois morreu quatro anos antes. Para publicar um livro de teor antiescravista em pleno regime da servidão negra, exigia-se coragem. O romancista mineiro, porém, não temia os jagunços e os arreganhos dos poderosos, que viam na Abolição a perda total do braço para a lavoura, para a lida com os rebanhos e as indústrias, e até para os trabalhos domésticos.

Em “Isaura”, moreninha de luso sangue --filha de uma escrava, mas não de pai --, em lugar de uma legítima cabinda, congolesa ou angolesa jovem e sadia adquirida no mercado de cativo do Valongo, no Rio de Janeiro, percebe-se a perspicácia do autor, o talento sobremaneira atilado do romancista que, por esse modo, realizou a contento a sua ardorosa campanha libertadora. Atingiu estrategicamente em cheio o alvo que mirava. Ele não seria o grande lidador da alforria se “Isaura” fosse negra.

Estafado, Bernardo, naquela madrugada hibernal, chegou em sua casa antes de o sol nascer. Ele já estava pensando em escrever um romance abolicionista. Não quis esperar a luz do amanhecer. O parto intelectual tinha de opera-se imediatamente. Atirou-se à mesa de trabalho e, sob a claridade das velas, pôs-se febrilmente a escrever.

Para escrever o romance, Teresa, mulher de Bernardo, teve de arrumar papel, porque o que havia à disposição não era suficiente. Esgotadas as folhas de um bloco, e quando já utilizadas as páginas em branco de uma agenda, teve ela de acudir à febre de inspiração do marido, nos últimos instantes da noite, revirando baús e canastras, revistando gavetas, revolvendo prateleiras à procura de antigos papéis, de velhas cartas, de encardidos documentos, de músicas manuscritas, desde que tivesse pelo menos um lado em branco, para neles Bernardo registrar a fala de Malvina, as atitudes lúbricas de Leôncio, a altaneira recusa de Isaura, os dengues da frascária Rosa, o pasmo de Belchior, a submissão de Miguel, a chegada triunfal de Álvaro.

Bernardo Guimarães não pode ficar esquecido como abolicionista. Os compêndios da história lhe têm feito injustiça omitindo o seu nome. O próprio Patrocínio reconheceu a sua valiosa cooperação. A princesa Isabel comoveu-se com a leitura do livro.

Os Estados Unidos nunca fizeram semelhante descaso para com a sua Harriet Beecher-Stowe. Bernardo, só com “A Escrava Isaura”, fez muito mais pela abolição do que muitos dos jornalistas e tribunos tão acentuados pela imprensa.

Quem já estudou o Bernardo Guimarães como abolicionista foi Mário Casassanta, num longo artigo intitulado “A Escrava Isaura, um panfleto político”, estampado na “Mensagem” nº 5, de 15 de setembro de 1939, e reproduzido pelo suplemente literário “Autores e Livros”, de “A Manhã”, Rio, em 14 de março de 1943.

Augusto de Lima observa: “Na Escrava Isaura fez madrugar a propaganda abolicionista”. Para João Alphonsus, esse romance foi “livro de aberta propaganda abolicionista”. Foi “um estudo social”, no dizer de Sílvio Romero.

Edmundo Lys, na “Semana Literária” da “Revista da Semana”, de 11 de julho de 1953, salienta a consagração do romance mais famoso de Bernardo Guimarães, dizendo:

“Nascem e crescem escolas literárias. Anemiam-se e morrem. Ficam, de toda a babel de ambições, dois ou três nomes a desafiar o cupim do tempo. E não se pode ignorar que, do velho feitio de romance, com o seu arsenal de emoções e palavras mais ou menos padronizadas, entre outras, fica um Bernardo Guimarães. “A Escrava Isaura”, por exemplo, concorreu para fortalecer a consciência nacional contra o regime servil, extinto, em 1888, em nosso país”.

Além da grande popularidade no Brasil, “A Escrava Isaura” teve igualmente boa aceitação em Portugal. É o que informa M. Nogueira da Silva no prefácio de “Maurício”, edição Briguiet de 1944, página 5.

Em resposta a João Ribeiro, que se queixava de o livros brasileiros não serem conhecidos em Portugal, Jorge Daupiás desfaz essa crença, assim iniciando a menção de nossos autores lidos e estimados em terras lusas: “Quando eu andava no colégio, comoviam-nos as desventuras da “Escrava Isaura”, que líamos às escondidas”. (“Recreações Filogógicas”, Lisboa, página 67).

Comentando uma das edições de “A Escrava Isaura”, assim elucidou a revista carioca “Vamos Ler!”, de 7 de setembro de 1944:

“O tema abolicionista é nele apresentado através de uma delicada e comovente história sentimental, a diferença de casta e de raça, apresentada em quadros onde os costumes da antiga família brasileira das fazendas são tratados de modo quase pictórico. Incluindo entre alguns dos melhores legados do nosso romantismo, “A Escrava Isaura” não teve sua história limitada à inclusão erudita nas páginas de história literária; desceu ao povo e foi por ele acolhido como um tesouro seu. Eis aí um livro escrito pela elite europeizada brasileira, que o povo de todas as camadas e louvada por Sílvio Romero, e vendida pelo livreiro popular do cordel de porta de sobrado e de quiosques. Que qualidade misteriosa será preciso para essa glória? Eis um problema de crítica ainda não suficientemente estudado.”

José Osório de Almeida, na sua “História Breve da Literatura Brasileira”, São Paulo, página 77, depois de afirmar que “A Escrava Isaura” é superior à “Moreninha”, de Macedo, acrescenta que o livro de Bernardo Guimarães “teve uma intenção social antiescravagista, significando no Brasil, até certo ponto, o mesmo que significou, no mundo inteiro, “A Cabana do Pai Tomás”, da norte-americana Harriet Beecher-Stowe.

Muita gente, pois, ao estudar “A Escrava Isaura”, de BG, julga dever lembrar a “Cabana”. A comparação não é de todo cabível, pois a novela da estadunidense, como arma de combate à escravidão, está muito longe da de Bernardo, no que toca à exposição de tão lastimável problema social e, na trama novelística, nada tem para ser comparada à do ouro-pretano, em engenhosidade do enredo, em movimentação e dramaticidade que leva à emoção.

Bernardo Guimarães sempre foi ardoroso abolicionista. Sempre repudiou o desumano regime da escravidão. No seu primeiro livro publicado, “Cantos da Solidão”, tinha ele então 27 anos, incluiu o poema “À Sepultura de um escravo”. Carlos José dos Santos, em seu opúsculo “Bernardo Guimarães na Intimidade”, páginas 13 e 14, assim conta:

“Carlos – disse-me ele – eu amava extremamente o meu escravo. Comigo jantava à mesma mesa. Morrendo, dediquei-lhe alguns versos”. Ver aqui a integra da poesia.

O escravo aqui chorado, pelo que se deduz da data da publicação dos “Cantos da Solidão”, 1852, teria morrido em São Paulo, possivelmente sepultado no cemitério dos Aflitos, necrópoles dos humildes, hoje desaparecido, e que existiu mais ou menos entre as atuais ruas dos Estudantes e Conde de Sarzedas. Surge, contudo, uma interrogação sobre que pobre cativo foi esse que inspirou a lira humanitária do boêmio vila-riquense. Pensa-se logo no Ambrósio, o fiel e dedicado companheiro de Bernardo na Paulicéia. Uma dúvida, porém, é suscitada à vista do poema “Ao Charuto”, das “Poesias Diversas”, composto em 1857, em Ouro Preto, cinco anos depois, portanto, da publicação do poema do escravo morto. Aqui Bernardo o apresenta vivo:

Fumemos pois! – Ambrósio, traze fogo...
Puff!... oh! que fumaça!
Como me envolve todo entre perfumes,
Qual véu de nívea cassa!

[Integra do poema "Ao Charuto"]

Ou teria sido esta evocação apenas um brado de saudosista, partido do coração, rememorativo do amigo negro! Ou esse escravo da sepultura perpetuada nesse poema teria sido um outro cativo de estimação do poeta, falecido antes de Bernardo ter partido para a Paulicéia em busca do diploma de bacharel?

No poema “Invocação à Saudade”, inserto no livro  “Inspirações da Tarde”, já Bernardo Guimarães manifestava doer-lhe na alma o ignominioso regime da escravidão:

Agora, que o africano a enxada pondo,
Da terra de seus país saudades canta
Aos sons de tosca lira, e os duros ferros
Da escravidão por um momento esquece,
Enquanto no silêncio desses vales
Soa ao longe a canção do boiadeiro,
...............................................................

[Integra do poema "Invocação à Saudade"]

Pois foi o mesmo Bernardo abolicionista quem compôs o "Hino à Lei de 28 de Setembro de 1871”, a lei do Ventre Livre, depois incluído no volume das “Folhas do Outono”. São versos escritos em Ouro Preto, em 1882, postos em música “pelo conhecido professor de humanidades e hábil maestro, Sr. Emílio de Gouveia Horta”. (Dilermano Cruz, “Bernardo Guimarães”, 1911, página 50).

No drama das “Nereidas de Vila Rica” – ou “As Fadas da Liberdade” --, peça teatral que, segundo Sousa Ataíde, visava a “instalar nos corações dos brancos a misericórdia para com os seus irmãos negros”; na novela “Uma História de Quilombas”, em que põe o autor bem ao vivo as inconveniências do sistema; no romance “Rosaura, a Enjeitada”, em que mostra o opróbrio das senzalas, e em outros lugares e versos, o poeta e romancista de Minas Gerais esteve de espada desembainhada para atacar o nefando regime, desde a mocidade até a velhice. Pois há quem, neste Brasil, não reconheça em Bernardo Guimarães um ardoroso abolicionista!

Já ficou lembrado que nenhum outro romance brasileiro alcançou tanta popularidade como “A Escrava Isaura”, e nenhum outro teve tantas edições, em várias editoras, desde 1975, e nos mais variados formatos, e até em “quadrinhos” já apareceu em tamanho de revista, lançamento da Editora Brasil-América (Ebal) S/A, do Rio de Janeiro em 1954, segunda edição em 1976. Editora esta que, também em “quadrinhos”, editou outras obras de Bernardo.

Há mais de um século que “A Escrava Isaura” vem sendo representada em palcos de teatros e de circos, e por mambembes; já foi filmada duas vezes e transformada em novela de televisão na Rede Globo e na Rede Record com sucesso surpreendente, não só no Brasil como em mais de cem outros países.

Qual outro romance brasileiro, já secular, que vem atravessando o tempo, passando por gerações de mentalidades e costumes em evolução, e que ainda está presente na apreciação popular? É que nesse livro de Bernardo Guimarães adquiriu a consistência, solidificou-se como o mármore e o bronze, e se tornou um monumento nacional imperecível. Muito bem observou Josué Montello na crônica a que já me referi neste capítulo: “Madame Daudet costumava dizer que a literatura do partido tem a desvantagem de só durar o momento da luta. Na verdade, porém, o romance de Bernardo Guimarães dura até hoje. Passou a luta pela Abolição, e ele permanece, espalhando uma reação combativa. Outras são as formas do romance. Diferente é o comportamento social. E ele continua a ser publicado – por força de seus valores românticos, que não se diluíram de todo da sensibilidade humana, a despeito de ter passado um século que saiu do Rio de Janeiro a primeira edição de “A Escrava Isaura”.

Antônio Santos Morais, em crônica em “O Globo” de 1º de novembro de 1969, falando da obra “que venceu a escravidão com beleza”, coloca criteriosamente o romance de Bernardo no seu escopo abolicionista, elaborando, assim, um dos melhores estudos do livro nem sempre bem compreendido por críticos ineptos.

Alegavam os senhores de escravos que Abolição os arruinaria, trazendo incalculável prejuízo sobretudo à indústria rural, o que refletiria na situação na situação econômica de todo o país. Ficariam ainda em risco a ordem social e a segurança pública. Pois Bernardo Guimarães não descuidou, em “A Escrava Isaura”, desse lado da questão, e, insinuando tudo com o procedimento de Álvaro, deixa o alvitre para uma manumissão geral sem desastres econômicos, humanitariamente, sem guerra de Secessão, sem ku-klux-klan, sem violência.

Tenho em meu poder uma carta de Feliciano Duarte de Miranda, da Corte, residente na rua da Saúde, número 12, dirigida a Bernardo Guimarães, solicitando-lhe permissão para adaptar ao palco “A Escrava Isaura” para o Teatro São Luís.

Vê-se, nessa comprovante missiva, que o romance abolicionista do escritor mineiro teve uma rápida e satisfatória aceitação, pois a carta é de 26 de agosto de 1875, o mesmo ano do aparecimento do livro, e dela se infere que a sorte da inditosa cativa já andava a emocionar a população carioca, daí a oportunidade e o interesse de uma representação teatral.

No ano seguinte, 1876, porém, Bernardo Guimarães dizia a Carlos José dos Santos já estar “prontinho” o drama “A Cativa Isaura” – para diferenciar do romance, na peça teatral empregou “Cativa”  em vez de “Escrava” --, o qual oferecia à Sociedade Dramática de São Miguel de Piracicaba. Essa adaptação de seu famoso romance para o palco, feita pelo próprio autor, salienta, uma vez mais, a intenção manumissora do boêmio das Alterosas, que muito se preocupava com a mais popular e eficiente maneira de realizar uma campanha antiescravista. A carta de Bernardo a Carlos dos Santos, em que fala nessa adaptação para o palco, vai transcrita no capítulo seguinte.

A Parca, no entanto, não consentiria que o escritor da Abolição ouvisse as trombetas emancipadoras de 1888m e levou-o consigo quatro anos antes.

Mário de Andrade, em 1925, publicou “A Escrava que não é Isaura”.

O filme “Meu Pecado foi Nascer”, de Raoul Walsh, como Clark Gable, Yvone de Carlo e Sidney Poitier, de 1957, no qual a jovem Amanda, durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, criada como filha de uma família branca, descobre que é filha de uma escrava negra, filme este que a revista “TV – Programa” nº6, suplemente do “Jornal do Brasil” de 28 de julho de 1991 (data em que foi exibido o filme pela TV Manchete), identifica como uma “espécie de “A Escrava Isaura”, é, realmente, um flagrante plágio do grande romance de Bernardo Guimarães. 


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Uma das muitas edições da
"A Escrava Isaura"



Isaura, por Lucélia Santos, com
 Leôncio, por Rubens de Falco, na
telenovela da Rede Globo


Lucélia Santos



Na Rede Record, em 2004,a atriz
Bianca Rinaldi interpretou a Isaura



Preparação para a gravação da novela



Na telenovela da Record, Rubens de
Falco fez o papel do pai do Leôncio