Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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Elixir do Pajé e A Origem do mênstruo,
poemas obscenos da maestria de BG 

O crítico Basílio de Magalhães fixa com bastante segurança a data de publicação do Elixir do Pajé e A Origem do mênstruo. No trecho em que comenta as “poesias bocageanas, humorísticas e satíricas”, registra: “os dois poemetos imorais do inspirado trovador ouropretano (sic), publicado com o título único de Elixir do Pajé, têm tido já, desde o último quartel do século passado (a editio-princeps é de 7 de maio de 1875), até a presente data, várias impressões clandestinas, figurando ambos em pequenos folheto de quinze páginas”. Clandestinos, mas extremamente populares, como revela o próprio Basílio ao citar o testemunho de Artur Azevedo, um escritor da época: ”de todos ou quase todos os livros de Bernardo Guimarães, o escrito mais popular do autor dos Cantos de Solidão é um poema obsceno, intitulado Elixir do Pajé, que nunca foi impresso! É raro o mineiro que o não saiba de cor. Há na província espalhadas  um sem-número de cópias desse Elixir inútil e brejeiro.”

 No Elixir, mais uma vez o alvo é o ritmo e a retórica de Gonçalves Dias em poemas como I-Juca-Pirama e Os Timbiras, expressões máximas da imagem sublime do índio. Há uma divertida maestria na paródia das variações métricas e rítmicas usadas por Gonçalves Dias, sobretudo no emprego da redondilha menor tal como está na quarta parte do  I-Juca-Pirama. Bernardo molda com precisão sua caricatura erótica: “E ao som das inúbias/ao som do boré,/ na taba ou na brenha,/deitado ou de pé,/ no macho ou na fêmea,/fodia o pajé.”

 Também é muito feliz e eficaz a paródia daquela retórica feita de exortação e invectivas dos “canos guerreiros” à Gonçalves Dias: “Porventura do tempo e dextra irada/quebrou-te as forças, envergou-te o colo,/ e assim deixou-te pálido e pendente,/ olhando para o solo, com como inútil lâmpada apagada/ entre duas colunas pendurada?” Só agora o ritmo participa de uma outra linguagem e vocabulário, a do palavrão escrachado ao extremo e adequado à subservão do modelo indianista. Na sátira ao indianismo, o índio vira sátiro.

A narrativa das façanhas do velho pajé e seu “rijo tacape”, ao lado das exortações e expectativa do herdeiro de seu elixir, adquire pela reiteração de ritmos e de procedimentos uma excitação cômica, em efeito inversamente simétrico às exaltações guerreiras de Gonçalves Dias. Como mais de c em anos de clandestinidade e antecipação, Elixir do Pajé impõe-se como a manifestação mais integral e debochada daquele “indianismo às avessas” que Haroldo de Campos viu em Oswald de Andrade. 

O objeto da sátira muda completamente em “A Origem do mênstruo” O subtítulo do poema diz o essencial a esse propósito: “De uma fábula inédita de Ovídio, achada nas escavações de Pompéia e vertida em latim vulgar por Simão de Nuntua.”

Com esta alusão brincalhona às Metamorfoses, Bernardo Guimarães constrói um poema narrativo de extrema inventividade para dessacralizar e rebaixar o universo clássico dos motivos mitológicos, virando o Olimpo pelo avesso. Em nossa poesia, só em Oswald de Andrade (O Santeiro de Mangue) e Gregório de Matos encontra-se algo próximo a esta grossa prosa de palavrões, erotismo satírico e escatológico, tramada em tão inventiva poesia antipoética.

No plano da linguagem, a eficácia da paródia reside em grande parte na mistura de trechos carregados do mais direto e nu “latim vulgar” (“Ai! Um mês em foder! Que atroz suplício.../Em mísero abandono,/que é que há de fazer, por tanto tempo,/ este faminto cono?...) com versos modelados por locuções nobres (“Da nacarada cona, com sutil fio,/Corre a purpúrea veia,/e o nobre sangue divino cono,/as águas purpúrea”). Como base, as estrofes compostas por decassílabos e versos de seis sílabas, segundo o modelo clássico da ode (pindárica) em língua portuguesa.

A narrativa parodia e satiriza um daqueles relatos “etiológicos” incorporados ao mito; veja-se, por exemplo, Ceres e a cultura do trigo. O mito é rebaixado violentamente; é à deuxa do amor que as mulheres devem a menstruação (“E por memória eterna chore simpre/ o cono da mulher,/ com lágrimas de sangue, o caso infando/  enquanto mundo houver”) expresso em galhofa kitsch e, algumas estrofes antes, em termos de “horror naturalista”: “Em negra podridão imundos vermes.” O rebaixamento vem desde o primeiro verso: “Stava Vênus junto da fonte/ fazendo o seu pentelho,/ com todo o jeito, pra que não ferisse/ das cricas o aparelho.” Seguem-se os versos que ridicularizam a “deusa regateira” até alcançar Júpiter: “Ouviu-lhe estas palavras piedosas/ do Olimpo o Grão-Tonante,/ que em pívia ao sacana do Cupido/ comia nesse instante...” O escracho prossegue e mancha tudo obscenamente: “Ei-lo que, pronto, tange o veloz carrp/ da concha alabastrina,/ que quatro aladas porras vão tirando/ na esfera cristalina.”

Quando se examina o universo temático e de composição de “A Origem mênstruo não se pode deixar de recorrer mais uma vez a Bakthin e, desta vez, à sua análise da poética da carnavalização e da sátira menipéia. Nas observações que fizemos, já transparcem os aspectos básicos do gênero: o tratamento familiar, direto, irreverente do mito, da lenda e dos personagens míticos ou históricos; o enfoque crítico do mito ou da lenda segundo uma ótica desmistificadora ou cínica; a pluralidade de estilos ou a mistura do sublime e do vulgar. A paródia integra o tratamento rebaixador dos mitos.

 Veja-se agora como uma definição de Bakthin nos desembarca diretamente na terra arrasada dos deuses de “A Origem do mênstruo”: “A representação do Olimpo é de caráter nitidamente carnavalesco; a livre familiarização, os escândalos, as excentricidades e a coroação-destronamento caracterizam o Olimpo da menipéia. É como se o Olimpo se transformasse em praça pública carnavalesca (veja-se, por exemplo, o Zeus Trágico de Luciano)”.

O poema mostra também, segundo as expressões  do ensaísta russo, uma “excepcional liberdade de invenção temática” e o “naturalismo do submundo extremado e grosseiro”.Veja-se ainda este outro trecho de Bakthin, feito sob medida para o poema debochadamente dessacralizador de Bernardo: “Os escândalos e manifestações excêntricas penetram as reuniões dos deuses no Olimpo (em Luciano, Sêneca e Juliano, o Apóstata e outros), o mesmo ocorrendo com as cenas do inferno e as cenas na Terra... A ‘palavra inoportuna’ (sic)  é inoportuna por sua franqueza cínica ou pelo desmascaramento profanador do sagrado ou pela veemente violação da etiqueta, também bastante característica da menipéia.”

Não se quer aqui de vincular o poema a qualquer fonte de influência, mas é preciso lembrar que Bernardo foi professor de latim. Seja como for, “A Origem do mênstruo” está à altura dos mestres de um gênero que se distingue por sua extraordinária capacidade de invenção. Por fim, esta escrachada e rebaixadora visão do corpo feminino é em tudo avessa e contrária à imagem das virgens e choradas pelo romantismo brasileiro.


Plantas afrodisíacas (do blog do Site do BG)

Texto ao lado é um trecho do livro "Poesia erótica e satírica - Bernardo Guimarães" (Imago), organizado por Duda Machado, que também é o autor da introdução.
Ilustração do livro Elixir do Pajé, da Edições Dubolso, com introdução de Romério Rômulo, da Universidade Federal de Ouro Preto.

Elixir do Pajé
A Origem do Mênstruo

Plantas afrodisíacas
(do blog do Site do BG)