Elixir do Pajé e A
Origem do mênstruo,
poemas obscenos da maestria de BG
O crítico Basílio de
Magalhães fixa com bastante segurança a data de publicação do Elixir do Pajé
e A Origem do mênstruo. No trecho em que comenta as “poesias bocageanas,
humorísticas e satíricas”, registra: “os dois poemetos imorais do inspirado
trovador ouropretano (sic), publicado com o título único de Elixir do Pajé,
têm tido já, desde o último quartel do século passado (a editio-princeps é de
7 de maio de 1875), até a presente data, várias impressões clandestinas,
figurando ambos em pequenos folheto de quinze páginas”. Clandestinos, mas
extremamente populares, como revela o próprio Basílio ao citar o testemunho de
Artur Azevedo, um escritor da época: ”de todos ou quase todos os livros de
Bernardo Guimarães, o escrito mais popular do autor dos Cantos de Solidão é um
poema obsceno, intitulado Elixir do Pajé, que nunca foi impresso! É raro o
mineiro que o não saiba de cor. Há na província espalhadas
um sem-número de cópias desse Elixir inútil e brejeiro.”
No
Elixir, mais uma vez o alvo é o ritmo e a retórica de Gonçalves Dias em poemas
como I-Juca-Pirama e Os Timbiras, expressões máximas da imagem sublime do
índio. Há uma divertida maestria na paródia das variações métricas e
rítmicas usadas por Gonçalves Dias, sobretudo no emprego da redondilha menor tal
como está na quarta parte do I-Juca-Pirama.
Bernardo molda com precisão sua caricatura erótica: “E ao som das inúbias/ao
som do boré,/ na taba ou na brenha,/deitado ou de pé,/ no macho ou na
fêmea,/fodia o pajé.”
Também
é muito feliz e eficaz a paródia daquela retórica feita de exortação e
invectivas dos “canos guerreiros” à Gonçalves Dias: “Porventura do tempo e
dextra irada/quebrou-te as forças, envergou-te o colo,/ e assim deixou-te pálido
e pendente,/ olhando para o solo, com como inútil lâmpada apagada/ entre duas
colunas pendurada?” Só agora o ritmo participa de uma outra linguagem e
vocabulário, a do palavrão escrachado ao extremo e adequado à subservão do
modelo indianista. Na sátira ao indianismo, o índio vira sátiro.
A
narrativa das façanhas do velho pajé e seu “rijo tacape”, ao lado das
exortações e expectativa do herdeiro de seu elixir, adquire pela reiteração de
ritmos e de procedimentos uma excitação cômica, em efeito inversamente
simétrico às exaltações guerreiras de Gonçalves Dias. Como mais de c em anos
de clandestinidade e antecipação, Elixir do Pajé impõe-se como a
manifestação mais integral e debochada daquele “indianismo às avessas” que
Haroldo de Campos viu em Oswald de Andrade.
O
objeto da sátira muda completamente em “A Origem do mênstruo” O subtítulo
do poema diz o essencial a esse propósito: “De uma fábula inédita de Ovídio,
achada nas escavações de Pompéia e vertida em latim vulgar por Simão de
Nuntua.”
Com
esta alusão brincalhona às Metamorfoses, Bernardo Guimarães constrói um poema
narrativo de extrema inventividade para dessacralizar e rebaixar o universo
clássico dos motivos mitológicos, virando o Olimpo pelo avesso. Em nossa poesia,
só em Oswald de Andrade (O Santeiro de Mangue) e Gregório de Matos encontra-se
algo próximo a esta grossa prosa de palavrões, erotismo satírico e
escatológico, tramada em tão inventiva poesia antipoética.
No
plano da linguagem, a eficácia da paródia reside em grande parte na mistura de
trechos carregados do mais direto e nu “latim vulgar” (“Ai! Um mês em
foder! Que atroz suplício.../Em mísero abandono,/que é que há de fazer, por
tanto tempo,/ este faminto cono?...) com versos modelados por locuções nobres (“Da
nacarada cona, com sutil fio,/Corre a purpúrea veia,/e o nobre sangue divino
cono,/as águas purpúrea”). Como base, as estrofes compostas por decassílabos
e versos de seis sílabas, segundo o modelo clássico da ode (pindárica) em
língua portuguesa.
A
narrativa parodia e satiriza um daqueles relatos “etiológicos” incorporados
ao mito; veja-se, por exemplo, Ceres e a cultura do trigo. O mito é rebaixado
violentamente; é à deuxa do amor que as mulheres devem a menstruação (“E por
memória eterna chore simpre/ o cono da mulher,/ com lágrimas de sangue, o caso
infando/ enquanto mundo houver”)
expresso em galhofa kitsch e, algumas estrofes antes, em termos de “horror
naturalista”: “Em negra podridão imundos vermes.” O rebaixamento vem desde
o primeiro verso: “Stava Vênus junto da fonte/ fazendo o seu pentelho,/ com
todo o jeito, pra que não ferisse/ das cricas o aparelho.” Seguem-se os versos
que ridicularizam a “deusa regateira” até alcançar Júpiter: “Ouviu-lhe
estas palavras piedosas/ do Olimpo o Grão-Tonante,/ que em pívia ao sacana do
Cupido/ comia nesse instante...” O escracho prossegue e mancha tudo
obscenamente: “Ei-lo que, pronto, tange o veloz carrp/ da concha alabastrina,/
que quatro aladas porras vão tirando/ na esfera cristalina.”
Quando
se examina o universo temático e de composição de “A Origem mênstruo não se
pode deixar de recorrer mais uma vez a Bakthin e, desta vez, à sua análise da
poética da carnavalização e da sátira menipéia. Nas observações que
fizemos, já transparcem os aspectos básicos do gênero: o tratamento familiar,
direto, irreverente do mito, da lenda e dos personagens míticos ou históricos; o
enfoque crítico do mito ou da lenda segundo uma ótica desmistificadora ou
cínica; a pluralidade de estilos ou a mistura do sublime e do vulgar. A paródia
integra o tratamento rebaixador dos mitos.
Veja-se
agora como uma definição de Bakthin nos desembarca diretamente na terra arrasada
dos deuses de “A Origem do mênstruo”: “A representação do Olimpo é de
caráter nitidamente carnavalesco; a livre familiarização, os escândalos, as
excentricidades e a coroação-destronamento caracterizam o Olimpo da menipéia.
É como se o Olimpo se transformasse em praça pública carnavalesca (veja-se, por
exemplo, o Zeus Trágico de Luciano)”.
O
poema mostra também, segundo as expressões
do ensaísta russo, uma “excepcional liberdade de invenção temática”
e o “naturalismo do submundo extremado e grosseiro”.Veja-se ainda este outro
trecho de Bakthin, feito sob medida para o poema debochadamente dessacralizador de
Bernardo: “Os escândalos e manifestações excêntricas penetram as reuniões
dos deuses no Olimpo (em Luciano, Sêneca e Juliano, o Apóstata e outros), o
mesmo ocorrendo com as cenas do inferno e as cenas na Terra... A ‘palavra
inoportuna’ (sic) é inoportuna por
sua franqueza cínica ou pelo desmascaramento profanador do sagrado ou pela
veemente violação da etiqueta, também bastante característica da menipéia.”
Não
se quer aqui de vincular o poema a qualquer fonte de influência, mas é preciso
lembrar que Bernardo foi professor de latim. Seja como for, “A Origem do
mênstruo” está à altura dos mestres de um gênero que se distingue por sua
extraordinária capacidade de invenção. Por fim, esta escrachada e rebaixadora
visão do corpo feminino é em tudo avessa e contrária à imagem das virgens e
choradas pelo romantismo brasileiro.
Plantas
afrodisíacas (do blog do Site do BG)
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Texto
ao lado é um trecho do livro
"Poesia erótica e satírica - Bernardo Guimarães" (Imago),
organizado por Duda Machado, que também é o autor da introdução.
Ilustração do livro Elixir do Pajé, da
Edições Dubolso, com introdução de Romério Rômulo, da Universidade
Federal de Ouro Preto.
Elixir
do Pajé
A Origem do Mênstruo
Plantas afrodisíacas
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