ESTADO PENAL E A
CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Fernanda Maria da Costa Vieira
(adv. do MST, professora
da UFRJ)
No
dia 4 de janeiro, o Jornal do Brasil noticiou a prisão de um grupo
de moradores de rua que se reuniam numa praça pública no bairro do
Leblon, um dos mais caros de nosso Estado, para terem uma aula de
artesanato ao ar livre. Enquanto aguardavam pelos professores, uma
equipe da 14ª DP levou-os presos em flagrante, tipificados
posteriormente em formação de quadrilha.
Tal
cena vem se tornando cada vez mais corriqueira em nosso cenário e
traduz com perfeição o crescente processo de penalização da
miséria - uma necessidade estrutural do atual modo de produção
capitalista de cunho neoliberal.
A
redução do Estado de Bem-Estar Social e a fragilização do
Estado-Nação, marca do ideário neoliberal, vem empurrando massas
humanas para a exclusão social: crescem os sem teto, os sem emprego,
os sem terra. Incapaz de fornecer respostas no plano das políticas
sociais, o Estado oferece a esses setores marginalizados apenas o
braço forte da sua política de segurança.
Como nos alerta Loïc
Wacquant, a redução do Estado de Bem-Estar Social, promovida pelas
políticas neoliberais, foi acompanhada pelo crescimento do Estado
penal e policial, como uma necessidade de fortalecimento dos
vínculos de controle social diante de uma população cada vez mais
miserável.
Nessa lógica de penalização da pobreza e da redução da ação estatal
em termos de políticas sociais, novas categorias são compreendidas
como “perigosas”, em particular, as que acabam exercendo sua
cidadania através de ações de enfrentamento à ordem legal
estabelecida, exigindo novos mecanismos de controle social, no qual
o Poder Judiciário vem exercendo papel fundante.
Tal
processo de criminalização e controle vem se dando de forma mais
agressiva com relação ao MST e aos trabalhadores ambulantes. Em
ambos os casos a tipificação penal é o de formação de quadrilha, que
revela uma reorientação no sentido de se retirar da visibilidade
pública o debate sobre a predatória estrutura fundiária de nosso
país, marcado por um vergonhoso índice de concentração de terras; o
direito legítimo ao trabalho; a ruptura com o sagrado direito à
propriedade privada; a democratização da gestão do espaço público (uma
das vertentes levantadas pelos trabalhadores ambulantes) e da
garantia da dignidade da pessoa humana.
Não
podemos nos furtar em analisar o papel que o Judiciário vem
desempenhando na sustentação dessa hegemonia conservadora, que
aponta para um recrudescimento dos discursos da lei e da ordem como
forma de contenção das massas empobrecidas.
Ao
analisarmos algumas decisões, bem como, denúncias promovidas pelo
Ministério Público, nos conflitos envolvendo o MST, fica demonstrado
a atualidade do trabalho efetuado pelo Desembargador Sérgio Verani,
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em seu livro “Assassinatos
em nome da lei”, que buscava demonstrar o papel ideológico do Poder
Judiciário na sedimentação da exclusão e do exercício de controle
social sobre as camadas mais baixas de nosso extrato social,
legitimando o extermínio por parte dos agentes policiais desses
setores excluídos, sempre em nome da segurança da sociedade.
Hoje
em nome da mesma segurança social, joga-se esses refugos humanos,
como nos lembra Bauman, no sistema carcerário, com a mesma
facilidade em que se arquivava os processos de extermínio nas
décadas de 70 e 80.
Esse crescimento do
sentimento de insegurança, que se potencializou com a redução das
políticas de proteção social, com o rebaixamento salarial e com o
aumento das taxas de desemprego, gerou um terreno propício para as
políticas de criminalização da miséria, com o conseqüente
encarceramento dos miseráveis.
Assim, incapaz de dar
respostas no plano econômico-social, o Estado-Nação se apresenta
como um Leviatã no quesito segurança, “desenha-se a figura de um
novo tipo de formação política, espécie de `Estado-centauro`, dotado
de uma cabeça liberal que aplica a doutrina do `laissez-faire,
laissez-passer` em relação às causas das desigualdades sociais, e de
um corpo autoritário que se revela brutalmente paternalista e
punitivo quando se trata de assumir as conseqüências dessas
desigualdades”.
Logo, o Estado penal se
sustenta num processo crescente de criminalização e controle social
das camadas excluídas. Tornando a situação dos sem emprego mais
frágil, pois esse setor é colocado como integrando o conjunto
denominado de classes perigosas: os vadios.
A proliferação do temor
da desordem e do caos justificam as estratégias de exclusão e
controle social sobre as classes perigosas (pobres, desempregados,
toxicômanos, moradores de rua, camelôs...). Assim, o genocídio se
manifesta no aniquilamento dessas classes perigosas, impondo-lhes
uma invisibilidade profundamente perversa, quando se tem dimensão de
que as chamadas classes perigosas a cada dia crescem abandonadas nas
marquises dos grandes centros urbanos.
O medo e a insegurança
que invade corações e mentes se tornam categorias justificadoras de
políticas de segurança mais ofensivas e legitimam as práticas
policiais/penais. A proliferação do sentimento de medo, que vê o
outro como um eterno inimigo a ser combatido, será potencializada
por uma mídia constante, responsável pela reprodução de práticas/discursos
de exclusão.
A defesa da ordem e da
lei, sempre em nome de toda a sociedade, e, portanto, da nação,
serve de justificativa para desvios da própria ordem legal, quando
se trata de criminalizar os inimigos internos. A mídia, nesse
sentido, vem exercendo um papel exemplar na manutenção do status
quo.
A mídia vem se revelando
bastante eficiente na construção de um imaginário de caos quando se
trata de trabalhadores ambulantes. As imagens de guerra urbana
produzidas pela imprensa acabam por legitimar as ações de repressão
violenta por parte dos guardas municipais. Cresce o número de
camelôs presos, são inúmeros os relatos de espancamento e tortura
efetuados pela guarda municipal.
No entanto, a imprensa
silencia. Trata-se de reforçar o estereótipo de que trabalhadores
ambulantes são “fachada do crime organizado”, o que por si só
justifica as práticas de barbarização no processo de repressão.
Se ainda não há uma
sedimentação dos discursos jurídicos com relação aos camelôs, o
mesmo não se pode dizer do MST. Ao romper com a construção de uma
cidadania regulada reconstruindo sua agenda de direitos em conflito
com o Estado, o MST torna-se um inimigo a ser vencido. A imagem de
uma organização desordeira, se torna justificadora de medidas mais
duras sobre o movimento.
É em
nome da ordem pública, da paz social, enfim, da manutenção do Estado
Democrático e de Direito que se torna necessário impor políticas
persecutórias ao MST, como as decisões que decretam as prisões
preventivas:
“Lembrando-se que ordem
pública não é simplesmente a ausência de cometimento de ilícitos
penais; seu conceito é mais abrangente. A ordem pública aqui é
considerada como a normalidade da convivência social, é o respeito
do cidadão à autoridade. Tem o conceito de ordem pública a
finalidade de acautelar não só o meio social mas também a própria
credibilidade da justiça” (Proc. nº 229/2002 – Comarca de Teodoro
Sampaio – Vara Única – seção criminal)
De fato, a
criminalização do MST revela-se plena quando se analisa as denúncias
promovidas pelo Ministério Público, isto porque, conquanto não haver
responsabilidade penal objetiva, o parquet, como forma de
concretizar a conduta delituosa acaba por valorizar o vínculo do
denunciado com o movimento:
“Narram os autos que os
denunciados e os demais elementos não identificados, fazem parte de
um movimento intitulado MST (...). Os denunciados tem se destacados
dos demais integrantes devido a liderança que ostentam no grupo,
sempre divulgados pela imprensa como os mentores intelectuais, posto
que conseguem fomentar a massa hipossuficiente vinculada ao
movimento, fazendo todos agirem de maneira uniforme, ao mesmo tempo,
buscando sempre o mesmo fim, de acordo com as ordens da liderança,
ludibriados por um pretexto legítimo que é a luta pela reforma
agrária e consequentemente solucionarem um problema social. (...)
É certo, ainda, que por
expressa deliberação da liderança, ora denunciados, todo o grupo
também se une para descumprir ordens judiciais de reintegração de
posse, fazendo sempre o Estado recuar (um absurdo) para se evitar um
confronto armado” (Proc. nº 275/00 – Promotoria de Justiça da
Comarca de Teodoro Sampaio ).
As imagens
estereotipadas estão presentes em diversos momentos e criam um
território propício à penalização do MST, ao mesmo tempo em que
revelam toda a face ideológica do Poder Judiciário, desestimulando a
resistência coletiva organizada e manifestações populares, como
estratégias na definição de políticas públicas. Na mesma denúncia
acima mencionada, o parquet expõe de forma cristalina o
horror que lhe causa o MST ao afirmar que:
“A liderança do
movimento conhece os riscos que submetem os integrantes humildes,
inclusive mulheres e crianças, fazendo que sirvam de escudos durante
as invasões, muitas vezes, na busca de uma vítima para servir de
bandeira do movimento, já que o conceito do MST tem recebido
inúmeras críticas pela imprensa nos últimos anos” .
Conclusão
Estaríamos vivendo um
verdadeiro processo de darwinismo social? marcado por uma
banalização da vida, onde para uma pequena parcela da população, uma
elite, abre-se a possibilidade de transcender ao infinito, garantido
por vultuosas contas bancárias - denunciadoras de um processo cada
vez mais brutal, que é a concentração de renda.
Por outro lado, aos
milhões de seres humanos vitimados pela fome e pela indigência, a
alternativa é o desespero silencioso de uma vida sem sentido e sem
esperanças de mudanças. A globalização, como esta vem se construindo,
marcada por uma emergência do capital financeiro, possui um caráter
de segregação espacial:
“o que para alguns
parece globalização, para outros significa localização; o que para
alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino
indesejado e cruel. A mobilidade galga ao mais alto nível dentre os
valores cobiçados - e a liberdade de movimentos, uma mercadoria
sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o
principal fator estratificador de nossos tardios tempos modernos ou
pós-modernos”.
Em outras épocas esse
quadro de desigualdades provocaria, com certeza, reações mais
extremadas na esquerda, tanto no plano discursivo, quanto na ação.
No entanto, perece-nos que tanto a esquerda quanto a direita lêem em
uníssono a mesma cartilha.
Esquerda e direita, finalmente, parecem unidas, corroborando as
teses dos defensores do fim das ideologias, o que nos produz a
sensação de que, de fato, não há alternativas.
Serão dias muito
infelizes, como o próprio Fukuyama reconhece. Nesse quadro de
barbárie chega-se a pensar que não há saídas. Talvez o maior mérito
do ideário neoliberal esteja na sua capacidade de amortecer as
resistências.
Essa nova ordem tenta
criar a imagem de que, nesses novos tempos, não se trata mais “de
arriscar a vida por um objetivo puramente abstrato, a luta
ideológica mundial que exija ousadia, coragem e idealismo, serão
substituídos pelo cálculo econômico (...) não haverá política nem
filosofia”.
O MST nos dá o tom da
magnitude de nossos desafios ao bradar seu grito de guerra: OCUPAR,
RESISTIR, PRODUZIR! Nunca foi tão necessário ocupar os
espaços públicos, resistir à barbarização da vida e
produzir uma alternativa para sociedade, fundada em uma nova
ética, marcada pela fraternidade e igualdade.
Fica aqui a defesa do
historiador inglês HOBSBAWM, que de forma brilhante resgata o papel
do socialismo nesse mundo marcado por uma razão cínica que insiste
em nos dizer que não há saídas:
"Os socialistas estão
aqui para lembrar ao mundo que em primeiro lugar devem vir as
pessoas e não a produção. As pessoas não podem ser sacrificadas.
(...) O Futuro do socialismo assenta-se no fato de que continua tão
necessário quanto antes, embora os argumentos a seu favor já não
sejam os mesmos em muitos aspectos. A sua defesa assenta-se no fato
de que o capitalismo ainda cria contradições e problemas que não
consegue resolver e que gera tanto a desigualdade (que pode ser
atenuada através de reformas moderadas) como desumanidade (que não
pode ser atenuada) (...) Uma sociedade que não é apenas capaz de
salvar a humanidade de um sistema produtivo que escapou ao controle,
mas uma sociedade em que as pessoas possam viver vidas dignas de
seres humanos: não apenas no conforto, mas juntos com dignidade.
É por esse motivo que o
socialismo ainda tem um programa 150 anos após o manifesto de Marx e
Engels. É por esse motivo que ainda está no programa”.
Fernanda Maria da
Costa Vieira, adv. do MST, professora da UFRJ
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