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MÍDIA E SENSO COMUM: O DUPLO DISCURSO EM RELAÇÃO AOS MARGINALIZADOS
 

Sylvia Moretzsohn

O acompanhamento sistemático da produção da chamada “grande mídia” brasileira – jornalismo, novelas, programas de variedades e tantos outros que constam da grade de ofertas das principais empresas de comunicação do país – permite perceber o predomínio de um duplo discurso em relação aos marginalizados: de um lado, o “combate ao mal”, que configura o tratamento da questão criminal propriamente dita e apela, explicitamente ou não, para o endurecimento da legislação penal; de outro, a “promoção do bem”, com seu elogio e incentivo às ações de voluntariado para os “carentes”. Dois discursos ao mesmo tempo contraditórios e complementares, que têm como objeto os membros de uma mesma extração social e que refletem uma dualidade contida no próprio projeto do neoliberalismo, de que a mídia, como organização empresarial, faz parte.

 

Comecemos pelos vínculos entre mídia e sistema penal, que Nilo Batista apontou em um de seus artigos[i]: a necessidade, por parte do empreendimento neoliberal, de um poder punitivo onipresente e capilarizado para o controle penal dos contingentes humanos que o próprio sistema marginaliza. A solidariedade entre mídia e sistema penal decorreria logicamente da solidariedade mais geral entre mídia e neoliberalismo, pois as grandes corporações de comunicação não apenas integram a lógica do sistema como ajudam a sedimentá-la.

 

Se alargarmos o foco de análise, poderemos compreender o duplo discurso da mídia em relação aos marginalizados associando a transição do Estado social para o Estado penal identificada por Loïc Wacquant[ii] – o progressivo solapamento dos direitos sociais e sua correspondência com políticas de crescente encarceramento da população pobre – à emergência do voluntariado – e dos esdrúxulos conceitos daí derivados, como o de “empresa cidadã” ou “empresa com responsabilidade social” – como substituto das políticas de assistência inviabilizadas no “Estado mínimo”.

 

Daí decorrem, na mídia, dois discursos que, como dizíamos, são complementares e ao mesmo tempo contraditórios entre si, ambos derivados da velha tradição positivista de naturalização das relações sociais – e, portanto, do crime como algo que desvirtua a ordem, também natural, das coisas: quando delinqüentes, os marginalizados são a própria encarnação do demônio – animais, bestas-feras, bárbaros, monstros, lixo social – e a favela ou a periferia, onde habitam, o lugar do mal, a ser erradicado, segregado ou, no mínimo, ostensivamente vigiado; quando (ainda) não delinqüentes, são a evidência da bondade natural da gente humilde, pobre mas laboriosa e honesta, alegre e criativa, e o lugar onde vivem surge como o ambiente de práticas comunitárias exemplares e referência de uma cultura popular supostamente mais legítima.

 

A adequação desses discursos ao senso comum é clara: no primeiro caso, como observou Ferrajoli, pela tendência a apoiar-se o “direito penal máximo”, porque “o ponto de vista da maioria induz a conceber o direito penal essencialmente como um instrumento de defesa social, ou seja, de prevenção dos delitos e de defesa dos interesses da maioria não ‘desviada’ contra os atentados à segurança trazidos pela minoria dos ‘desviados’”[iii]: é o crime visto como algo externo à “sociedade”, que estimula tantas metáforas caras ao discurso higienista – o câncer que o corpo social precisa extirpar, etc. No segundo caso, por uma certa tradição cristã de crença na bondade natural dos pobres, aliada a uma valorização do papel do indivíduo na coletividade que leva à concepção do que Jock Young classificou como o “social como coisa simples”[iv]: bastaria, por exemplo, dizer “não” às drogas, trancafiar os traficantes, e viveríamos felizes.

 

É claro que, nesse contexto simplificador, não cabe espaço para indagações tão elementares quanto essenciais: assim, reconhece-se que as penitenciárias são escolas do crime, mas continua-se a se defender a construção de mais penitenciárias, de preferência as chamadas “de segurança máxima”; da mesma forma, valoriza-se a criatividade dos pobres como alternativa de sobrevivência, sem que se considere a impossibilidade concreta de realização do desejo de todos se tornarem artistas, nem, muito menos, a perversidade resultante do estímulo a perspectivas que se verão frustradas na maioria dos casos: seria necessário um interminável campeonato de futebol, um permanente show de música para permitir a exibição e o sustento de tamanha profusão dos talentos “natos” dessa gente bronzeada.

 

É com essa simplificação que a mídia trabalha. Porém seria também simplificador dizer que isso ocorre apenas por uma opção ideológica coerente com o lugar que as corporações de comunicação ocupam no capitalismo: é preciso perceber as necessárias relações da mídia com o senso comum e a vida cotidiana, que favorecem enormemente a reiteração de estereótipos e, ao invés, dificultam exponencialmente o trabalho em sentido contrário, orientado para  a produção de um discurso crítico, capaz de levar o público a pensar que os fatos talvez não sejam tão simples quanto parecem. Sem a clareza da complexidade dessa relação, estaremos condenados a reiterar denúncias, eventualmente bem fundamentadas, quanto a isso que comumente se classifica de “manipulação”, mas não conseguiremos avançar no sentido de mudar essa ordem nada natural das coisas.


 


[i] Nilo Batista. “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”, in Discursos Sediciosos nº 12, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2002, p. 272.

[ii] Loïc Wacquant. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, ICC/Revan, 2004.

[iii] Luigi Ferrajoli. “A pena em uma sociedade democrática”, in Discursos Sediciosos nº 12, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2002, p. 31.

[iv] Jock Young. A sociedade excludente – exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2003.

 

  


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