SOBRE
SEGURANÇA: A PERTINÊNCIA DO ABOLICIONISMO PENAL.
Edson Passetti
Professor do
Depto. Política e Pós-Graduação em Ciências Sociais
Coordenador do
NU-SOL (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP
Na atual
sociedade o controle se realiza a céu aberto, operando-se um
deslocamento relativo à ênfase na internação da sociedade
disciplinar, sem que com isso se pretenda substituí-la; ao
contrário, trata-se de mais um complemento aos castigos
corporais da sociedade punitiva que jamais cessaram de existir.
Agora, o controle do território e da população por terra, mar e
ar passa a se efetivar pela distribuição de satélites no espaço
sideral. As forças armadas comandam pelo campo orbital assim
como a polícia, as polícias secretas e particulares, as polícias
de seguro e comunitárias, a polícia da polícia: a sociedade de
controle policia pessoas, internações, espaços subterrâneos,
profundidades de rios a oceanos, estrelas, planetas e sistemas.
Policia exércitos, políticos e magistrados. Policia trânsitos de
pessoas, móveis e espaçonaves. A sociedade de controle policia
em fluxos pretendendo alcançar seguranças, obtendo confianças e
disseminando tolerâncias.
Na sociedade
de controle, as reformas do sistema penal e das práticas de
confinamento incorporam os espaços disciplinares num campo
ampliado que os conectam chamado de periferia. Os comportamentos
criminalizados são multiplicados e as medidas penais variadas,
consolidando o regime de tolerância zero ─ punir qualquer
pequena infração como medida de dissuasão ─ com crença em
segurança, estatal e privada, que migrou dos conservadores aos
mais radicais socialistas de Estado para constituir um novo
consenso penal em torno do direito penal, seja ele máximo ou
mínimo. Permanece, todavia, inabalável a secular crença na
associação pobreza-periculosidade, sem a qual o sistema penal,
no passado e no presente, não garante sua continuidade com
reformas institucionais, mais ou menos democráticas.
Vivemos uma
era de tolerância zero, era da segurança propagada por meio de
cercas, construções e dispositivos eletrônicos, e que pretende
capturar singularidades, como o abolicionismo penal, em nome da
ampliação de universalidades repressoras, pluralistas,
democráticas e uniformizadoras. Em defesa da segurança do
cidadão institui-se a periferia como campo de concentração, a
disseminação da educação de crianças e jovens pela denúncia e
delação, o culto à repressão, a propagação de preconceitos
metamorfoseados em políticas de cotas, enfim, novas tecnologias
de poder restauradoras do discurso racista aristocrático, em
cujo limite se acusa o outro como sangue ruim por natureza.
Se antes se naturalizava o castigo, agora o racismo reaparece
não mais como decorrência da criminologia, mas da disseminação
de direitos por meio do multiculturalismo.
o
fascismo terrorista
Há muito o que
se falar de terrorismo, principalmente hoje em dia. Todavia vale
a pena concentrar-se brevemente no fascismo terrorista, molar e
molecular, que funciona pretendendo atingir o governo do Estado
para conservar certa relação de poder de maneira autoritária e
com apoio da massa. Na atualidade poderemos destacar dois novos
aspectos deste fascismo e suas positividades de poder
relacionados à internacionalização das relações de poder na
sociedade de controle. Um deles chamarei de pulverização,
e diz respeito à ação imediata de grupos adversários de Estados
hegemônicos como Al Qaeda (agrupamento que vem se desdobrando em
programa na sociedade de controle), ativistas palestinos,
ou até mesmo antigos nacionalistas (como o IRA, na Irlanda e o
ETA, na Espanha), atualmente em fase de assimilação pela Europa,
ou grupos conservadores europeus orientais, derivados da
dissolução da URSS, como os chechenos e que pleiteiam ser Estado
Nacional (numa era que não admite mais sua predominância, mas
que, contraditoriamente, para pertencer aos consórcios
contemporâneos, ser Estado continua a ser a condição de admissão).
Não há marcos fixos para suas emergências. Estas são diversas e
oscilam entre os vestígios da primeira parte do século XX, final
da II Guerra Mundial com o reconhecimento do Estado de Israel, a
continuidade das lutas de grupos separatistas, a emergência dos
aitoláas no Irã do final da década de 1970, o redimensionamento
do controle petrolífero no Oriente Médio, a luta contra o
Império soviético, a luta contra o Império norte-americano, a
reterritorialização da URSS, o aparecimento de guerrilheiros e
terroristas radicais na América Latina e na Europa lutando
contra regimes capitalistas, ditaduras militares, enfim, um
interminável aparecer, desaparecer e reaparecer de terrorismos
de procedência molar. Foi assim que no vaivém dos combates as
restrições aos aclamados direitos civis e políticos, e
censura explícita à liberdade de expressão, não só foi sendo
justificada, mas prontamente assimilada. E isto não se deve
apenas ao ataque às torres gêmeas do World Trade Center, e ao
Pentágono, em 11 de setembro de 2001. Os Estados democráticos,
aos poucos, azo longo do século XX, como mostrou Giorgio Agamben,
assimilaram estados de exceção em seu interior e agora se
justificam em nome da democratização do planeta. Antes era
preciso intervir na própria sociedade e em outros Estados em
nome da liberdade contra o socialismo ou em nome do socialismo
contra o individualismo. Na sociedade de controle atual se
intervém em nome da democracia, seus direitos, seus espaços, sua
permanência, a garantia da segurança do planeta. O segundo
fascismo terrorista molar, o de concentração, realiza-se
com a transformação das periferias em campo de concentração
ampliando os dispositivos dos Estados fascistas na Europa, na
Ásia, nas Américas, e em especial no Brasil (num contínuo que
vai do Estado Novo à ditadura militar, mas que também apanha
outro fluxo que vai da repressão democrática pelo estado de
sítio na década de 1920 contra anarquistas até os limitados
direitos políticos na atualidade democrática em que não só
inexiste a liberdade do voto facultativo, mas a introjeção da
repressão, incluindo o direito ao emprego e à liberdade
de sair do território para aqueles que decidirem exercer seu
direito de abstenção). Numa era de controle eletrônico estar
dentro ou fora da prisão deixa de ser um aspecto distintivo da
seletividade penal. Um novo acontecimento prisional aos poucos
se consolida. Trata-se da conformação das periferias das grandes
cidades como campos de concentração, nos quais as pessoas têm
permissão para transitar para o trabalho, desde que regressem
rotineiramente, recebendo do Estado: escolas, equipamentos
sociais e polícias comunitárias; e muitas vezes contando com
atos de caridade de grupos declaradamente ilegais.
Aparece, então, uma nova diagramação da ocupação do espaço das
cidades em que políticas de tolerância zero e de penas
alternativas se combinam, ampliando o número de pobres e
miseráveis visados, capturados e controlados, compondo uma
escala mais ou menos rígida de punições, deixando inalterados a
cifra negra e os dispositivos de seletividade. Consolida-se uma
nova prática do confinamento a céu aberto, e o sistema penal
mais uma vez se amplia, dilatando os muros da prisão.
Nesta época,
parodoxalmente, repleta de distribuição de direitos estamos mais
presos ainda, acostumados com a pena de morte e a construção de
prisões para sentenciados que lá devem permanecer até morrer. Se
no passado constatava-se que a prisão não corrigia nem integrava
o infrator à sociedade, hoje se reconhece que ela passou a ser
um lugar de sociabilidade de pessoas abandonadas pelas ruas que
visitam parentes e amigos confinados nestes palácios de
repressão e morbidez.[1]
Enquanto as periferias das grandes cidades se consolidam como
prisões a céu aberto, a antiga prisão no interior deste espaço
funciona tanto como dispositivo de sociabilidade de miseráveis,
quanto acionista de negócios ilegais. Não há mais lugar ou
legitimidade para rebeliões; vivemos uma era de reformas
tamanhas em que a continuidade da prisão passou a ser um modo
lucrativo de vida defendido pela hierarquia empresarial superior
dos encarcerados. Num piscar de olhos tudo parece integrado no
vaivém ilegal.
O
abolicionista penal se afasta das práticas seletivas que
alimentam os corredores limpos e engravatados dos tribunais, e
as sujeiras e fedores nas prisões, lares e escolas, repartições
públicas... Adversário do universalismo moralizador, o
abolicionista pratica a ética da liberação. Problematiza o
direito penal e os costumes punitivos na atualidade, não se
restringindo ao papel de resistência jurídica. Não é uma utopia,
mas a escolha libertária de quem abole o castigo em si e na
sociedade proferindo um não afirmativo e bradando aos que querem
mais punição: em meu nome não!