A POLÍTICA DO
CAVEIRÃO
Luiz Eduardo Soares
(professor da UERJ e da UCAM, antropólogo e
cientista político)
Um veículo é um instrumento ou um engenho cujo significado e valor
se resumiriam, supostamente, à utilidade. Um automóvel serviria para
transportar pessoas e seu valor seria função do que oferecesse, em
termos de segurança –inclusive para o meio-ambiente-, economia,
potência e conforto. Uma camisa, por sua vez, protegeria do frio e
do sol, abraçando confortavelmente seu usuário e agregando virtudes
estéticas à sua funcionalidade. Os objetos e as máquinas cumpririam
funções práticas, em condições convenientes, com formas agradáveis.
Para avaliá-los, bastaria, portanto, responder à pergunta: eles
realizam adequadamente as finalidades a que se destinam? Uma viatura
policial não seria diferente. Ela seria melhor ou pior, aceitável ou
inaceitável, na medida em que cumprisse ou não –e em graus
diferenciados- sua função, desde que sua função fosse considerada
legítima e relevante. Os mesmo critérios se aplicariam à avaliação
de um veículo blindado. Entretanto, na vida social, nem tudo é o que
parece. Pelo contrário, quase tudo é bem mais complicado do que
sugere o senso comum.
Vejamos os casos do automóvel e da camisa: são úteis, isto é,
cumprem funções práticas e objetivas, mas são também suportes de
símbolos, que distinguem e integram os usuários, redefinindo-lhes as
respectivas identidades sociais. Em outras palavras, são fetiches,
são índices de ascensão social ou de pertencimento a nichos
socialmente valorizados, além de meios para realização de fins úteis
e objetivos. Podem ser também meios de afirmar idéias, valores e
posições políticas, seja pela reiteração de padrões, seja pela
transgressão. As camisas e os carros dizem muito de seus donos. As
marcas de carros e camisas se sobrepõem às funções práticas. De tal
maneira os aspectos simbólicos são importantes, que se convertem em
parte da própria utilidade, em uma de suas dimensões: eles são muito
mais que ornamentos e adereços supérfluos, bem mais que meros
adjetivos. Os símbolos que automóveis e camisas comunicam não são
elementos dispensáveis e exteriores à natureza prática do produto.
Ou seja, a natureza prática do produto não é sua essência, mas uma
ilusão que fortalece a eficácia inconsciente dos símbolos. É
ilusória a noção de que existe, na vida social, uma utilidade
estritamente prática e funcional. É enganosa a idéia de que há a
utilidade descolada e independente da carga simbólica e social.
Carros e camisas transportam pessoas e emitem mensagens, ao mesmo
tempo. Ambas as funções são reais. Quando compramos carros e
camisas, levamos conosco o veículo que nos transporta e uma
simbologia que sentimos e que nos motiva, mas que ignoramos. Os
símbolos atuam em nós e por nosso intermédio. Eles se reproduzem
graças à nossa mediação.
O
Palácio do governo não é somente a residência do governador ou do
presidente. É também um monumento ao poder das instituições públicas
e uma declaração enfática de que o residente é o titular da
autoridade superior.
O
uniforme de um policial é sua vestimenta funcional, mas é também uma
mensagem dirigida à sociedade, na qual se reafirma a autoridade de
quem a veste. A farda neutraliza a singularidade do indivíduo que a
veste, substituindo-a por um papel público, cujo portador torna-se
um agente público, cumpridor de funções institucionalizadas. Por
isso, o comportamento do policial militar, na esquina –face mais
tangível do Estado para a maior parte da população brasileira-, pode
valorizar ou comprometer o conjunto das instituições públicas.
Que mensagens simbólicas os acessórios, fardas, ícones, bandeiras e
veículos policiais devem emitir, numa sociedade democrática? Aquelas
que correspondam à sua missão constitucional, que assim se
resumiria: proteger direitos e liberdades, preservar a vida e sua
dignidade. Vejamos por quê: cabe às polícias zelar pelo cumprimento
das leis, as quais, no Estado Democrático de Direito, resultam de
processos regidos por uma Constituição aberta à permanente revisão
crítica, sensível à e promotora da participação
popular. Tais leis, portanto, corresponderiam à afirmação de
direitos e liberdades (mesmo que de forma precária e incompleta,
posto que representariam os pactos sociais politicamente viáveis, em
cada momento histórico), nos marcos de princípios permanentes e
procedimentos comprometidos com a eqüidade. Daí se deduz que zelar
pelo cumprimento dos termos historicamente constituídos do pacto
social, isto é, zelar pela vigência da legalidade equivale a
defender direitos e liberdades. Mesmo provisório e contraditório, o
marco legal, numa democracia -sem prejuízo do valor instituinte da
desobediência legitimada por dimensões substantivas da justiça-, é
uma referência valiosa, sobretudo para os mais vulneráveis às
violações perpetradas pela força, o arbítrio, o interesse privado e
o exercício iníquo do poder, em todas as suas modalidades.
Nesse sentido, a
polícia, do ponto de vista constitucional, destina-se a um papel
democrático, estratégico e indispensável, de grande significado
particularmente para aqueles que, no Brasil, têm sido as maiores
vítimas de toda sorte de violações: os mais pobres e, em especial,
os negros. Em nossa história, o contrário é que tem sido a regra,
com honrosas e raras exceções: as polícias têm agido com indulgência
com as elites e brutalidade extrema com os mais pobres,
particularmente os negros, desrespeitando-lhes os direitos
fundamentais e contribuindo para arrebatar-lhes a cidadania, tão
duramente conquistada na letra da lei. Mas a realidade é uma
construção social e política de atores concretos, não uma condenação
inexorável e fatalista. Ela pode ser transformada, sobretudo quando
ostensivamente ilegítima e ilegal.
Nesse contexto institucional, histórico e político, e
considerando-se os diversos níveis em que se configuram os sentidos
sociais dos engenhos, objetos e produtos, o que é o “caveirão”?
O veículo blindado
do Batalhão de Operações Policiais Especiais, da PMRJ, chamado
caveirão, não é um engenho mecânico destinado a transportar, em
segurança, profissionais das instituições policiais, mas um sintoma,
quase um ato-falho, um lapso da política de guerra, de forte matiz
racista e classista, aplicada pelo governo do Estado. O blindado
poderia ter recebido esse nome grosseiro, vulgar, caricato e
assustador dos que o denunciam e temem, dos que sofrem as
conseqüências brutais de seu emprego. No entanto, por incrível que
pareça, a viatura foi assim batizada pela própria corporação que o
utiliza. É, portanto, uma indireta confissão de culpa; um testemunho
ambulante e espetacular; uma declaração de guerra errante e errática
contra os territórios que invade e suas populações; um dispositivo
político que circula difundindo a dupla mensagem de força máxima e
fragilidade extrema, desejo de proteção e hostilidade aberta. Tem
sido o portador do medo a comunidades, insultando-as com sua voz
anônima, amplificada e distorcida. Voz desumanizada de
máquina-sem-sujeito, refratária ao diálogo e às mediações, típicas
não da guerra, mas da segurança pública em ambientes complexos. A
guerra urbana acaba sendo a profecia que se auto-cumpre.
Não se trata de um
blindado que protege policiais em risco porque não tem sido esta a
realidade prática do “caveirão”, utilitária ou simbólica. Tampouco
se sustentaria a hipótese de que o veículo pudesse ser “melhor
empregado”, dado que existe no âmbito de uma política de guerra que
ele traduz à perfeição. O veículo existe no quadro de uma estrutura
organizacional das polícias e no contexto de processos de formação
profissional que hostilizam sua própria missão constitucional. O uso
do blindado não é um desvio de sua função e de sua utilidade, mas a
manifestação mais nítida e dramática de toda uma abordagem
anti-cidadã da problemática da segurança, que ele encarna. Esta
abordagem implica a desvalorização dos próprios policiais, em certo
sentido também vítimas dessa dinâmica perversa: a política do “caveirão”.
Um outro uso para
o blindado, com outros significados simbólicos e práticos, seria
possível, em outro contexto? Os engenhos humanos podem adquirir os
mais variados significados sociais e as mais diversas funções.
Quando as favelas não forem mais tratadas como territórios inimigos
a serem invadidos, em operações de guerra; quando as polícias
investirem no efetivo cumprimento de sua missão constitucional;
quando as estruturas organizacionais e a formação profissional se
orientarem para o respeito aos direitos fundamentais; quando a
política de segurança voltar-se para a redução da violência,
inclusive do racismo, e para a defesa de direitos e liberdades,
inclusive e sobretudo das comunidades; quando a proteção dos
policiais inscrever-se nesse contexto, todos os instrumentos úteis à
proteção da vida, sem arrogância e desrespeito, poderão ser
empregados com legitimidade, desde as armas e os blindados, até as
fardas e os telefones. Nesse momento, a caveira, os ícones da morte,
os cânticos e celebrações do terror cederão lugar à simbólica da
vida. Os policiais alcançarão respeito e confiança popular. Serão
valorizados por suas instituições e pela sociedade. As agressões a
que estiverem sujeitos serão rechaçadas intensamente pelo sentimento
popular. Nesse Rio de Janeiro do futuro, a credibilidade das
instituições da segurança pública será sua principal blindagem.
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