Tanta
gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais.
Até sinto desejo de começar esta carta assim: "Exma.Sra.:
tenho a honra de comunicar a V. Exa., etc".
Onze
palavras! Imagino o que um indivíduo experimenta ao
receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o
sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isto de
passar horas acordado, sonhando coisas absurdas? Não
sabe. Pois eu te conto.
Sento-me
à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor
uma folha de papel, que teima em tornar-se branca, penso
que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a
delegacia de polícia, a procissão de Nossa Senhora do
Amparo... E depois o jogo dos disparates, excelente jogo.
"Iaiá caiu
no poço". Ora o poço!
Quem caiu no poço fui eu.
Principio
uma carta que devia ter escrito há três meses, não
posso concluí-la. Fumo cigarros sem contar, olhando um
livro aberto, que não leio. Dançam na minha cabeça uma
chusma de idéias desencontradas. Entre elas, tenaz,
surge a lembrança de uma criaturinha a quem eu disse
aqui em casa, depois da prisão do vigário, nem sei que
tolices.
Apaga-se
a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em
Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas?
Não
consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados.
Na escuridão vejo distintamente essa mancha que tens no
olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos,
à janela do reverendo. Por que me falaste daquela forma?
Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.
Andei
criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente
da que encontrei naquele dia.
Por
que me quisestes? Deram-te conselhos? Por que apareceste
mudada em vinte e quatro horas? Eu te procurei porque
endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez.
É
necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu
amor.
Fui
visitar o Padre Macedo.
Falou-me
de ti, mas o que me disse foi vago, confuso, diante de
dez pessoas. É triste que, para ter notícias tuas,
minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs
que me disseram o dia do teu aniversário e me deram teu
endereço.
Tinha
razão quando afirmaste que entre nós não havia nada.
Muito me fazes sofrer.
É
preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas
cartas extensas, que me abras largamente as portas de tua
alma.
Beijo-te
as mãos, meu amor.
Recomendo-me
aos teus, com especialidade a dona Lili, que vai ser
minha sogra, diz ela. Acho-a boa demais para sogra.
Amo-te
muito. Espero que ainda venhas a gostar de mim um pouco.
Teu Graciliano.
Palmeira,
16 de janeiro de 1928.
II
Heloísa
Quando
recebi tua carta, tremi de susto...
Minha
adorada: recebi quinta-feira tua carta de 31 do mês
passado. Não te respondi logo porque tencionava ir a
Maceió amanhã. Infelizmente uma visita de última hora
veio obrigar-me a retardar a viagem, privando-me do maior
prazer que eu poderia experimentar agora. Tem mais um
pouco de paciência, espera mais alguns dias.
Quando
recebi tua carta, tremi de susto, pois a angústia em que
vivi uma semana por não me chegarem notícias tuas era
horrível e me trazia toda a sorte de pressentimentos
dolorosos. Ao ler o que me disseste, porém, apareceu-me
uma alegria imensa. Não calculas o bem que me fizeste.
Vejo perfeitamente que não tenho razão para ser hoje
mais feliz do que era ontem, sei que escreveste aquilo
forçada pela insistência quase impertinente que tenho
adotado para contigo. Mas como és boa! Procuras dar-me a
ilusão de que me amas, e isto me enche de gratidão
infinita. Não tenho agradecimentos que bastem. Evitas a
palavra precisa, fazes apenas um a
e uma série de
pontos, mas confessas que acreditas em mim, parece que
ficaste contente com a minha pobreza, explicas como podes
a indecisão e a reserva que tanto me fizeram sofrer.
A
prefeitura? Sim, foi ela que interrompeu a viagem que eu
tinha certa para amanhã. A propósito: que história é
essa de posição elevada? Enganaram-te, minha filha.
Para os cargos de administração municipal escolheram a
preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou
gatuno, que tenho na cabeça alguns parafusos de menos,
mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer
dia renuncio. Por tua culpa, meu amor, toco num assunto
desagradável e idiota. Isto não vale nada.
Dizes
que brevemente serás a metade de minha alma. A metade?
Brevemente? Não: já agora és., não a metade, mas
toda. Dou-te a alma inteira, deixa-me apenas uma pequena
parte para que eu possa existir por algum tempo e
adorar-te.
Humilhada
porque és filha dum empregado público? Quem te falou em
semelhante coisa? Se fosses filha do imperador do Japão,
não me quererias, é claro, nem me verias nunca; mas se
teu pai fosse um assassino, não deixarias por isso de
ser Heloísa: eu te amaria como te amo e me casaria
contigo.
Levantas
uma pequena ponta do véu que estendes sobre o que
escreves: "lamentas não terem sido mais venturosos
para nós" os dias que aqui passaste. Há uma
reticência no fim. E lá se foram por água abaixo os
nervos fortes da moça. Falas nas lutas que tiveste, nas
incertezas que que te faziam avançar e recuar, nas
esperanças e nas tristezas que sentias. Afinal gozavas
de mim. Pouco, muito pouco, dona Lili me disse. Mas és
tão boa, tens um coração tão grande, minha filha, que
o pouco que me davas era demasiado para mim.
"Sonho
do meu poeta"? Que é lá isso? Quando me chamaste
romântico, perguntei-te por brincadeira se não ias
chamar-me também poeta. Pensarás acaso que eu,
quitandeiro e homem de ordem, me entregue a ocupações
tão censuráveis?
Há
uma pequena incoerência em tua carta. Declaras que
ignoravas se o que "diziam os meus modos diziam
também o meu coração", e pouco adiante afirmas
que tinhas a certeza de que "eras amada". Tinha
ou não tinha? Tinhas. Quando me convidaste para passar
um dia em casa do vigário, não viste como fiquei?
Ouvindo a tua fala e dando de cara contigo, sem esperar,
fiquei tão perturbado que nem sei que tolices disse. E
quando te peguei, não me lembrei de soltá-la. Creio que
ainda hoje a teria segura se dona Lili, falando-me, não
sugerisse a vaga idéia de que era necessário
cumprimentá-la também.
Amo-te
com ternura e com saudade: a indignação e o ódio
desapareceram. E como poderiam existir depois da carta
que me escreveu a melhor de todas as criaturas, santa
bendita exilada entre as mulheres, cheia de graça, que
em breve dará calor e luz à vida escura e fria que
levo? Romantismo, minha querida Heloísa, romantismo, e
ruim.
Perguntas-me
quando vou. Oh! meu Deus! Eu queria ir amanhã, desfiz a
viagem a pouco. E estou aflito. O que eu devia fazer era
deixar que o diabo levasse tudo e fugir para junto de ti.
E é o que farei.
Acreditar
na grande sinceridade de Heloísa? Decerto. Acredito em
tudo quanto quiseres.
VEJA OUTRA CARTA DE
GRACILIANO RAMOS ENDEREÇADA A DONA MARIA AMÉLIA, MÃE
DO ESCRITOR. CLICK AQUI

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