Quanto a mim, que estou muito perto dos meus setenta anos, quando mal completara quinze, descobri Walt Whitman, meu maior credor. E encontro-me aqui entre vós, acompanhado por esta maravilhosa dívida que me ajudou a existir.
        Renegociar esta dívida é começar por pô-la em evidência, reconhecer-me como humilde servidor de um poeta que media a terra com passos lentos e largos, detendo-se em toda a parte para amar e examinar, aprender, ensinar e admirar. Trata-se daquele homem, aquele moralista lírico que enveredou por um caminho difícil: foi um cantor torrencial e didáctico. Estas duas qualidades parecem antagónicas. Pareceriam mais as condições do caudilho que de um escritor. O importante é que Walt Whitman não receava a cátedra, o ensino, a aprendizagem da vida e assumia a responsabilidade de ensinar com candura e eloquência. Francamente, não temia o moralismo nem o imoralismo, nem quis deslindar os campos da poesia pura ou impura. É o primeiro poeta totalitário e a sua intenção consiste não só em cantar, mas impor a sua extensa visão das relações dos homens e das nações. Nesse sentido, o seu nacionalismo evidente faz parte de um organismo universal. Considera-se devedor da alegria e da tristeza, das altas culturas e dos seres primitivos
        Há muitas formas da grandeza, mas a mim, poeta do idioma castelhano, Walt Whitman ensina mais que Cervantes: na sua obra, o ignorante não é humilhado nem a condição humana ofendida.
        Continuamos vivendo numa época whitmaniana, vemos, apesar das dores do parto, a ascenção e aparição de novos homens e novas sociedades. O bardo queixava-se da omnipoderosa influência europeia que continuava a alimentar a literatura da sua época. Na realidade, era ele, Walt Whitman, o protagonista de uma personalidade realmente geográfica que se levantava pela primeira vez na história como um nome continentalmente americano. As colónias das nações mais brilhantes deixaram séculos de silêncio. O colonialismo parece matar a fertilidade e a capacidade criadora. Bastará que vos diga que, em três séculos de dominação espanhola em toda a América, não tivemos mais de dois ou três escritores admiráveis.
in O ALBATROZ ASSASSINADO (Excerto)
Discurso pronunciado no PEN Club,
50ª aniversário de fundação,
Nova Iorque, Abril de 1971.
Nona parte de "Fala Pablo Neruda",
Caderno 7 de Nasci para Nascer.
Compilação Póstuma