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ODES A WALT WHITMAN


3.   Federico Garcia Lorca






ODE A WALT WHITMAN



(1862)


Federico Garcia Lorca
Segunda ode de "Duas Odes"
Parte VIII de Poeta em Nova York
(1929-1930)

Primeira ode  »





Pelo East River, pelo Bronx
os rapazes cantavam, mostravam a cintura
com a roda, o óleo, o couro e o martelo.
Noventa mil mineiros extraíam a prata das rochas
e as crianças desenhavam escadas e perspectivas.


Mas nenhuma adormecia,
nenhuma queria ser rio,
nenhuma amava as folhas enormes,
nenhuma a língua azul da praia.


Pelo East River, pelo Queensborough
os rapazes lutavam com a indústria,
e os judeus vendiam ao fauno do rio
a rosa da circuncisão,
e o céu desaguava pelas pontes e os telhados
manadas de bisontes empurradas pelo vento.


Mas nenhum se detinha
nenhuma queria ser nuvem,
nenhum buscava os fetos
nem a roda amarela do pequeno tambor.


Quando a lua surgir
as roldanas rolarão para turvar o céu;
um limite de agulhas cercará a memória
e os ataúdes levarão os que não trabalham.


Nova Iorque de lodo,
Nova Iorque de arame e de morte.
Que anjo levas oculto na face?
Que voz perfeita dirá as verdades do trigo?
Quem o sonho terrível de tuas anémonas manchadas?


Nem um só momento, velho formoso Walt Whitman,
deixei de ver tua barba cheia de borboletas,
nem teus ombros de bombazina gastos pela lua,
nem tuas coxas de Apolo virginal,
nem tua voz como coluna de cinza;
ancião formoso como a névoa,
que gemias como um pássaro
com o sexo trespassado por uma agulha,
inimigo do sátiro,
inimigo da videira,
e amante dos corpos de roupas grosseiras.


Nem um só momento, formosura viril
que em montes de carvão, anúncios e vias férreas,
sonhavas ser rio e dormir como um rio
com aquele camarada que poria em teu peito
uma pequena dor de ignorante leopardo.


Nem um só momento, Adão de sangue, macho,
homem solitário no mar, velho formoso Walt Whitman,
porque pelas açoteias,
reunidos nos bares
saindo em cachos dos esgotos,
tremendo entre as pernas dos chaffeures,
ou rolando nas plataformas do absinto,
os maricas, Walt Whitman, te apontam.


Também esse! Também! E despenham-se
na tua barba luminosa e casta,
loiros do norte, negros da areia,
multidão de gritos e gestos
como os gatos e como as serpentes,
os maricas, Walt Whitman, os maricas,
turvos de lágrimas, carne para chicote,
bota ou dentada dos domadores.


Também esse! Também! Dedos tingidos
apontam a margem do teu sonho
quando o amigo come a tua maçã
com um leve sabor de gasolina
e o sol canta nos umbigos
dos rapazes que jogam sob as pontes.


Mas tu não buscavas os olhos arranhados,
nem o pântano escuríssimo onde submergem os meninos,
nem a saliva gelada,
nem as curvas feridas como a pança de um sapo
que levam os maricas em carros e terraços
enquanto a lua os açoita pelas esquinas do terror.


Buscavas um corpo nu que fosse como um rio,
touro e sonho que junte a roda e a alga,
pai de tua agonia, camélia de tua morte,
que gemesse nas chamas de teu equador oculto.


Porque é justo que o homem não busque o seu prazer
na selva de sangue da manhã próxima.
O céu tem praias onde evitar a vida
e há corpos que não devem repetir-se na aurora.


Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho.
Este é o mundo, amigo, agonia, agonia.
Os corpos decompõem-se sob o relógio das cidades.
A guerra passa a chorar com um milhão de ratazanas pardas,
os ricos dão às suas concubinas
pequenos moribundos iluminados,
e a vida não é pobre, nem boa, nem sagrada.

Pode o homem, se quer, conduzir seu desejo
por uma veia de coral ou um celeste corpo nu.
Amanhã os amores serão rochas e o Tempo
uma brisa que vem a dormir pelos ramos.

Por isso não ergo minha voz, velho Walt Whitman,
contra o rapaz que escreve
um nome de menina em sua almofada,
nem contra o jovem que se veste de noiva
na escuridão do quarto,
nem contra os solitários dos casinos
que bebem enojados a água da prostituição,
nem contra os homens de olhar verde
que amam um homem e queimam os lábios em silêncio.
Mas sim contra vós, maricas das cidades,
de carne inchada e pensamento imundo.
Mães de lodo. Harpias. Inimigos que não sonham
o Amor que reparte coroas de alegria.

Contra vós sempre, que dais aos rapazes
gotas de morte sórdida com amargo veneno.
Contra vós sempre,
Faeries da América do Norte,
Pájaros de Havana,
Jotos do México,
Sarasas de Cádis,
Apios de Sevilha,
Cancos de Madrid,
Floras de Alicante,
Adelaides de Portugal.

Maricas de todo o mundo, assassinos de pombas!
Escravos da mulher. Cadelas de seus toucadores.
Abertos nas praças com uma febre de leque
ou emboscados em hirtas passagens de cicuta.

Ninguém se renda! A morte
brota de vossos olhos
e amontoa flores cinzentas nas margens do lodo,
Ninguém se renda! Alerta!!
Que os humilhados, os puros,
os clássicos, os marcados, os suplicantes
vos fechem as portas da bacanal.

E tu, belo Walt Whitman, dorme nas margens do Hudson
com a barba na direcção do pólo e as mãos abertas.
Argila branda ou neve, tua língua está a chamar
camaradas que velem tua gazela sem corpo.

Dorme: não resta nada.
Uma dança de muros agita as pradarias
e a América afoga-se em máquinas e pranto.
Quero que o ar forte da noite mais funda
tire flores e letras do arco onde tu dormes,
e um menino negro anuncie aos brancos do ouro
a chegada do reino das espigas.






Poema retirado de
Antologia Poética
Federico Garcia Lorca
Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento
Relógio D'Água
Lisboa, 1993
Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -



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