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RELATOS DE PABLO NERUDA


2.   O Crime foi em Granada





Quarta parte de "A Espanha no Coração",
Caderno 5 de Confesso que Vivi - Memórias.
Pablo Neruda
1973


        Justamente quando escrevo estas linhas a Espanha oficial celebra muitos anos - tantos! - de insurreição vigente. Neste momento, em Madrid, o Caudilho, vestido de ouro e azul, rodeado pela guarda moura, ao lado do embaixador norte-americano, do da Inglaterra e de vários outros países, passa revista às tropas - tropas compostas, na sua maioria, por rapazes que não conheceram aquela guerra.
        Eu, sim, conheci-a. Um milhão de espanhóis mortos! Um milhão de exilados! Parece que jamais deveria desvanecer-se na consciência humana este espinho sangrento. No entanto, os rapazes que desfilam agora diante da guarda moura ignoram, talvez, a verdade daquela história tremenda.
        Tudo começou para mim na noite de 19 de Julho de 1936. Um chileno simpático e aventureiro, chamado Bobby Deglané, era empresário de catch-as-can no grande circo Price de Madrid. Manifestei-lhe as minhas reservas quanto à seriedade desse "desporto" e ele convenceu-me a ir ao circo, com Garcia Lorca, verificar a autenticidade do espectáculo. Persuadi Federico e ficámos de encontrar-nos lá, à hora combinada. Passaríamos um bocado de tempo vendo as truculências do Troglodita Mascarado, do Estrangulador Abissínio e do Orangotango Sinistro.
        Federico faltou ao encontro. Já ia a caminho da morte. Nunca mais tornámos a ver-nos. O seu encontro era com outros estranguladores. Deste modo, a Guerra Civil de Espanha, que alterou a minha poesia, começou para mim com o desaparecimento de um poeta.
        E que poeta! Nunca vi reunidos como nele a graça e o génio, o coração alado e a cascata cristalina. Federico Garcia Lorca era o duende esbanjador, a alegria centrífuga que recolhia no seu seio e irradiava como um planeta a felicidade de viver. Ingénuo e comediante, cósmico e provinciano, músico singular, esplêndido actor, assustadiço e supersticioso, radiante e gentil, era uma espécie de resumo de todas as eras da Espanha, do seu florescimento popular - um produto arábico-andaluz que iluminava e perfumava como o jasmim toda a cena daquela Espanha, ai de mim!, desaparecida.
        Seduzia-me o grande poder metafórico de Garcia Lorca e interessava-me tudo o que ele escrevia. Por seu lado, ele pedia-me às vezes que lhe lesse os meus últimos poemas e, a meio da leitura, interrompia-me aos gritos: "Não continues, não continues, que me influencias!"
        No teatro e no silêncio, na multidão e na intimidade, era um multiplicador de beleza. Nunca vi pessoa com tanta magia nas mãos, nunca tive um irmão mais alegre. Ria, cantava, musicava, saltava, inventava, jorrava. Muito pobre, possuía todos os dons do mundo. E, assim como foi um trabalhador de ouro, um zangão na colmeia da grande poesia, era um mãos-largas do seu talento.
        - Escuta - dizia-me, agarrando-me num braço. - Vês essa janela? Não a achas chorpatélica?
        - E que significa chorpatélico?
        - Eu também não sei, mas temos de perceber o que é ou o que não é chorpatélico. De outra maneira, estamos perdidos. Olha aquele cão, que chorpatélico ele é!
        De outra vez, contou-me que numa escola de crianças de tenra idade, em Granada, o convidaram para uma comemoração de D. Quixote. Quando chegou à sala de aulas, todos os meninos cantaram sob a regência da directora:



Siempre siempre será lembrado
desde el uno hasta el otro confin
este libro que fué comentado
por don F. Rodríguez Marín.


        Em certa ocasião pronunciei uma conferência sobre Garcia Lorca, anos depois da sua morte, e alguém do público perguntou-me:
        - Porque diz você, na "Oda a Federico", que por ele "pintam de azul os hospitais"?
        - Olhe, companheiro, respondi-lhe. Fazer perguntas desse género a um poeta é como perguntar a idade às mulheres. A poesia não é uma matéria estática, mas uma corrente fluida que muitas vezes se escapa das mãos do próprio criador. A sua matéria-prima é feita de elementos que são e não são ao mesmo tempo, de coisas existentes e inexistentes. De qualquer modo, tentarei responder-lhe com sinceridade. Para mim, a cor azul é a mais bela das cores. Como a abóbada celeste, implica um impulso do espaço humano para a liberdade e alegria. Também a presença de Federico, a sua magia pessoal, impunham uma atmosfera de júbilo em redor. O meu verso quer dizer, provavelmente, que até os hospitais, inclusive a tristeza dos hospitais, poderiam transformar-se pelo feitiço da sua influência e ver-se de súbito convertidos em belos edifícios azuis.
        Federico teve um pré-conhecimento da sua morte. Um dia, ao voltar de uma digressão teatral, procurou-me para contar um caso deveras estranho. Chegara com os artistas de La Barraca a uma remotíssima aldeia de Castela e acamparam no seu termo. Fatigado com as preocupações da viagem, Federico não dormia. De manhã levantou-se e saiu a vaguear sozinho pelas redondezas. Fazia frio, aquele frio de navalha que Castela reserva ao viajante, ao intruso. A névoa flutuava em massas leitosas e dava a tudo uma dimensão fantasmagórica.
        Uma grande grade de ferro oxidado. Estátuas e colunas partidas. Era a entrada para o extenso parque de uma quinta feudal. O abandono, a hora e o frio tornavam mais aguda a solidão. Federico sentiu-se de repente angustiado pelo que aconteceria naquele amanhecer, por algo de confuso que ali tinha de suceder. Sentou-se num capitel caído.
        Um cordeiro pequenino aproximou-se, a retouçar as ervas entre as ruínas. E a sua aparição foi como a de um pequeno anjo de névoa que humanizou logo aquele deserto, caindo como uma pétala de ternura na soledade do lugar. O poeta sentiu-se acompanhado.
        De súbito, uma vara de porcos entrou no recinto. Eram quatro ou cinco animais escuros, porcos negros semi-selvagens com apetite indómito e úngulas de pedra.
        Federico presenciou então uma cena de espantar. Os porcos lançaram-se sobre o cordeiro e, perante o horror do poeta, despedaçaram-no e devoraram-no.
        Esta cena de sangue e solidão levou Federico a ordenar ao seu teatro ambulante que continuasse imediatamente o caminho.
        Ainda transido de horror, três meses antes da Guerra Civil, Federico contou-me esta história terrível.
        Só depois eu vi, com clareza cada vez maior, que aquele episódio era a representação antecipada da sua morte, a premonição da sua incrível tragédia.


        Federico Garcia Lorca não foi fuzilado - foi assassinado. Ninguém poderia pensar, evidentemente, que alguma vez o matariam. De todos os poetas de Espanha, era ele o mais amado, o mais querido, o mais semelhante a uma criança pela sua maravilhosa alegria. Quem poderia pensar que haveria na Terra, na sua terra, monstros capazes de tão inexplicável crime?
        O efeito moral daquele crime foi para mim o mais doloroso de uma longa luta. A Espanha foi sempre um campo de gladiadores, uma terra regada por muito sangue. A praça de touros, com o seu sacrifício e a sua elegância cruel, repete, em forma de espectáculo, o velho combate mortal entre a sombra e a luz.
        A Inquisição encarcera Frei Luis de Léon; Quevedo padece no calabouço; Colombo caminha com grilhetas nos pés. E o maior espectáculo de Espanha foi o ossário no Escorial, como agora é o Monumento as Caídos, com uma cruz sobre um milhão de mortos e sobre inumeráveis e obscuras prisões.


Texto retirado de
Confesso que Vivi - Memórias
Pablo Neruda
Publicações Europa-América
Lisboa, Março de 1976
Exemplares disponíveis nas bibliotecas municipais

- Reprodução não oficial -




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