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duas ou três coisas que sei dele
Beth Formaggini

Publicado no catálogo da mostra Inocência e Delírio (CCBB/Rio, Nov-2000)
     Depois de trabalhar como assistente de Walter Lima Jr. em vários programas para televisão, decidi realizar um documentário sobre ele em parceria com  Luís Felipe Sá,  que na época era um dos fotógrafos do Dossiê Chatô - O Rei do Brasil dirigido por Walter para o canal GNT. O documentário Walter.doc - O Tempo É Sempre Presente, gravado entre  1997 e 2000, será visto agora na Mostra Inocência e Delírio e no Canal Brasil.
      Aprendemos muito durante essa longa convivência com o “Maestro” - como era chamado carinhosamente pela  equipe. Aqui estão algumas das impressões que ficaram sobre o nosso personagem e trechos das conversas gravadas no decorrer do trabalho:

Entusiasmo imprime  na película

      Encantado por cinema desde criança, Walter passa pelos cineclubes e pela crítica até começar a fazer cinema como assistente de Glauber Rocha, quando vive pela primeira vez a alegria de realizar um filme:
      “Deus e o Diabo na Terra do Sol tem uma felicidade, ou melhor, um entusiasmo... É o filme mais entusiasmado da minha geração. É uma energia... Para mim certos filmes deveriam ser vendidos na farmácia para que as pessoas tomassem uma prise. Como Cantando na Chuva. Toda vez que você estivesse deprê, iria na farmácia sem receita e diria: - ‘me dá um Cantando na Chuva aí, uns rolinhos, qualquer pedaço do filme’. Tem vários filmes assim: de pirata, faroeste, filmes do Godard, Jules e Jim do Truffaut. Tem isso em filmes do Pasolini, do Rossellini, do Fellini. Eles passam para o público uma afetividade, um mistério, o perfume do filme. Você não sabe direito o que que é - é a alegria, o entusiasmo.”
      Walter está sempre buscando um conhecimento permanente. Como um pianista acredita que deve  praticar muito e sempre. Cineasta brasileiro vindo de uma família de classe média, conhece muito bem as dificuldades para passar da captação de recursos à captação de imagens cinematográficas. Nesse meio tempo, não recusa trabalho. Fez dezenas de documentários para o Globo Repórter, clipes musicais,  programas educativosminisséries, uma sitcom, campanha política, cursos de direção de ator - tudo tem importância contanto que ele esteja sempre em ação, experimentando. Tira partido do contato com atores e técnicos e vai testando soluções para os problemas que vão se colocando, com curiosidade para ouvir e absorver sugestões. Além da prática continuada, a afetividade com que Walter se relaciona com a equipe durante o trabalho é outro elemento importante de seu cinema, levando cada um a dar o melhor se si:
      "A primeira coisa que une as pessoas e que as deixa trabalhando em paz, criando à vontade, é o laço afetivo, uma identidade comum, e isso plasma, a câmera fotografa isso, é feito fotogenia."

O Mestre da arte de trabalhar conceitos e  sentimentos com imagens e sons.

    "Tudo o que eu quero é passar um sentimento para o público. O problema é de como se resolvem questões de narrativa sem a perda do objetivo fundamental, que é trazer a emoção para o espectador".
      Na obra de Walter, todos os aspectos estão em função de provocar no espectador uma emoção dada. O diretor, o fotógrafo, os atores, toda a equipe parecem ter o conhecimento do sentimento do personagem naquele momento para transmiti-lo ao espectador. Seu trabalho de direção de ator é fundamental. O ator é o intermediário desse processo, transformando o sentimento em ação. Tudo deve estar a serviço dessa relação. Em A Ostra e o Vento, o sound designer parece ter a missão de, através de uma sinfonia de sons de vento, mar e outros ruídos, transportar o espectador para a ilha e lá aprisioná-lo, fazendo-o sentir o sufocamento de Marcela.
      "Eu quero fazer um filme de pessoas, de personagens. Cada vez mais me interesso por gente. As formas se transformaram pra mim em pessoas. O que eu mais ambiciono na vida é fazer um filme em que ninguém me veja na tela, veja só os personagens. Se eu conseguir isso, aí terei feito um filme autoral. Não é esse papo de um cinema autoral em que eu me veja narcisicamente diante do meu próprio espelho. O meu cinema nasce talvez da minha curiosidade pelas pessoas. Como botar essas pessoas na tela e como dividir isso com os atores? Como somar isso e fazer com que seja palpável, que tenha corpo e volume? Eu não posso fazer isso sozinho. Você tem que ter gente e isso eu só vou conseguir com os atores. Adoro ator. Eles são o instrumento mais fino que um diretor possui. É importante perceber o ator e fazer com que ele se aproxime do personagem."
      Ele trata seu cinema como espetáculo narrativo, de entretenimento.
      "O cinema  nasceu em parque de diversão, ao lado da roda-gigante, do mafuá mais completo  Tinha esse negócio de máquina de botar moeda e ver cenas do cavalo correndo e da bailarina sobre o cavalo. Então o aprendizado do público com o cinema, na infância do cinema, veio dessa proximidade com o anônimo, com o povo. É importante criar a possibilidade do espetáculo."
      Walter acredita na inteligência do público e dedica a ele seu espetáculo, ciente do quanto as platéias estão familiarizadas com a linguagem audiovisual . Mesmo não seguindo uma narrativa linear, ele quer contar uma história.

A vida se mistura com o filme e o documentário com a  ficção

      Em A Lira do Delírio, atores contracenam com populares em cenas documentais filmadas no carnaval de Niterói. Num dado momento, o diretor é obrigado a entrar no quadro para resgatar sua mulher, a atriz Anecy Rocha, envolvida com os foliões delirantes no limite da agressão. Em outra cena, repete os métodos de tortura que presenciou no DOI-CODI, onde esteve preso na época da ditadura militar. Walter faz o papel de um dos policiais e inclui no seu texto, literalmente, as mesmas frases que ouviu das sessões de tortura.
      "O meu processo existencial está muito atirado dentro de A Lira do Delírio. Chega a incomodar quando revejo o filme. Mas eu não conseguiria sobreviver se não o tivesse feito. Era como uma espécie de bóia, eu era um náufrago e aquele filme era uma tábua no meio do oceano. (...) O interessante foi que ele nasceu numa sessão de análise de grupo. Eu queria entender o que estava fazendo no meio daquele grupo. Eu estava juntando os pedaços desse grupo, de mim mesmo, totalmente liserjado, atomizado. Eu tinha que me montar, então o processo foi lento e muito doloroso.”
      Na Lira, Walter ainda participa como ator na última cena, quando resgata para Anecy/Ness seu filho Jorge/Gúri-Gúri das mãos de um  traficante de crianças. "Pai de plantão", Walter remexe questões difíceis da paternidade em Inocência e A Ostra e o Vento:
      "Talvez tenha feito o filme para compreender a minha filha. Foi a maneira com que eu inconscientemente fui em direção a ela e fiquei muito feliz quando o filme terminou, porque eu pude entendê-la mais claramente e de alguma forma ajudá-la. Criou-se uma possibilidade de ela cantar como se fosse a menina do filme. Acho que aquilo ajudou-a a compreender o seu próprio momento de virar mulher.”

Os quatro elementos

     "A expressão mais eloqüente da natureza em nós é o desejo"
      Um dos temas centrais dos últimos filmes de Walter Lima Jr. é a relação entre seres humanos e a natureza, a grandeza dessa natureza e a projeção do desejo na natureza. Esses personagens seriam eles mesmos a expressão desse desejo, que se manifestaria neles, ou então, o desejo seria a própria manifestação da natureza dentro deles.
    "Marcela (de A Ostra e o Vento) imaginou um homem, um príncipe encantado na figura do vento, da natureza. O que interessa é isso, como ela libertou o seu imaginário e não a relação mesmo física entre ela e os homens, mas a capacidade de ela se libertar pelo imaginário".
      O tema do seu primeiro filme, Menino de Engenho, é retomado em Inocência. A terra  do engenho que o menino pisa pela primeira vez é a mesma terra de Inocência e dos filmes de Humberto Mauro, do qual é herdeiro  - a terra da "infância do Brasil". A partir de Inocência, firma-se um estilo próprio, mais clássico, que permanece em Ele, O Boto – o desejo que vem da água e reafirma-se no ar em A Ostra e o Vento.
      O fogo vem se manifestar no desejo carnal do religioso em O Monge e a Filha do Carrasco, um homem que confunde paixão com compaixão. Na chegada à aldeia, os dois jovens monges atravessam um campo coberto de matas incendiadas. No delírio carnavalesco de Ness Eliot/Anecy Rocha, já queimava o mesmo fogo. O filme era tão inflamável que chegou mesmo a consumir um dos personagens, o Toni, assassinado na Lapa numa cama em chamas.

A arte do encantamento

      A fidelidade ao território universal do cinema tem levado Walter cada vez mais aos temas de todos os homens - o isolamento, o medo, a morte, a opressão e a liberdade  - e a locações indefinidas no tempo e no espaço. Seus últimos dois filmes poderiam ter se passado em qualquer lugar. Na gravação de A Ostra e o Vento, um dos atores  perguntou-lhe que personagem era aquele? Onde  ele vivia? Walter respondeu:
     "É um personagem da tela, é ali que o filme se passa. Eu acredito que A Ostra e o Vento tem um compromisso extremamente forte com o cinema, uma arte de encantamento deste século."
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