APUNTES contiene aquellos artículos que nacen a partir de una reflexión, de una inquietud; de una imposibilidad de mantenerse estático frente a un texto o a una realidad. APUNTES son, sobre todo, apuntes para una polémica. Incluimos en esta sección, entonces, aquellos relatos que por su génesis misma suponen un proceso previo de decisión o cavilación. Son el resultado y la consecuencia de ese proceso a modo de ensayo.

y sentí Buenos Aires
y literaturicé en la hondura del alma
la viacrucis inmóvil
de la calle sufrida
y el caserío sosegado.
J. L. Borges, “Arrabal”, Fervor de Buenos Aires (1923).


Meu pensamento é tal-e-qual São Paulo, é histórico e completo./ É presente e passado e dele nasce meu ser verdadeiro...
MM. de Andrade, “Momento”, Remate de males (1930).

Segundo Jorge Luis Borges, “la poesía nace de la ciudad y también la poesía que celebra los motivos del campo” (BORGES, 1955:3). A noção perspicaz de Borges de que a literatura (ou a poesia) sempre teve como berço natural a cidade (em tempos modernos e mesmo pré-modernos), embora configure e traduza uma tradição literária argentina específica (em que a linguagem da ficção, mesmo quando fala de temas rurais, é a linguagem da cidade), estende-se, de modo geral, a toda literatura moderna ocidental (cf. BRADBURY e MACFARLANE, 1980:76-82).

A poesia, por natureza, é o resultado de uma construção (seguindo pelo pensamento de Borges) intelectual-subjetiva; é um “Aleph” através do qual se pode ver e aproximar-se de tudo, das relações mais complexas e simples do ser humano consigo mesmo, com os outros e com a natureza, de espaços e tempos. Trabalha numa perspectiva infinita (“um infinito em abismo”), em que a literatura se nutre da própria literatura, produzindo ficções de ficções, como faz Pierre Menard com Don Quijote.
Advoga-se, desse modo, ao artista a tarefa de ver e anunciar, a partir dos mecanismos próprios da linguagem artística, as infinitas manifestações do ser humano, os limites do poder político e cultural que organiza e dirige a sociedade, a sua comunidade, sem a qual a liberdade artística faz-se vazia e inócua. Não se reivindica aqui uma função puramente sociológica (ou pragmática) e política da literatura, descambando para um determinismo e reducionismo realista de um espaço e de uma época. Esta tendência em reduzir o texto ao contexto há muito foi superada por uma tradição crítica brasileira já consolidada a partir dos estudos de Antonio Candido. Nessa linha, Alfredo Bosi, ao fazer uma auto-análise de seu percurso crítico, observa que a poesia, seja ela mística, intimista, satírica ou utópica, não o levou a vê-la como um mero “espelho da ideologia dominante, mas pode ser o seu avesso e contraponto (...). Tratava-se de entender a riqueza imanente do símbolo poético em uma perspectiva realista pela qual a poesia faz parte do movimento histórico, é um dos seus modos de manifestar-se, e não um seu epifenômeno” (BOSI, 2001:37).

Um dos temas ou umas das problemáticas presente na poesia e na arte de maneira geral é a questão da cidade (moderna sobretudo) e suas implicações na vida, na arte e na cultura, num sentido amplo e específico. A presença da cidade como tema e artefato conformou, na literatura ocidental, o que se convencionou chamar “estética urbana”, que floresce de um modo mais arraigado a partir do século XIX, particularmente.

Os estudos em torno de uma estética urbana têm oferecido elementos chaves para se entender as manifestações sociais e artísticas no contexto da modernidade e da cidade. “Objeto natural, ao passo que sujeito cultural, a cidade é uma das formas em que indivíduo e massa, matéria e memória se articulam”, argumenta Raúl Antelo, e completa, “talvez seja por isso que a ecologia urbana não pode pensar a cidade sem a cidadania, assim como não pode conceber a modernidade sem a cidade” (ANTELO, 1994:67).

A cidade que se projeta no fazer poético não é um mero reflexo daquilo que “aparenta” ser. Não se trata de descrever, mas de traduzir. Em outro termos, a poesia não configura uma experiência mimética da cidade real, mas apreende-a por meio de figuras, de imagens que apenas cifram, insinuam os seus traços determinando uma iconografia da cidade. Assim como a arte, a cidade caracteriza-se por sua natureza inacabada e de desapropriação. Decorre daí a opção pelo detalhe em detrimento do todo. É assim que a poesia se atém a traduzir, por meio de uma linguagem alegórica, simbólica e imagética, os elementos anônimos, descentrados, quase invisíveis, os espaços micros: a casa, o indivíduo, a rua, o bairro, o ônibus, o bandido, a prostituta, o vendedor sem carteira de trabalho, o crepúsculo, os amanheceres, a mulher que passa..., enfim, o outro lado da rua, denunciando as suas contradições e os interesses antagônicos do poder hegemônico que tenta dominar e controlar a tudo e a todos.

É a partir dessas premissas que se arma o presente ensaio sobre as relações que se pode estabelecer entre a poética urbana de Mário de Andrade (em torno de São Paulo) e de Jorge Luis Borges (em torno de Buenos Aires) nos anos vinte, particularmente, e as vanguardas locais e em um sentido mais amplo.

Mário e Borges viveram em cidades tão próximas (pelo menos geograficamente) que o poeta paulistano e o poeta bonairense bem poderiam ter-se cruzado em algum de seus constantes passeios pela cidade; ter-se conhecido em alguma cafeteria ou em alguma rua desconhecida, se não fosse o fato de Borges, por esses anos (década de vinte e trinta), nunca ter estado em São Paulo. E Mário, por seu turno, jamais foi a Buenos Aires e raras vezes saiu da capital paulistana, excetuando um período mais longo no Rio de Janeiro entre 1938 e 1941. Se as vicissitudes da vida não os colocaram frente a frente, a poesia talvez possa aproximá-los no espaço da magia, do imaginário, da crítica. Em outros termos, “o olhar caleidoscópio da modernidade” (na expressão de Raúl Antelo) transforma-se, amplia-se no olhar de dois poetas andarilhos que cruzam dois cenários urbanos modernos e periféricos em profundas transformações. As diferenças, nesse sentido, podem funcionar como ponto de partida para a aproximação e não para a dispersão, já que elas, se não inexistem, potencializam-se em torno daquilo que ambos buscavam de um modo similar: o encontro com a cidade para poder traduzir, nas palavras de Jorge Schwartz, a “cartografia em poesia, o mapa em símbolo” (SCHWARTZ, 1982:106).

Sabe-se que Borges vai construindo, através da cartografia urbana do presente, uma cartografia do passado que se sustenta no mito de uma Buenos Aires eterna, una. Já Mário se centra na cidade do presente como fim em si mesma, como símbolo do movimento da modernidade, do fragmentário, da “transitoriedade contingente”. Com raras exceções, busca a cidade do passado, aquilo que Schwartz chama de “procura da tradição quebrada pelo urbanismo moderno de São Paulo” (1982:108). Entretanto, se as “veredas” são opostas, em determinados aspectos, um sentimento comum impulsiona-os: o amor que devotam às suas cidades.

Se o poeta portenho busca na cidade o eterno e o poeta paulistano a novidade do transitório (sobretudo na Paulicéia desvairada), ambos, entretanto, desembocam numa mesma encruzilhada, numa mesma esquina para romper com os limites da tradição (clássica ou modernista) e trilhar novos caminhos na modernidade periférica em que vivem.
Nesse sentido, os poemas que abrem tanto a Paulicéia desvairada (1922) como Fervor de Buenos Aires (1923) são emblemáticos. Ainda que trilhem caminhos distintos, ambos os poemas estão cruzados pelo desejo de demarcar um espaço original, íntimo, que realce determinados elementos de uma possível identidade da cidade, a partir da qual se possa pensar o novo e a tradição. Em outras palavras, buscam demarcar uma fronteira onde se posicionam para pensar um espaço cultural específico em relação e em diálogo com um movimento mais amplo: o projeto da modernidade.
Alguns aspectos biográficos dos dois poetas podem ajudar nesse processo de aproximação. Se, por um lado, Mário, ao contrário de Borges com relação a Buenos Aires, nunca deixou por muito tempo a sua São Paulo, por outro, é impressionante o seu interesse, seja por meio de estudos, seja por meio de poucas (mas fundamentais) viagens, em conhecer o interior desconhecido de um país de dimensões continentais e de culturas heterogêneas como é o Brasil. Isso, claro, não o impediu de se interessar por uma cultura cosmopolita, percebendo, como seu vizinho argentino, que a sua tradição é apenas um ramo da grande tradição ocidental.

Leitor curioso, desde cedo Mário tomou consciência das novas tendências da literatura mundial. Por sinal, conhecia muito bem a literatura hispano-americana, (1) e em particular a literatura argentina, demonstrando um interesse agudo pela vanguarda portenha (que ele chamava de “literatura modernista”). Era leitor assíduo das revistas literárias de lá, dentre elas, Síntesis, Prisma, Proa, Martín Fierro, Claridad, e conhecia a obra de escritores contemporâneos, como Ricardo Güiraldes, Oliverio Girondo, Leopoldo Marechal, Nicolás Olivari, dentre outros, e com uma atenção especial para Borges, considerado por Mário, fazendo uma leitura pioneira, “a personalidade mais saliente da geração moderna da Argentina”. E talvez Mário tenha sido um dos primeiros escritores brasileiros a referir-se a Borges textualmente, como se pode observar na série de textos que escreve sobre a literatura argentina publicados no Diário Nacional, entre 1927 e 1928, recolhidos e publicados por Emir Rodríguez Monegal em Mário de Andrade/Borges. Um Diálogo dos Anos 20 (1987), primeiro e único livro que estuda comparativamente os dos autores, em que destaca a refinada crítica de Mário sobre a literatura vanguardista argentina e sobre o próprio Borges.(2) Por seu turno, até onde se sabe, Borges não leu Mário, mas não desconhecia a literatura brasileira e outros aspectos do Brasil.(3)
Outro dado importante é o fato de que ambos viveram em duas cidades cosmopolitas e em processo acelerado de modernização. Dois centros culturais irradiadores por excelência, onde nascem os dois movimentos de vanguarda mais importantes da América do Sul e nos quais tanto Mário quanto Borges tiveram especial participação.

1. Sobre o tema cf. Raúl Antelo (1979a), e Telê Porto Ancona Lopez e Maria Helena Grembecki (1965).
2. Cf. também Raúl Antelo (1979b) e Antônio Paula Graça (1996). A pesquisadora argentina Patricia Artundo desenvolveu um estudo profundo e detalhado das relações intelectuais e amistosas de Mário com os intelectuais e artistas argentinos que se encontra em fase de publicação com o título de Mário de Andrade e a Argentina. Uma leitura inicial pode ser feita em seu ensaio, ‘“Clara Argentina’: Mário de Andrade e a nova geração argentina” (ARTUNDO, 2001:39-50).
3. Sabe-se que Borges foi leitor de Euclides da Cunha, Rui Ribeiro Couto, Paulo Faria de Magalhães, Jorge Amado e supostamente de Guimarães Rosa, que Borges conheceu pessoalmente. Em 1933, Borges escreve resenhas sobre os livros Nordeste e outros poemas do Brasil, de Rui R. Couto e Versos, de Paulo F. de Magalhães (BORGES, 1999a:198-200 e 214-215), e em 1939 faz um rápido comentário sobre a tradução ao francês do romance Jubiabá, de Jorge Amado (BORGES, 2000:150). Sobre Borges e o Brasil, cf. Raúl Antelo (2001:417-432).



E é no campo da crítica, sobretudo em torno de uma poética moderna (as vanguardas), que ambos os poetas colocam-se em uma arena comum de luta, onde se percebe uma grande sintonia entre as suas idéias. Esse diálogo permite identificar, ainda que subterraneamente, um “espaço intelectual” crítico comum. Seus ensaios críticos (e não somente os seus textos poéticos) provocaram uma verdadeira revolução na tradição literária de seus respectivos países.

Como Borges, a obra de Mário, em seus primeiros tempos, esteve marcada por polêmicas, fervor (moderado e passageiro) vanguardista, busca pela identidade cultural, o debate em torno da língua, a releitura da tradição literária brasileira, desejo de universalização, esforço extremado de ler e decifrar o contexto urbano em transformação. Entretanto, em Mário o aspecto político de sua obra se evidencia de um modo mais claro não só nos seus textos críticos e poéticos, como em sua vida de homem de ação, ainda que em Borges, particularmente nos anos vinte e trinta, o fervor político também esteja presente.
Um dos aspectos comuns a ser destacado é a estreita relação que prematuramente os dois poetas articulam entre a criação ficcional e a crítica, abordando temas comuns tanto em seus textos ensaísticos como nos poéticos. Crítica e poética estiveram desde o início harmoniosamente articuladas em suas atividades de escritores. São, como se costuma denominar, “escritores críticos” por excelência. (4) Nesse diapasão de criação e crítica, a revisão apurada e criativa de suas tradições literárias passa a ser uma constante. O processo está cruzado por um olhar questionador da diacronia pela sincronia; por aquilo que Haroldo de Campos chama de “movimento sempre cambiante da diferença”, ou seja, os momentos de ruptura e de transformação nos quais as suas próprias obras irão se inserir. Tanto para Mário como para Borges, a tradição está determinada não somente pela continuidade, mas também pela ruptura, por uma relação de tensão; não é algo dado, ou já determinado e fechado, mas um movimento, um sistema que deve ser constantemente minado, recriado, reinventado e transformado. Ricardo Piglia fala de uma relação de “extradição”, ou seja, de uma relação de oposição não só à tradição como ao Estado. Mário, como bem observou Haroldo de Campos, foi o melhor teórico do nacional ao revelar a impossibilidade de determinar a identidade do brasileiro, como se pode evidenciar no “descaráter” questionador de “seu antiherói macunaímico” (CAMPOS, 1991:48).

Algo similar fez Borges em seu ensaio dos anos 20, “El tamaño de mi esperanza”, que se completa com “El escritor argentino y la tradición” e tantos outros. A literatura argentina será outra a partir das abordagens críticas de Borges. “No leer a Borges es un buen método para no entender la literatura argentina, pero en esta afirmación Borges significa, antes de nada, Borges crítico”, observa Sergio Pastormerlo (1997:15).

Em linhas gerais, a poesia borgeana está mais voltada para a tendência nostálgico-mítica enquanto a poesia de Mário de Andrade tende para a crítica-utópica, sem que isso signifique, claro, o enquadramento de suas poéticas em categorias fechadas, empobrecendo seus potenciais estéticos. Em Borges se nota o veio crítico, mas não de um modo direto, pois sua crítica está sempre velada por um refinado espírito irônico e paródico, tendência comum também à obra de Mário. De modo que, pode-se dizer, Borges articula, através de sua poética, uma resistência “aferrado-se à memória-viva do passado”, enquanto Mário “resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia” (emprestei essas expressões de Alfredo Bosi). A memória, nos anos vinte, não tem um peso criativo em Mário como ocorre com Borges. Mário não constrói uma poética calcada na memória, mas no presente, no momento da vivência.(5)

4. Os trabalhos sobre a atividade crítica de Borges são intensos, lembraria os ensaios de Emir Rodríguez Monegal (1964:411-416); Sergio Pastormerlo (1997:6-16); Ricardo Piglia (2000:155-175). Dos estudos sobre o Mário como crítico, lembraria o excelente estudo de João Luiz Lafetá (2000:151-224).
5. Segundo Eneida Maria de Souza, para Mário “o que mais lhe importa, no ato de rememoração, é sentir-se desmemoriado, atingindo, a partir do esquecimento, o salto criativo e a percepção do mundo em ‘perene descobrimento’. (...) A construção de uma nova visão de cultura brasileira se fundamenta no artefato simbólico de uma linguagem sem nenhum caráter, no amálgama de estilos e apropriações das mais diversas fontes do saber erudito e popular. O esquecimento, tal como acontece na prática recitativa dos rapsodos gregos e dos cantadores nordestinos, propicia a invenção e o improviso. Criar é esquecer modelos, driblar os versos guardados na memória, brincando com o arquivo cultural de forma a anarquizar com sua estrutura parasitária” (SOUZA, 1993:8-10).

Se Borges foi o introdutor e o divulgador do “Ultraísmo” na Argentina, Mário converteu-se num dos principais fomentadores do Modernismo brasileiro. Entretanto, o fervor vanguardista em ambos, se não é passageiro, é bastante cauteloso, reticente ou, na melhor das hipóteses, problemático. Suas preocupações nunca se desviaram do local, dos problemas emergentes no contexto cultural, estético e social de seus países. Se Borges se interessa pela literatura argentina do século XIX, por exemplo, Mário mergulha fundo no estudo do Barroco e do Romantismo brasileiros, assim como em outros aspectos do patrimônio cultural do País.

Como Borges, Mário não dissimula seu rechaço ao “futurismo’ de Marinetti. No “Prefácio interessantíssimo”, lança seu olhar irônico e crítico ao fundador do “futurismo”. Para Mário, as influências de fora deveriam se converter em um instrumental poderosíssimo para ler o passado e um presente complexo e indefinido, colocando em prática aquilo que Antonio Candido chama de “a dialética do localismo e do cosmopolitismo”, em que a realidade local fornece a “substância da expressão” e os modelos importados, a “forma da expressão” (CANDIDO, 1965).

Mário escandaliza o gosto poético tradicional com a edição explosiva de sua Paulicéia desvairada, ainda que o livro esteja aquém das ousadias formais de um Oswald de Andrade, e o mesmo ocorre com Fervor em relação à poética vanguardista de um Oliverio Girondo. (6) De qualquer modo, a Paulicéia desvairada simboliza um divisor de águas. Mário é o poeta pioneiro que abre caminho para a poesia moderna no Brasil, embora a sua grande contribuição, num primeiro momento, esteja mais centrada nas suas idéias e menos na sua prática poética. No "Prefácio interessantíssimo", por exemplo, confessa:

E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos
artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu. (ANDRADE, 1987:60).

Pode-se inferir que Mário não se via no desespero de libertar-se das “teorias-avós”, já que não se sentia preso a elas como se estivesse encarcerado. O que buscava era uma força criativa que fizesse aflorar o “novo” sem menosprezar os potenciais criativos já presentes no velho. Tinha muito clara a necessidade de aprofundar essa dialética, essa visão sincrônica. No seu famoso ensaio, A escrava que não é Isaura, o poeta confirma a ambigüidade de estar sempre dividido entre o passado e o presente, entre o “novo” e o “velho”, o que configura, por sinal, uma de suas características mais marcantes. Partindo da leitura de um poema de Maiakóvski, cujo verso “Nada de marchar, futurista, um salto para o futuro” chama-lhe a atenção, argumenta:

Eu por mim não estou de acordo com aquele salto para o futuro. Vejo Lineu a rir da linda ignorância do poeta. Também não me convenço de que se deva apagar o antigo. Não há necessidade disso para continuar para frente. Demais: o antigo é de grande utilidade. Os tolos caem em pasmaceira diante dele e a gente pode continuar seu caminho, livre de tão nojenta companhia. (...). É preciso justificar todos os poetas contemporâneos, poetas sinceros que, sem mentiras nem métricas, refletem a eloqüência vertiginosa de nossa vida. (...). O que cantam é a época em que vivem. E é por seguirem os velhos poetas que os poetas modernistas são tão novos. Acontece porém que no palco de nosso século se representa essa ópera barulhentíssima a que Leigh Henry lembrou o nome: Men-in-the-street...Representemo-la (ANDRADE, 1980:222-224).

Ao se contrapor à hierarquia ou à dicotomia tradicional “velho/novo”, fundindo dialeticamente um no outro, Mário concebe e faz do poético um espaço do político e arma uma poesia que quer ver o que há de atualidade ou o que pode ser atualizado do passado, da tradição no presente:

O nosso primitivismo representa uma nova fase
construtiva. A nós compete esquematizar,
metodizar as lições do passado.
(...)
O passado é lição para meditar, não para
Reproduzir (ANDRADE, 1987:71-75)

É a atitude deliberada e estratégica para abrir caminhos novos sem abandonar o que foi feito, o que pode ser resgatado como força de renovação na tradição. De fato, em 29 de dezembro de 1928, viajando por Natal, Mário anota em seu diário de vigem etnográfica algo sobre essa questão:

Dizem que sou modernista e... paciência! O certo é que jamais neguei as tradições brasileiras, as estudo e procuro continuar a meu modo dentro delas. É incontestável que Gregório de Matos, Dirceu, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Bilac ou Vicente de Carvalho são mestres que dirigem a minha literatura. Eu os imito. O que a gente carece, é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares.
As tradições imóveis não evoluem por si mesmas. Na infinita maioria dos casos são prejudiciais. Algumas são perfeitamente ridículas que nem a “carroça” do rei da Inglaterra. Destas a gente só pode aproveitar o espírito, a psicologia e não a forma objetiva (ANDRADE, 1976:254).

Mário pensa a tradição enquanto acúmulo, imitação e traição, matéria de contrabando, de falsificação, de deglutição, condição fundamental para a arte moderna.

Mesmo estando profundamente preocupado com a renovação formal dos modelos estéticos e literários tradicionais, Mário desconfia, já nesse período, do fortalecimento de uma espécie de culto à técnica, à experimentação; um culto pelos artifícios (pelos “artefatos”, diria Borges), e sobretudo desconfiança no postulado vanguardista de borrar tudo aquilo que foi feito no passado. De fato, mais tarde, em “O movimento modernista”, reconhecerá que a arte não é apenas uma construção formalmente bem elaborada, mas “uma expressão interessada da sociedade”. Refere-se à necessidade de uma atualização da inteligência artística brasileira, bandeira levantada pelos modernistas, acrescentando que “não se deve confundir isso com a liberdade da pesquisa estética, pois esta lida com formas, com a técnica e as representações da beleza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que isso, e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma força interessada na vida” (ANDRADE, 1972:251-252). Essa definição de arte não significa atirá-la para o outro extremo, ou seja, por uma arte puramente contestatória, num sentido mais pragmático, na linha de um “realismo socialista” ou “literatura proletária”. Em O Banquete, outro texto de reflexão estética, mas de um Mário mais tardio, o personagem Janjão argumenta que “o destino do artista erudito não é fazer arte pro povo, mas para melhorar a vida. A arte, mesmo a arte mais pessimista, por isso mesmo que não se conforma, é sempre proposição de felicidade”. Mais tarde, completa: “Eu nunca me meterei fazendo isso que chamam por aí de ‘arte proletária’ ou ‘de tendência social’. Isso é confusionismo. Toda arte é social porque toda obra-de-arte é um fenômeno de relação entre seres humanos’ (ANDRADE, 1989:61). E falando sobre a “técnica”, opta pela técnica do “inacabado” e seu valor dinâmico, de deslocamento que traz, no seu bojo, um princípio democratizante, enquanto "as técnicas do acabado são eminentemente dogmáticas, afirmativas sem discussão, credo quia absurdum" (ANDRADE, 1989:61).

Idéia que em Borges se converterá em fundamento básico de sua literatura, pois para o poeta portenho, “no puede haber sino borradores. El concepto de texto definitivo no corresponde sino a la religión o al cansancio” (BORGES, 1999b:239).
A relação entre passado (tradição) e presente, é um tema igualmente recorrente nas idéias estéticas de Borges, estampadas em vários ensaios e na sua própria criação ficcional. Borges estabelece, como Mário, uma relação com a tradição cruzada pela perversão, pela traição para poder renová-la: “Hay dos maneras de usar una tradición literaria –una es repetirla servilmente; otra –la más importante– es refutarla y renovarla” (BORGES, 1960).
Se Borges, como acuradamente anota Jorge Schwartz, “não realizou em sua poesia (como os Andrades o fariam na literatura brasileira) (...) [a recuperação do] dado local numa linguagem de ruptura, próprio da vanguarda” (SCHWARTZ, 1983:89), isso não desmerece ou diminui o potencial inovador da poesia borgeana na década de vinte. Em um projeto de escritura que buscava unir o local com a vanguarda (o cosmopolita), Borges opta pelo universal sem abandonar o local; sem estar atrelado à imitação de um modelo, de uma tendência ou de uma escola específica. Opta por todos os modelos, tendo como paradigma a biblioteca universal.

Outro fator comum a ambos os poetas, é, como se sabe, a simpatia que nutriam pelo Expressionismo. (7) Mário é leitor assíduo da revista de vanguarda expressionista alemã Der Sturm. Por sua vez, Borges conheceu profundamente a poesia expressionista alemã nos anos em que viveu em Zurique e Genebra, entre 1914 e 1918. Segundo Juan José Sebreli, no expressionismo Borges “encontraba algunos de sus temas obsesivos, la magia, los sueños, la filosofía oriental, la ciudad” (SEBRELI, 1999:354). Ao falar do tempo em que esteve na Suíça, Borges observa: “(...) me interesé mucho en el expresionismo alemán, que todavía considero muy superior a otras escuelas contemporáneas como el imaginismo, el cubismo, el futurismo, el surrealismo, etcétera. Años después, en Madrid, intentaría algunas de las primeras y tal vez únicas traducciones al español de algunos poetas expresionistas” (BORGES, 1999c:45).

6. Como observa Jorge Schwartz, “sem dúvida alguma, são Oswald e Girondo que melhor captam, do ponto de vista da expressão poética, o sentido do moderno. Oswald, na síntese cinematográfica de seus fragmentos poéticos; Girondo, nos cortes metonímicos e na representação seriada de um universo que já está entregue à produção em massa” (SCHWARTZ, 1983:65).
7.
Mário escreve em defesa do Expressionismo em “Questões de arte”, publicado no Diário Nacional, São Paulo, 30 set. 1927. Borges não só traduz poetas expressionistas como escreve uma série de ensaios sobre o tema, cf. (BORGES, 1920a, 1920b e 1994:155-161). Sobre o expressionismo em Borges e Mário, cf. Jorge Schwartz (1990:81-97).


Mário e Borges trabalham, desse modo, numa perspectiva que se poderia chamar de abertura crítica constante de si próprios, mantendo-se dentro de uma tradição moderna (e menos modernista) para, ao mesmo tempo, preservar e redefinir antigas e novas perspectivas estéticas, éticas e políticas, na busca por novos sentidos, novas formas de interpretação. A importância da tradição é um fator realmente fundamental para os dois poetas. Ao contrário da tendência da época (particularmente nas vanguardas) de se fazer um corte radical (por vezes destrutivo) com o que passou, a poética de ambos busca reatar a conexão entre a extensa e rica cultura do passado e universal com o contexto do presente, filtrado por um afinado critério seletivo e crítico. Nesse campo, o da crítica à modernidade, às vanguardas e à releitura de um passado vivo e operante, Mário e Borges caminham, lado a lado, por uma mesma “vereda”.

ARRIBA 

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BIBLIOGRAFIA

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