|
APUNTES
contiene aquellos artículos que nacen a partir de una reflexión,
de una inquietud; de una imposibilidad de mantenerse estático
frente a un texto o a una realidad. APUNTES son, sobre todo, apuntes
para una polémica. Incluimos en esta sección, entonces,
aquellos relatos que por su génesis misma suponen un proceso
previo de decisión o cavilación. Son el resultado
y la consecuencia de ese proceso a modo de ensayo. |
 |
|
y
sentí Buenos Aires
y literaturicé en la hondura del alma
la viacrucis inmóvil
de la calle sufrida
y el caserío sosegado.
J.
L. Borges, “Arrabal”, Fervor de Buenos Aires (1923).
|
 |
Meu
pensamento é tal-e-qual São Paulo, é
histórico e completo./ É presente e passado
e dele nasce meu ser verdadeiro...
MM. de Andrade, “Momento”,
Remate de males (1930).
|
Segundo
Jorge Luis Borges, “la poesía nace de
la ciudad y también la poesía que celebra los
motivos del campo” (BORGES, 1955:3). A noção
perspicaz de Borges de que a literatura (ou a poesia) sempre
teve como berço natural a cidade (em tempos modernos
e mesmo pré-modernos), embora configure e traduza uma
tradição literária argentina específica
(em que a linguagem da ficção, mesmo quando
fala de temas rurais, é a linguagem da cidade), estende-se,
de modo geral, a toda literatura moderna ocidental (cf. BRADBURY
e MACFARLANE, 1980:76-82).
A poesia, por natureza, é o resultado de uma construção
(seguindo pelo pensamento de Borges) intelectual-subjetiva;
é um “Aleph” através do qual se
pode ver e aproximar-se de tudo, das relações
mais complexas e simples do ser humano consigo mesmo, com
os outros e com a natureza, de espaços e tempos. Trabalha
numa perspectiva infinita (“um infinito em abismo”),
em que a literatura se nutre da própria literatura,
produzindo ficções de ficções,
como faz Pierre Menard com Don Quijote.
Advoga-se, desse modo, ao artista a tarefa de ver e anunciar,
a partir dos mecanismos próprios da linguagem artística,
as infinitas manifestações do ser humano, os
limites do poder político e cultural que organiza e
dirige a sociedade, a sua comunidade, sem a qual a liberdade
artística faz-se vazia e inócua. Não
se reivindica aqui uma função puramente sociológica
(ou pragmática) e política da literatura, descambando
para um determinismo e reducionismo realista de um espaço
e de uma época. Esta tendência em reduzir o texto
ao contexto há muito foi superada por uma tradição
crítica brasileira já consolidada a partir dos
estudos de Antonio Candido. Nessa linha, Alfredo Bosi, ao
fazer uma auto-análise de seu percurso crítico,
observa que a poesia, seja ela mística, intimista,
satírica ou utópica, não o levou a vê-la
como um mero “espelho da ideologia dominante, mas pode
ser o seu avesso e contraponto (...). Tratava-se de entender
a riqueza imanente do símbolo poético em uma
perspectiva realista pela qual a poesia faz parte do movimento
histórico, é um dos seus modos de manifestar-se,
e não um seu epifenômeno” (BOSI, 2001:37).
Um dos temas ou umas das problemáticas presente na
poesia e na arte de maneira geral é a questão
da cidade (moderna sobretudo) e suas implicações
na vida, na arte e na cultura, num sentido amplo e específico.
A presença da cidade como tema e artefato conformou,
na literatura ocidental, o que se convencionou chamar “estética
urbana”, que floresce de um modo mais arraigado a partir
do século XIX, particularmente.
Os estudos em torno de uma estética urbana têm
oferecido elementos chaves para se entender as manifestações
sociais e artísticas no contexto da modernidade e da
cidade. “Objeto natural, ao passo que sujeito cultural,
a cidade é uma das formas em que indivíduo e
massa, matéria e memória se articulam”,
argumenta Raúl Antelo, e completa, “talvez seja
por isso que a ecologia urbana não pode pensar a cidade
sem a cidadania, assim como não pode conceber a modernidade
sem a cidade” (ANTELO, 1994:67).
A cidade que se projeta no fazer poético não
é um mero reflexo daquilo que “aparenta”
ser. Não se trata de descrever, mas de traduzir. Em
outro termos, a poesia não configura uma experiência
mimética da cidade real, mas apreende-a por meio de
figuras, de imagens que apenas cifram, insinuam os seus traços
determinando uma iconografia da cidade. Assim como a arte,
a cidade caracteriza-se por sua natureza inacabada e de desapropriação.
Decorre daí a opção pelo detalhe em detrimento
do todo. É assim que a poesia se atém a traduzir,
por meio de uma linguagem alegórica, simbólica
e imagética, os elementos anônimos, descentrados,
quase invisíveis, os espaços micros: a casa,
o indivíduo, a rua, o bairro, o ônibus, o bandido,
a prostituta, o vendedor sem carteira de trabalho, o crepúsculo,
os amanheceres, a mulher que passa..., enfim, o outro lado
da rua, denunciando as suas contradições e os
interesses antagônicos do poder hegemônico que
tenta dominar e controlar a tudo e a todos.
É a partir dessas premissas que se arma o presente
ensaio sobre as relações que se pode estabelecer
entre a poética urbana de Mário de Andrade (em
torno de São Paulo) e de Jorge Luis Borges (em torno
de Buenos Aires) nos anos vinte, particularmente, e as vanguardas
locais e em um sentido mais amplo.
Mário e Borges viveram em cidades tão próximas
(pelo menos geograficamente) que o poeta paulistano e o poeta
bonairense bem poderiam ter-se cruzado em algum de seus constantes
passeios pela cidade; ter-se conhecido em alguma cafeteria
ou em alguma rua desconhecida, se não fosse o fato
de Borges, por esses anos (década de vinte e trinta),
nunca ter estado em São Paulo. E Mário, por
seu turno, jamais foi a Buenos Aires e raras vezes saiu da
capital paulistana, excetuando um período mais longo
no Rio de Janeiro entre 1938 e 1941. Se as vicissitudes da
vida não os colocaram frente a frente, a poesia talvez
possa aproximá-los no espaço da magia, do imaginário,
da crítica. Em outros termos, “o olhar caleidoscópio
da modernidade” (na expressão de Raúl
Antelo) transforma-se, amplia-se no olhar de dois poetas andarilhos
que cruzam dois cenários urbanos modernos e periféricos
em profundas transformações. As diferenças,
nesse sentido, podem funcionar como ponto de partida para
a aproximação e não para a dispersão,
já que elas, se não inexistem, potencializam-se
em torno daquilo que ambos buscavam de um modo similar: o
encontro com a cidade para poder traduzir, nas palavras de
Jorge Schwartz, a “cartografia em poesia, o mapa em
símbolo” (SCHWARTZ, 1982:106).
Sabe-se que Borges vai construindo, através da cartografia
urbana do presente, uma cartografia do passado que se sustenta
no mito de uma Buenos Aires eterna, una. Já Mário
se centra na cidade do presente como fim em si mesma, como
símbolo do movimento da modernidade, do fragmentário,
da “transitoriedade contingente”. Com raras exceções,
busca a cidade do passado, aquilo que Schwartz chama de “procura
da tradição quebrada pelo urbanismo moderno
de São Paulo” (1982:108). Entretanto, se as “veredas”
são opostas, em determinados aspectos, um sentimento
comum impulsiona-os: o amor que devotam às suas cidades.
Se o poeta portenho busca na cidade o eterno e o poeta paulistano
a novidade do transitório (sobretudo na Paulicéia
desvairada), ambos, entretanto, desembocam numa mesma encruzilhada,
numa mesma esquina para romper com os limites da tradição
(clássica ou modernista) e trilhar novos caminhos na
modernidade periférica em que vivem.
Nesse sentido, os poemas que abrem tanto a Paulicéia
desvairada (1922) como Fervor de Buenos Aires (1923) são
emblemáticos. Ainda que trilhem caminhos distintos,
ambos os poemas estão cruzados pelo desejo de demarcar
um espaço original, íntimo, que realce determinados
elementos de uma possível identidade da cidade, a partir
da qual se possa pensar o novo e a tradição.
Em outras palavras, buscam demarcar uma fronteira onde se
posicionam para pensar um espaço cultural específico
em relação e em diálogo com um movimento
mais amplo: o projeto da modernidade.
Alguns aspectos biográficos dos dois poetas podem ajudar
nesse processo de aproximação. Se, por um lado,
Mário, ao contrário de Borges com relação
a Buenos Aires, nunca deixou por muito tempo a sua São
Paulo, por outro, é impressionante o seu interesse,
seja por meio de estudos, seja por meio de poucas (mas fundamentais)
viagens, em conhecer o interior desconhecido de um país
de dimensões continentais e de culturas heterogêneas
como é o Brasil. Isso, claro, não o impediu
de se interessar por uma cultura cosmopolita, percebendo,
como seu vizinho argentino, que a sua tradição
é apenas um ramo da grande tradição ocidental.
Leitor curioso, desde cedo Mário tomou consciência
das novas tendências da literatura mundial. Por sinal,
conhecia muito bem a literatura hispano-americana, (1)
e em particular a literatura argentina, demonstrando um interesse
agudo pela vanguarda portenha (que ele chamava de “literatura
modernista”). Era leitor assíduo das revistas
literárias de lá, dentre elas, Síntesis,
Prisma, Proa, Martín Fierro, Claridad, e conhecia a
obra de escritores contemporâneos, como Ricardo Güiraldes,
Oliverio Girondo, Leopoldo Marechal, Nicolás Olivari,
dentre outros, e com uma atenção especial para
Borges, considerado por Mário, fazendo uma leitura
pioneira, “a personalidade mais saliente da geração
moderna da Argentina”. E talvez Mário tenha sido
um dos primeiros escritores brasileiros a referir-se a Borges
textualmente, como se pode observar na série de textos
que escreve sobre a literatura argentina publicados no Diário
Nacional, entre 1927 e 1928, recolhidos e publicados por Emir
Rodríguez Monegal em Mário de Andrade/Borges.
Um Diálogo dos Anos 20 (1987), primeiro e único
livro que estuda comparativamente os dos autores, em que destaca
a refinada crítica de Mário sobre a literatura
vanguardista argentina e sobre o próprio Borges.(2)
Por seu turno, até onde se sabe, Borges não
leu Mário, mas não desconhecia a literatura
brasileira e outros aspectos do Brasil.(3)
Outro dado importante é o fato de que ambos viveram
em duas cidades cosmopolitas e em processo acelerado de modernização.
Dois centros culturais irradiadores por excelência,
onde nascem os dois movimentos de vanguarda mais importantes
da América do Sul e nos quais tanto Mário quanto
Borges tiveram especial participação.
1. Sobre o tema cf.
Raúl Antelo (1979a), e Telê Porto Ancona Lopez
e Maria Helena Grembecki (1965).
2. Cf. também Raúl Antelo (1979b)
e Antônio Paula Graça (1996). A pesquisadora
argentina Patricia Artundo desenvolveu um estudo profundo
e detalhado das relações intelectuais e amistosas
de Mário com os intelectuais e artistas argentinos
que se encontra em fase de publicação com o
título de Mário de Andrade e a Argentina. Uma
leitura inicial pode ser feita em seu ensaio, ‘“Clara
Argentina’: Mário de Andrade e a nova geração
argentina” (ARTUNDO, 2001:39-50).
3. Sabe-se que Borges foi leitor de Euclides
da Cunha, Rui Ribeiro Couto, Paulo Faria de Magalhães,
Jorge Amado e supostamente de Guimarães Rosa, que Borges
conheceu pessoalmente. Em 1933, Borges escreve resenhas sobre
os livros Nordeste e outros poemas do Brasil, de Rui R. Couto
e Versos, de Paulo F. de Magalhães (BORGES, 1999a:198-200
e 214-215), e em 1939 faz um rápido comentário
sobre a tradução ao francês do romance
Jubiabá, de Jorge Amado (BORGES, 2000:150). Sobre Borges
e o Brasil, cf. Raúl Antelo (2001:417-432).
E é no campo da crítica, sobretudo em torno
de uma poética moderna (as vanguardas), que ambos os
poetas colocam-se em uma arena comum de luta, onde se percebe
uma grande sintonia entre as suas idéias. Esse diálogo
permite identificar, ainda que subterraneamente, um “espaço
intelectual” crítico comum. Seus ensaios críticos
(e não somente os seus textos poéticos) provocaram
uma verdadeira revolução na tradição
literária de seus respectivos países.
Como Borges, a obra de Mário, em seus primeiros tempos,
esteve marcada por polêmicas, fervor (moderado e passageiro)
vanguardista, busca pela identidade cultural, o debate em
torno da língua, a releitura da tradição
literária brasileira, desejo de universalização,
esforço extremado de ler e decifrar o contexto urbano
em transformação. Entretanto, em Mário
o aspecto político de sua obra se evidencia de um modo
mais claro não só nos seus textos críticos
e poéticos, como em sua vida de homem de ação,
ainda que em Borges, particularmente nos anos vinte e trinta,
o fervor político também esteja presente.
Um dos aspectos comuns a ser destacado é a estreita
relação que prematuramente os dois poetas articulam
entre a criação ficcional e a crítica,
abordando temas comuns tanto em seus textos ensaísticos
como nos poéticos. Crítica e poética
estiveram desde o início harmoniosamente articuladas
em suas atividades de escritores. São, como se costuma
denominar, “escritores críticos” por excelência.
(4) Nesse diapasão de
criação e crítica, a revisão apurada
e criativa de suas tradições literárias
passa a ser uma constante. O processo está cruzado
por um olhar questionador da diacronia pela sincronia; por
aquilo que Haroldo de Campos chama de “movimento sempre
cambiante da diferença”, ou seja, os momentos
de ruptura e de transformação nos quais as suas
próprias obras irão se inserir. Tanto para Mário
como para Borges, a tradição está determinada
não somente pela continuidade, mas também pela
ruptura, por uma relação de tensão; não
é algo dado, ou já determinado e fechado, mas
um movimento, um sistema que deve ser constantemente minado,
recriado, reinventado e transformado. Ricardo Piglia fala
de uma relação de “extradição”,
ou seja, de uma relação de oposição
não só à tradição como
ao Estado. Mário, como bem observou Haroldo de Campos,
foi o melhor teórico do nacional ao revelar a impossibilidade
de determinar a identidade do brasileiro, como se pode evidenciar
no “descaráter” questionador de “seu
antiherói macunaímico” (CAMPOS, 1991:48).
Algo similar fez Borges em seu ensaio dos anos 20, “El
tamaño de mi esperanza”, que se completa com
“El escritor argentino y la tradición”
e tantos outros. A literatura argentina será outra
a partir das abordagens críticas de Borges. “No
leer a Borges es un buen método para no entender la
literatura argentina, pero en esta afirmación Borges
significa, antes de nada, Borges crítico”, observa
Sergio Pastormerlo (1997:15).
Em linhas gerais, a poesia borgeana está mais voltada
para a tendência nostálgico-mítica enquanto
a poesia de Mário de Andrade tende para a crítica-utópica,
sem que isso signifique, claro, o enquadramento de suas poéticas
em categorias fechadas, empobrecendo seus potenciais estéticos.
Em Borges se nota o veio crítico, mas não de
um modo direto, pois sua crítica está sempre
velada por um refinado espírito irônico e paródico,
tendência comum também à obra de Mário.
De modo que, pode-se dizer, Borges articula, através
de sua poética, uma resistência “aferrado-se
à memória-viva do passado”, enquanto Mário
“resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no
horizonte da utopia” (emprestei essas expressões
de Alfredo Bosi). A memória, nos anos vinte, não
tem um peso criativo em Mário como ocorre com Borges.
Mário não constrói uma poética
calcada na memória, mas no presente, no momento da
vivência.(5)
4. Os trabalhos sobre
a atividade crítica de Borges são intensos,
lembraria os ensaios de Emir Rodríguez Monegal (1964:411-416);
Sergio Pastormerlo (1997:6-16); Ricardo Piglia (2000:155-175).
Dos estudos sobre o Mário como crítico, lembraria
o excelente estudo de João Luiz Lafetá (2000:151-224).
5. Segundo Eneida Maria
de Souza, para Mário “o que mais lhe importa,
no ato de rememoração, é sentir-se desmemoriado,
atingindo, a partir do esquecimento, o salto criativo e a
percepção do mundo em ‘perene descobrimento’.
(...) A construção de uma nova visão
de cultura brasileira se fundamenta no artefato simbólico
de uma linguagem sem nenhum caráter, no amálgama
de estilos e apropriações das mais diversas
fontes do saber erudito e popular. O esquecimento, tal como
acontece na prática recitativa dos rapsodos gregos
e dos cantadores nordestinos, propicia a invenção
e o improviso. Criar é esquecer modelos, driblar os
versos guardados na memória, brincando com o arquivo
cultural de forma a anarquizar com sua estrutura parasitária”
(SOUZA, 1993:8-10).
Se Borges foi o introdutor e o divulgador do “Ultraísmo”
na Argentina, Mário converteu-se num dos principais
fomentadores do Modernismo brasileiro. Entretanto, o fervor
vanguardista em ambos, se não é passageiro,
é bastante cauteloso, reticente ou, na melhor das hipóteses,
problemático. Suas preocupações nunca
se desviaram do local, dos problemas emergentes no contexto
cultural, estético e social de seus países.
Se Borges se interessa pela literatura argentina do século
XIX, por exemplo, Mário mergulha fundo no estudo do
Barroco e do Romantismo brasileiros, assim como em outros
aspectos do patrimônio cultural do País.
Como Borges, Mário não dissimula seu rechaço
ao “futurismo’ de Marinetti. No “Prefácio
interessantíssimo”, lança seu olhar irônico
e crítico ao fundador do “futurismo”. Para
Mário, as influências de fora deveriam se converter
em um instrumental poderosíssimo para ler o passado
e um presente complexo e indefinido, colocando em prática
aquilo que Antonio Candido chama de “a dialética
do localismo e do cosmopolitismo”, em que a realidade
local fornece a “substância da expressão”
e os modelos importados, a “forma da expressão”
(CANDIDO, 1965).
Mário escandaliza o gosto poético tradicional
com a edição explosiva de sua Paulicéia
desvairada, ainda que o livro esteja aquém das
ousadias formais de um Oswald de Andrade, e o mesmo ocorre
com Fervor em relação à poética
vanguardista de um Oliverio Girondo.
(6) De qualquer modo, a Paulicéia desvairada
simboliza um divisor de águas. Mário é
o poeta pioneiro que abre caminho para a poesia moderna no
Brasil, embora a sua grande contribuição, num
primeiro momento, esteja mais centrada nas suas idéias
e menos na sua prática poética. No "Prefácio
interessantíssimo", por exemplo, confessa:
 |
E
desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos
artísticos atuais. Sou passadista, confesso.
Ninguém pode se libertar duma só vez das
teorias-avós que bebeu. (ANDRADE, 1987:60). |
Pode-se inferir que Mário não se via no desespero
de libertar-se das “teorias-avós”, já
que não se sentia preso a elas como se estivesse encarcerado.
O que buscava era uma força criativa que fizesse aflorar
o “novo” sem menosprezar os potenciais criativos
já presentes no velho. Tinha muito clara a necessidade
de aprofundar essa dialética, essa visão sincrônica.
No seu famoso ensaio, A escrava que não é Isaura,
o poeta confirma a ambigüidade de estar sempre dividido
entre o passado e o presente, entre o “novo” e
o “velho”, o que configura, por sinal, uma de
suas características mais marcantes. Partindo da leitura
de um poema de Maiakóvski, cujo verso “Nada de
marchar, futurista, um salto para o futuro” chama-lhe
a atenção, argumenta:
 |
Eu
por mim não estou de acordo com aquele salto
para o futuro. Vejo Lineu a rir da linda ignorância
do poeta. Também não me convenço
de que se deva apagar o antigo. Não há
necessidade disso para continuar para frente. Demais:
o antigo é de grande utilidade. Os tolos caem
em pasmaceira diante dele e a gente pode continuar seu
caminho, livre de tão nojenta companhia. (...).
É preciso justificar todos os poetas contemporâneos,
poetas sinceros que, sem mentiras nem métricas,
refletem a eloqüência vertiginosa de nossa
vida. (...). O que cantam é a época em
que vivem. E é por seguirem os velhos poetas
que os poetas modernistas são tão novos.
Acontece porém que no palco de nosso século
se representa essa ópera barulhentíssima
a que Leigh Henry lembrou o nome: Men-in-the-street...Representemo-la
(ANDRADE, 1980:222-224). |
Ao se contrapor à hierarquia ou à dicotomia
tradicional “velho/novo”, fundindo dialeticamente
um no outro, Mário concebe e faz do poético
um espaço do político e arma uma poesia que
quer ver o que há de atualidade ou o que pode ser atualizado
do passado, da tradição no presente:
 |
O
nosso primitivismo representa uma nova fase
construtiva. A nós compete esquematizar,
metodizar as lições do passado.
(...)
O passado é lição para meditar,
não para
Reproduzir (ANDRADE, 1987:71-75) |
É
a atitude deliberada e estratégica para abrir caminhos
novos sem abandonar o que foi feito, o que pode ser resgatado
como força de renovação na tradição.
De fato, em 29 de dezembro de 1928, viajando por Natal, Mário
anota em seu diário de vigem etnográfica algo
sobre essa questão:
 |
Dizem
que sou modernista e... paciência! O certo é
que jamais neguei as tradições brasileiras,
as estudo e procuro continuar a meu modo dentro delas.
É incontestável que Gregório de
Matos, Dirceu, Álvares de Azevedo, Casimiro de
Abreu, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Bilac ou
Vicente de Carvalho são mestres que dirigem a
minha literatura. Eu os imito. O que a gente carece,
é distinguir tradição e tradição.
Tem tradições móveis e tradições
imóveis. Aquelas são úteis, têm
importância enorme, a gente as deve conservar
talqualmente são porque elas se transformam pelo
simples fato da mobilidade que têm. Assim por
exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares.
As tradições imóveis não
evoluem por si mesmas. Na infinita maioria dos casos
são prejudiciais. Algumas são perfeitamente
ridículas que nem a “carroça”
do rei da Inglaterra. Destas a gente só pode
aproveitar o espírito, a psicologia e não
a forma objetiva (ANDRADE, 1976:254). |
Mário
pensa a tradição enquanto acúmulo, imitação
e traição, matéria de contrabando, de
falsificação, de deglutição, condição
fundamental para a arte moderna.
Mesmo estando profundamente preocupado com a renovação
formal dos modelos estéticos e literários tradicionais,
Mário desconfia, já nesse período, do
fortalecimento de uma espécie de culto à técnica,
à experimentação; um culto pelos artifícios
(pelos “artefatos”, diria Borges), e sobretudo
desconfiança no postulado vanguardista de borrar tudo
aquilo que foi feito no passado. De fato, mais tarde, em “O
movimento modernista”, reconhecerá que a arte
não é apenas uma construção formalmente
bem elaborada, mas “uma expressão interessada
da sociedade”. Refere-se à necessidade de uma
atualização da inteligência artística
brasileira, bandeira levantada pelos modernistas, acrescentando
que “não se deve confundir isso com a liberdade
da pesquisa estética, pois esta lida com formas, com
a técnica e as representações da beleza,
ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que
isso, e tem uma funcionalidade imediata social, é uma
profissão e uma força interessada na vida”
(ANDRADE, 1972:251-252). Essa definição de arte
não significa atirá-la para o outro extremo,
ou seja, por uma arte puramente contestatória, num
sentido mais pragmático, na linha de um “realismo
socialista” ou “literatura proletária”.
Em O Banquete, outro texto de reflexão estética,
mas de um Mário mais tardio, o personagem Janjão
argumenta que “o destino do artista erudito não
é fazer arte pro povo, mas para melhorar a vida. A
arte, mesmo a arte mais pessimista, por isso mesmo que não
se conforma, é sempre proposição de felicidade”.
Mais tarde, completa: “Eu nunca me meterei fazendo isso
que chamam por aí de ‘arte proletária’
ou ‘de tendência social’. Isso é
confusionismo. Toda arte é social porque toda obra-de-arte
é um fenômeno de relação entre
seres humanos’ (ANDRADE, 1989:61). E falando sobre a
“técnica”, opta pela técnica do
“inacabado” e seu valor dinâmico, de deslocamento
que traz, no seu bojo, um princípio democratizante,
enquanto "as técnicas do acabado são eminentemente
dogmáticas, afirmativas sem discussão, credo
quia absurdum" (ANDRADE, 1989:61).
Idéia que em Borges se converterá em fundamento
básico de sua literatura, pois para o poeta portenho,
“no puede haber sino borradores. El concepto de texto
definitivo no corresponde sino a la religión o al cansancio”
(BORGES, 1999b:239).
A relação entre passado (tradição)
e presente, é um tema igualmente recorrente nas idéias
estéticas de Borges, estampadas em vários ensaios
e na sua própria criação ficcional. Borges
estabelece, como Mário, uma relação com
a tradição cruzada pela perversão, pela
traição para poder renová-la: “Hay
dos maneras de usar una tradición literaria –una
es repetirla servilmente; otra –la más importante–
es refutarla y renovarla” (BORGES, 1960).
Se Borges, como acuradamente anota Jorge Schwartz, “não
realizou em sua poesia (como os Andrades o fariam na literatura
brasileira) (...) [a recuperação do] dado local
numa linguagem de ruptura, próprio da vanguarda”
(SCHWARTZ, 1983:89), isso não desmerece ou diminui
o potencial inovador da poesia borgeana na década de
vinte. Em um projeto de escritura que buscava unir o local
com a vanguarda (o cosmopolita), Borges opta pelo universal
sem abandonar o local; sem estar atrelado à imitação
de um modelo, de uma tendência ou de uma escola específica.
Opta por todos os modelos, tendo como paradigma a biblioteca
universal.
Outro fator comum a ambos os poetas, é, como se sabe,
a simpatia que nutriam pelo Expressionismo.
(7) Mário é leitor assíduo da
revista de vanguarda expressionista alemã Der Sturm.
Por sua vez, Borges conheceu profundamente a poesia expressionista
alemã nos anos em que viveu em Zurique e Genebra, entre
1914 e 1918. Segundo Juan José Sebreli, no expressionismo
Borges “encontraba algunos de sus temas obsesivos, la
magia, los sueños, la filosofía oriental, la
ciudad” (SEBRELI, 1999:354). Ao falar do tempo em que
esteve na Suíça, Borges observa: “(...)
me interesé mucho en el expresionismo alemán,
que todavía considero muy superior a otras escuelas
contemporáneas como el imaginismo, el cubismo, el futurismo,
el surrealismo, etcétera. Años después,
en Madrid, intentaría algunas de las primeras y tal
vez únicas traducciones al español de algunos
poetas expresionistas” (BORGES, 1999c:45).
6. Como observa Jorge Schwartz, “sem
dúvida alguma, são Oswald e Girondo que melhor
captam, do ponto de vista da expressão poética,
o sentido do moderno. Oswald, na síntese cinematográfica
de seus fragmentos poéticos; Girondo, nos cortes metonímicos
e na representação seriada de um universo que
já está entregue à produção
em massa” (SCHWARTZ, 1983:65).
7. Mário escreve em defesa do Expressionismo
em “Questões de arte”, publicado no Diário
Nacional, São Paulo, 30 set. 1927. Borges não
só traduz poetas expressionistas como escreve uma série
de ensaios sobre o tema, cf. (BORGES, 1920a, 1920b e 1994:155-161).
Sobre o expressionismo em Borges e Mário, cf. Jorge
Schwartz (1990:81-97).
Mário e Borges trabalham, desse modo, numa perspectiva
que se poderia chamar de abertura crítica constante
de si próprios, mantendo-se dentro de uma tradição
moderna (e menos modernista) para, ao mesmo tempo, preservar
e redefinir antigas e novas perspectivas estéticas,
éticas e políticas, na busca por novos sentidos,
novas formas de interpretação. A importância
da tradição é um fator realmente fundamental
para os dois poetas. Ao contrário da tendência
da época (particularmente nas vanguardas) de se fazer
um corte radical (por vezes destrutivo) com o que passou,
a poética de ambos busca reatar a conexão entre
a extensa e rica cultura do passado e universal com o contexto
do presente, filtrado por um afinado critério seletivo
e crítico. Nesse campo, o da crítica à
modernidade, às vanguardas e à releitura de
um passado vivo e operante, Mário e Borges caminham,
lado a lado, por uma mesma “vereda”.
ARRIBA
|
..............................................................................................................................................................
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE,
Mário de, 1989, O Banquete. Prefácio de Jorge
Coli e Luiz C. da Silva Dantas, São Paulo: Duas Cidades.
ANDRADE, Mário de, 1987, Prefácio interessantíssimo.
In: Paulicéia desvairada. In: Poesias completas. Ed. crítica
de Diléa Zanotto Manfio, Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP.
ANDRADE, Mário de, 1980, A escrava que não
é Isaura. In: Obra imatura. 3ª ed., São
Paulo: Martins; Belo Horizonte: Itatiaia.
ANDRADE, Mário de, 1976, O turista aprendiz.
Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê
Porto Ancona Lopez, São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da
Cultura, Ciência e Tecnologia.
ANDRADE, Mário de, 1972, O movimento modernista.
In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins;
Brasília: INL.
ANTELO, Raúl, 2001, Borges/Brasil. In: SCHWARTZ,
Jorge (org.), Borges no Brasil. São Paulo: Editora
UNESP; Imprensa Oficial do Estado. (Texto publicado inicialmente
em VV.AA. Boletim Bibliográfico. Biblioteca Mário
de Andrade, Vol. 45, nº ¼. São Paulo, jan./dez.
1984, pp. 91-101.)
ANTELO, Raúl, 1994, A matéria dura: terra
roxa. In: Revista da biblioteca Mário de Andrade,
n? 52. São Paulo. (Republicado em ANTELO, Raúl,
2001, Transgressão & modernidade. Ponta Grossa:
Editora UEPG, pp. 69-76.)
ANTELO, Raúl, 1979a, Na ilha de Marapatá:
Mário de Andrade lê os hispano-americanos.
Prefácio de Alfredo Bosi, São Paulo: Hucitec/INL.
ANTELO, Raúl (org.), 1979b, El paulista de la calle
Florida. Buenos Aires: Botella al Mar.
ARTUNDO, Patricia, 2001, ‘Clara Argentina’:
Mário de Andrade e a nova geração argentina.
In: SCHWARTZ, Jorge (org.), Borges no Brasil. São Paulo:
Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado.
BORGES, Jorge Luis, 2000, Borges en El Hogar 1935-1958.
Buenos Aires: Emecé.
BORGES, Jorge Luis, 1999a, Obras, reseñas y traducciones
inéditas. Diario Crítica, 1933-1934. Buenos
Aires: Atlántida.
BORGES, Jorge Luis, 1999b, Las versiones homéricas.
In: Discusión. In: Obras completas, V. I. Barcelona: Emecé.
BORGES, Jorge Luis, 1999c, Autobiografía 1899-1970,
em colaboração com Norman Thomas di Giovanni.
Trad. de Marcial Souto e Norman Thomas di Giovanni, Buenos Aires:
El Ateneo. (Edição original em inglês, Autobiographical
Essay. The New Yorker, 1970.)
BORGES, Jorge Luis, 1994, Acerca del expresionismo.
In: Inquisiciones. Buenos Aires: Seix Barral. (A primeira edição
é de 1925.)
BORGES, Jorge Luis, 1955, Lugones, Herrera, Cartago. In:
Revista del Colegio de Estudios Superiores, n? 268.V. XLVI, ano
XXIV, março. Buenos Aires.
BORGES, Jorge Luis, 1960, La poesía gauchesca.
In: Conferencia en la Sociedad Científica Argentina, 17 de
maio. Buenos Aires: Centro de Estudos Brasileiros.
BORGES, Jorge Luis, 1920a, Lírica expresionista:
síntesis. In: Grecia, a. 3, nº 47. Madri, ag.
BORGES, Jorge Luis, 1920b, Lírica expresionista:
Wilhelm Klemm. In: Grecia, a. 3, nº 50. Madri, nov.
BOSI, Alfredo, 2001, Sobre alguns modos de ler a poesia:
memórias e reflexões. In: BOSI, Alfredo (org.).
Leitura de poesia. São Paulo: Ática.
BRADBURY, Malcolm e MACFARLANE, James (orgs.), 1980, Modernismo:
guia geral 1890-1930. Trad. de Denise Bottmann, São
Paulo: Companhia das Letras.
CANDIDO, Antonio, 1965, Literatura e sociedade. São
Paulo: Nacional.
CAMPOS, Haroldo de, 1991, El secuestro del barroco en la
formación de la literatura brasileña. El
caso de Gregorio de Mattos. In: Cuadernos Hispanoamericanos, nº
490, abril. Madri.
GRAÇA, Antônio Paula, 1996, As afinidades ilusórias.
Mário de Andrade foi pioneiro na leitura de Borges no Brasil.
In: Mais!, Folha de São Paulo. São Paulo, 19 de maio.
LAFETÁ, João Luiz, 2000, 1930: a crítica
e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.
(A primeira edição é de 1974.)
LOPEZ, Telê Porto Ancona e GREMBECKI, Maria Helena,
1965, Leituras hispano-americanas de Mário de Andrade.
In: O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 de fev.
PASTORMERLO, Sergio, 1997, Borges crítico. In:
Variaciones Borges, nº 3. University Aarhus, Dinamarca.
PIGLIA, Ricardo, 2000, Borges como crítico.
In: Crítica y ficción. Madri: Seix Barral.
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir, 1964, Borges como crítico
literario. In: La Palabra y el Hombre, nº 31, II época.
Xalapa (México), jul.-set.
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir, 1987, Mário de Andrade/Borges.
Um Diálogo dos Anos 20. Tradução, a partir
do manuscrito, de Maria Augusta da Costa Vieira Helene, São
Paulo: Perspectiva.
SCHWARTZ, Jorge (org.), 2001, Borges no Brasil.
São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado.
SCHWARTZ, Jorge, 1990, O expressionismo pela crítica
de Mário de Andrade, Mariátegui e Borges. In:
MORAES BELLUZZO, Ana Maria de (org.). Modernidade: vanguardas artísticas
na América Latina. São Paulo: Memorial/UNESP.
SCHWARTZ, Jorge, 1983, Vanguarda e cosmopolitismo na década
de 20. São Paulo: Companhia das Letras.
SCHWARTZ, Jorge, 1982, A cidade como tema das vanguardas
poéticas: Pessoa, Borges, Girondo, os dois Andrades.
In: Anais do Curso “A Semana de Arte Moderna de 22, sessenta
anos depois”. São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura.
SEBRELI, Juan José, 1999, Borges: el nihilismo débil.
In: VV. AA. antiborges. Compilação e comentários
de Martín Lafforgue. Buenos Aires: Javier Vergara Editor.
SOUZA, Eneida Maria de, 1993, Preguiça e saber.
In: Letras, nº 7. Santa Maria.
ARRIBA |
 |
|
|