Revista EXAME (Edição 758) |
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O tema da espiritualidade está tomando conta do mundo corporativo. A questão é: por quê? E como ele pode transformar as empresas? |
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por David Cohen |
O mundo corporativo
sempre foi conhecido -- fosse isso certo ou errado -- como o reino da racionalidade,
da frieza, dos números e resultados. Desde meados da década passada, porém, mais
e mais executivos andam falando de coisas como "alma da empresa", "missão
social", "ecologia dos negócios". É uma mudança e tanto. Ninguém
desdenha, é claro, a mão invisível do mercado. Mas muita gente acha que mais forte
que ela deve ser a mão de Deus. Veja alguns exemplos:
A
primeira coisa que o empresário catarinense Albertino Colombo, o Beto Colombo,
faz ao chegar à sua fábrica é benzê-la, percorrendo-a de maneira que o caminho
forme uma cruz. Esse ritual é repetido todos os dias, por volta das 9 horas.
Não à toa, sua empresa chama-se Anjo. Em 1986, mesmo com pouquíssimo dinheiro
para iniciar seu negócio, ele comprou a marca, que já estava registrada. A
Anjo Química é hoje uma fabricante de solventes e revestimentos químicos com
sede em Criciúma, no sul de Santa Catarina. Colombo teve a idéia de fundá-la
quando era balconista de uma loja de tintas na cidade. Desde o início, a inspiração
foi Cristo. "Sou técnico em contabilidade, não entendia nada de administração",
diz. "Então fui buscar os exemplos na vida de Jesus." (Hoje, Colombo
tem MBA da Fundação Getúlio Vargas e curso de administração da Escola Superior
de Guerra, mas seu modelo de gestão continua sendo o das pastorais da Igreja
Católica. Sua empresa não tem diretores, mas coordenadores, um dos dois níveis
hierárquicos existentes.)
Ao
entrar na fábrica, já dá para sentir algo de diferente: ouve-se música sacra
ou clássica nos corredores. Mas essa não é a única peculiaridade da Anjo.
Eis algumas outras:
Cerca
de 40% dos 170 funcionários têm nível superior -- a maioria formou-se trabalhando,
com metade do curso pago pela empresa.
Antes
de reuniões importantes, coordenadores e gerentes repetem a Oração ao Espírito
Santo, pedindo inspiração e entendimento. Também há correntes de oração quando
algum empregado tem um familiar doente.
A
filosofia da empresa é de fraternidade (um exemplo foi dado no ano passado,
quando colegas fizeram um mutirão para construir a casa de uma funcionária).
A
orientadora profissional Stela Firmino de Oliveira é ex-professora de teologia.
Alguns
dos empregados foram contratados em bares, entre alcoólatras e drogados, para
ser recuperados com o trabalho. "Em 15 anos, já recuperamos mais de dez",
afirma Colombo.
"Assumi
a empresa como um apostolado", diz Colombo. "É uma maneira de construir
o reino de Deus." O empresário leva a sério a evangelização. Ele costuma
dar palestras sobre sua gestão na Anjo, cobrando 4 mil reais, que deposita
num fundo para pagar a universidade de pessoas carentes. Algumas das práticas
cristãs adotadas por Colombo são de causar inveja: como Jesus, que passou
40 dias no deserto para encontrar a si mesmo, costuma tirar 40 dias de férias
por ano. Outro hábito que cultiva religiosamente é tomar um cálice de vinho
na hora do almoço. Mas, em geral, seguir os preceitos religiosos não é tarefa
tão fácil. Uma das frases de Colombo, que se pode ver em cartazes espalhados
pela empresa, é: "Aqui fabricamos bons produtos, sem explorar as pessoas.
Com lucro, se possível. Com prejuízo, se necessário. Mas sempre bons produtos,
sem explorar as pessoas".
Não
tem sido necessário produzir com prejuízo. O faturamento da Anjo passou de
17,7 milhões de reais, em 1998, para 40,8 milhões, em 2000, e ultrapassou
os 75 milhões de reais no ano passado. "É possível ser bem-sucedido nos
negócios com espírito cristão", diz Colombo, que se diz adepto da Teologia
da Libertação. "Praticando uma gestão cristã, tenho pessoas mais comprometidas
e posso almejar ser a maior empresa de tintas do país."
No
Laboratório Canonne, fabricante das pastilhas Valda, em Jacarepaguá, na zona
oeste do Rio de Janeiro, costuma circular um sujeito alto, de pele bronzeada,
sempre vestido de branco, com um brinco na orelha e o cabelo grisalho preso
num rabo-de-cavalo. É o presidente da empresa no Brasil, o francês Hugues
Ferté, que se considera um carioca da gema. Há 20 anos, quando tinha 40, seu
estilo de vida era frenético como o de um típico executivo estressado. Mas
Ferté não estava feliz e começou a buscar respostas para suas inquietudes
no budismo. Foi a partir daí, segundo ele, que tudo mudou. A primeira decisão
foi construir uma sede nova para o Canonne. "Precisava de um lugar onde
as pessoas se sentissem bem", diz. Na nova sede, há uma fonte de água
logo depois do portão e o prédio é coberto por uma densa hera que atrai bandos
de passarinhos. A iluminação é toda natural e o teto do depósito de cargas
foi transformado em um jardim suspenso. Nesse ambiente, Ferté costuma reunir-se
com os gerentes antes do almoço para meditar durante 20 minutos. Ele acredita
que o clima de tranqüilidade que criou na empresa tenha ajudado a melhorar
o desempenho. Em 1985, o faturamento do Canonne era de 2 milhões de dólares
no país. Hoje, está na casa dos 20 milhões. "É o clima de harmonia entre
as pessoas, que tem a ver com a espiritualidade, que faz os negócios andar",
afirma.
Todos
os dias, às 13h30, dez funcionários judeus se reúnem na sala de Clement Aboulafia,
sócio-fundador da Ezconet, uma empresa que vende telefones celulares e aparelhos
eletroeletrônicos pela internet, sediada em São Paulo. Dez é o número mínimo
de judeus para uma reza em grupo, segundo a tradição. Aboulafia, nascido no
Egito e trazido pelos pais ao Brasil quando tinha 2 anos de idade, é físico
formado pela Sorbonne, em Paris. Nunca tinha sido um judeu praticante, mas
há 12 anos, quando seu pai morreu, teve de fazer a reza em homenagem a ele
e isso o fez se aproximar da religião. Passou a acreditar que a Torá (o Velho
Testamento) tinha resposta para tudo. "O homem tem de vir ao mundo com
um manual. A Torá é o nosso manual", diz.
Em
1999, Aboulafia era dono de uma revendedora tradicional de celulares, a Ezcony,
e enfrentava problemas pela desvalorização do real. Angustiado, ele acessou
o site de um rabino que propunha um exercício: considerar uma situação ruim
e imaginar que ela poderia ficar 100 vezes pior. "Foi a partir desse
exercício que concebi a nova empresa", diz. "Vi que a situação que
me fazia refém -- a entrada da internet no negócio de distribuição de celulares
-- poderia ser uma grande oportunidade."
Foi
mesmo. A Ezconet faturou 6 milhões de reais em 2001, e a previsão dos donos
é que as vendas superem os 15 milhões neste ano. Aboulafia crê que a mão de
Deus esteja por trás de seu sucesso. "Faço tudo que está ao meu alcance,
mas, se determinado contrato comercial não for assinado, atribuo à vontade
de Deus", afirma. "Ele não quis, e você pode ter certeza de que
era o melhor a ser feito." O melhor nem sempre é o melhor para a empresa.
"O mais importante não é o negócio, e sim saber que todo trabalho que
você faz é para elevar sua espiritualidade." Ele afirma que sua maior
missão dentro da Ezconet, hoje, é convencer o sócio a ser um judeu praticante.
O
empresário paulista Ali Hussein El Zoghbi considera-se em falta com Deus.
"Um dos cinco pilares do islamismo é a oração, que deve ser feita cinco
vezes ao dia", diz. "Eu não tenho conseguido respeitar esse pilar."
El Zoghbi é dono do colégio 24 de Março, em São Paulo. Não é um colégio islâmico,
e ele não admite proselitismo nas salas de aula. Mas sua religião lhe dá força
para a vida profissional. A começar pelo trabalho que escolheu. "De acordo
com o Corão, a primeira ordem de Alá ao homem foi 'leia!' Maomé era analfabeto
e, por milagre, começou a ler." Outro predicado religioso é um rígido
código de ética. Num mercado em que as margens de lucro passam facilmente
dos 50%, El Zoghbi diz mantê-las perto dos 20%. Há também a caridade, obrigatória,
que consome 2,5% do lucro.
No
campo dos ensinamentos, ele cita que o islamismo prega o respeito aos outros.
"Aplico isso ao trabalho: ouço muito os funcionários." Mais característica
parece ser a disciplina. El Zoghbi faz jejum no mês sagrado de ramadã desde
os 9 anos (nesse mês do calendário islâmico, os fiéis só podem fazer uma refeição
por dia, à noite). "Você sabe o que significa para uma criança aprender
a resistir à sede? Aprender o que é passar fome? Acho que o jejum é um ótimo
mecanismo de formação do caráter. Aprendi a ter paciência, disciplina, concentração
e perseverança."
Os
quatro casos relatados acima são exemplos de como empresários e executivos
brasileiros vêm incorporando a religião e, de forma mais abrangente, a espiritualidade
ao mundo do trabalho. Esses casos não são, é óbvio, a regra do mundo corporativo.
Mas são cada vez menos uma exceção. Uma sondagem feita pelo Portal EXAME da
internet teve 589 respostas à pergunta "Vale a pena misturar Deus e negócios?"
A maioria (48%) disse que sim: 31% acham que a fé ajuda os negócios e 17%
acreditam que isso pode aumentar a eficiência no trabalho; outros 16% responderam
que a religiosidade pode melhorar o ambiente, mas constrange alguns funcionários;
pelo lado do não, 33% disseram que a fé deve ser exercida de modo privado
e 3% que a religião tira o foco da empresa e atrapalha os negócios.
"Gradativamente,
pessoas-chave nas empresas estão incorporando o interesse na espiritualidade",
diz Ricardo Young, presidente do Instituto de Idiomas Yázigi e presidente
do conselho deliberativo do Instituto Ethos, uma organização que prega a ética
no mundo corporativo. Recentemente, o Ethos promoveu em São Paulo um café
da manhã com Mohini Pundjab, representante na ONU da organização indiana Brahma
Kumaris, que difunde espiritualidade e ética. "Pelo horário e pelo tema,
esperávamos 80 pessoas, no máximo. Vieram 270", afirma Young.
Um
dos sintomas mais claros do aumento da busca por espiritualidade nas empresas
é o mercado de palestras. Desde o começo dos anos 90, vem crescendo a oferta
de especialistas nesse nicho. Estão aí incluídas desde as mensagens de inspiração
abertamente religiosa, como os ensinamentos de Cristo aplicados à gestão,
até o sucesso alcançado por gurus que pregam os hábitos das pessoas bem-sucedidas,
a meditação como forma de combater o estresse etc. "De uns cinco anos
para cá é que eu entendi que existe um mercado ávido por palestras de espiritualidade",
afirma o rabino carioca Nilton Bonder. Desde que escreveu A Cabala do Dinheiro,
em 1991, ele tem sido chamado para falar para públicos corporativos. Sem fazer
nenhum esforço específico para atingir o mundo das empresas, Bonder tem visto
a procura por suas palestras aumentar. Ele costuma fazer 15 por ano, em média.
No ano passado, teve de começar a recusar convites.
A
demanda por temas espirituais nas empresas reflete uma tendência mais geral.
No ano 2000, foram vendidos no país 46 milhões de livros sobre religião e
espiritualidade, quase 20 milhões a mais que em 1990. O total de títulos do
mercado brasileiro cresceu 63% na década, mas o número de títulos religiosos
e espirituais aumentou o dobro disso, 120%, pulando de 3,4 mil títulos, em
1992, para 7,5 mil, em 2000. Mais do que brasileiro, a espiritualização das
empresas é um fenômeno mundial. "Foi na metade da década de 90 que a
espiritualidade começou a ser levada a sério no mundo do trabalho", diz
Laura Nash, professora de ética na Escola de Negócios da Universidade Harvard,
autora do recém-lançado livro Church on Sunday, Work on Monday (Igreja no
domingo, trabalho na segunda), da editora Jossey-Bass. Laura aponta três motivos
para a entrada da espiritualidade nas empresas. Em primeiro lugar, o próprio
progresso científico, em várias frentes, rompeu com a idéia de controle e
mecanicismo. "A teoria do caos, a física quântica, a ênfase em vários
tipos de inteligência, tudo isso passou a legitimar uma visão mais integrada
da realidade", afirma Laura.
Em
segundo lugar, ocorreu uma espécie de reação natural aos exageros da década
de 80. "O que se viu no mundo corporativo dos 80 foi uma ambição desmedida,
escândalos financeiros e fracassos econômicos. A reação foi um movimento pela
ética, pelos valores humanos", afirma. Finalmente, Laura aponta o processo
de autonomia dos empregados. Quando começam a funcionar mais como seres humanos
do que como máquinas, as pessoas passam a trazer para o trabalho a sua vida
particular. E isso inclui a espiritualidade. Não é que a espiritualidade tenha
invadido o mundo corporativo. "Ela sempre esteve lá, abafada. O que está
acontecendo é que as empresas estão deixando de reprimi-la", diz ela.
Isso
não quer dizer que não haja resistências. "Sou um homem religioso, acredito
na troca de fluidos entre este mundo e o outro", diz Francisco Gracioso,
presidente da Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo. "Mas,
se eu tentasse catequizar meus principais executivos, eles achariam que estava
na hora de eu me aposentar." Para Gracioso, o que explica o novo discurso
da espiritualidade é a quebra do contrato social das empresas com seus funcionários.
Até a década de 80, havia um acordo tácito de que os empregados se entregariam
à corporação e em troca ela cuidaria deles a vida inteira. "As empresas
romperam esse contrato, e como conseqüência perderam a lealdade dos seus executivos",
diz Gracioso. "Essa onda de espiritualidade e ação social é, consciente
ou inconscientemente, uma tentativa das empresas de voltar a criar laços de
identidade com os executivos."
Funciona?
Uma pesquisa feita pela consultora Betania Tanure de Barros, da Fundação Dom
Cabral, de Belo Horizonte, indica que deve funcionar. Foram entrevistados
626 executivos brasileiros, de presidentes a gerentes de empresas. Betania
identificou como uma grande fonte de estresse o que chamou de "desajuste
de orgulho", que está relacionado à divergência entre os valores da empresa
e os valores pessoais. As companhias que conseguirem reduzir essa divergência
de valores -- e aí estão embutidas a espiritualidade e a preocupação social
-- terão, em tese, funcionários mais produtivos. É o que dizem, também, o
professor Ian Mitroff, da University of Southern California, e a consultora
Elizabeth Denton no livro A Spiritual Audit of Corporate America (Uma auditoria
espiritual da corporação nos Estados Unidos), para o qual entrevistaram mais
de 200 líderes de organizações americanas. Segundo eles, os funcionários que
consideram suas empresas espiritualizadas têm menos receios e se dedicam mais
ao trabalho, com melhores resultados.
Betania
adverte, porém, que não basta falar de espiritualidade. "Uma tendência
verificada nas entrevistas é que essa fonte de estresse pela falta de convergência
de valores com a empresa é hoje maior do que no passado, justamente porque
o discurso da espiritualidade está mais valorizado", diz. "Isso
faz que a diferença entre o que se fala e o que se faz seja mais perceptível."
É algo parecido com o discurso sobre qualidade de vida, hoje generalizado
nas empresas, embora, de acordo com a pesquisa de Betania, os executivos estejam
trabalhando em média 11 horas por dia, mais de 60% reportem que trabalham
no fim de semana com freqüência e 55,2% digam que as tecnologias de informação
aumentaram a pressão no trabalho. Não é de estranhar que, passando tanto tempo
em função de seus papéis profissionais, as pessoas queiram trazer para o trabalho
sua espiritualidade e sua religião (junto com esportes, lazer, vida afetiva...).
"Não
há dúvida de que o discurso da espiritualidade é maior que a prática",
diz o monsenhor Dario Bevilacqua, vigário dos Construtores da Sociedade --
o modo como a Arquidiocese de São Paulo se refere às pessoas influentes, entre
elas, é claro, empresários. "Continuamos a falar de paz, mas na prática
vivemos num mundo de guerras", diz. Bevilacqua dá apoio espiritual à
Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas, uma entidade que surgiu em
1961 e hoje conta com 1,5 mil associados ativos e uma rede de mais de 4,5
mil pessoas. O que a ADCE faz é promover a prática de valores cristãos dentro
das empresas. Isso envolve um forte conceito ético, ação social, dignificação
do ser humano. São conceitos de aceitação unânime, mas de aplicação muito
difícil. "A fé exige uma forma de vida que muitas vezes não é fácil",
diz o padre Bevilacqua. "As igrejas em geral agem através da transmissão
de valores, esperando que esses valores sejam postos em prática."
Afinal,
vale a pena trazer para as companhias a espiritualidade -- e a idéia de Deus,
que a ela tanto se mistura? No livro Empresa com Alma, da editora Makron,
o consultor de empresas e conferencista Francisco Gomes de Matos diz que,
de 520 empresários consultados, apenas 5% afirmaram que contratariam Jesus
Cristo. As dificuldades vividas por inúmeras organizações que seguem preceitos
religiosos parecem comprovar que Deus, se existe, não está lá muito preocupado
com a saúde financeira das corporações. Um bom exemplo é a americana Service
Master, que vende produtos e serviços para cuidados com a casa. A companhia
fatura 6 bilhões de dólares por ano, mas é mais conhecida pela religiosidade,
elogiada por vários gurus da administração, como Peter Drucker, para ficar
apenas num (quase todo-poderoso) exemplo. Todos os seus 75 mil funcionários
possuem ações da companhia, são ouvidos e ninguém tem salário superior a 12
vezes o piso da empresa. O problema é: os lucros vêm caindo, e a unidade de
controle de pestes de jardim da Service Master admitiu ter poluído um rio
na Pensilvânia. Ou seja, no mundo real, nem sempre conseguimos controlar todas
as nossas ações e nem sempre boas ações recebem recompensa.
Muita
gente vai ainda mais longe. Diz que religião e capitalismo são incompatíveis.
Citam a visão majoritária dos religiosos como estatizante, controladora, constrangida
com o lucro. "A religião não pode ser a base da liberdade e do capitalismo
por causa de sua inerente natureza autoritária", diz o americano Andrew
Bernstein, do Instituto Ayn Rand, que promove a filosofia da objetividade.
"Ela exige fé e subordinação dos interesses do indivíduo aos ditados
de algum poder superior. No capitalismo, ao contrário, o indivíduo é supremo."
Um interessante exemplo de conflito ideológico é o caso das demissões. Os
defensores da consciência social costumam elogiar empresas que fazem um esforço
para preservar ao máximo seus funcionários, inclusive com reduções coletivas
de salários, para manter o maior número de pessoas empregadas durante uma
crise. O economista americano Lester Thurow gosta de citar que, por mais dolorosas
que tenham sido as demissões da IBM no começo dos anos 90, foram elas que
permitiram o nascimento de um sem-número de empresas de tecnologia, incluindo
nomes como Microsoft, Apple e Sun. Elas se beneficiaram de uma mão-de-obra
experiente que de outra forma não estaria disponível. O que, no fim das contas,
ajudou a gerar um enorme ciclo de riqueza nos Estados Unidos.
O
consultor político Ney Lima Figueiredo, da Unicamp, também investe contra
a religiosidade, citando um estudo do economista americano Robert Barro, que
indica uma relação inversa, nos países da América Latina, entre desenvolvimento
econômico e freqüência à missa. Segundo Barro, os países com menor porcentagem
da população que assiste à missa toda semana são os que têm a maior renda
per capita. (O Brasil está numa posição intermediária no estudo.) Também entre
os religiosos há quem se oponha à mistura entre fé e empresas. Quando a reportagem
de EXAME tentou entrevistar alguém sobre os grupos de oração da Inepar, um
dos maiores conglomerados empresariais do Paraná, os próprios funcionários
fizeram pressão para que a atividade não fosse divulgada, porque não queriam
que sua fé fosse usada, ainda que indiretamente, como uma espécie de marketing
da companhia.
Em
contrapartida, há poderosos testemunhos de como a corporação já não pode viver
sem espiritualidade nos dias de hoje. "As empresas não gostam de ser
coisas que vêm e que passam", diz o consultor de marketing industrial
José Carlos Teixeira Moreira, de São Paulo. Isso, por si só, já lhes dá uma
dimensão espiritual. "Para trabalhar por uma causa, a única forma é com
alguma crença", afirma Teixeira Moreira. "A emoção tem a ver com
o ritual. E é a emoção que dá valor a um produto, à companhia. Feliz a empresa
que celebra." Em tom um pouco menos poético, Richard LeVitt, diretor
de qualidade da Hewlett-Packard, disse em 1997, num encontro da empresa na
Califórnia (relatado por Claus Otto Scharmer, da Sociedade para Aprendizado
Organizacional, SOL): "No estágio inicial, focávamos a qualidade no desempenho
dos produtos. Embora isso seja importante, percebemos que poderíamos ter um
desempenho melhor se olhássemos o que vem antes, os processos responsáveis
por esses resultados concretos. Esse foi o cerne do movimento de qualidade
total dos anos 80. Mas, uma vez que você e todos os seus concorrentes têm
os processos corretos, a questão é saber qual o próximo passo. Para nós, o
novo foco é como os gerentes podem melhorar a qualidade do seu pensamento
-- especialmente o seu pensamento profundo sobre clientes e as experiências
que eles devem ter conosco". Pensamento profundo, você já deve ter percebido,
é um eufemismo corporativo para espiritualidade. Diga-se de passagem, não
é necessário ser religioso -- nem mesmo crer em Deus -- para ter uma espiritualidade
desenvolvida. Mas é nesse campo que a religião opera.
Para
Laura Nash, de Harvard, há três instâncias de espiritualidade nas empresas.
A primeira é o que ela chama de nível espacial: os ritos, o proselitismo.
"Levar esse aspecto da religião para o mundo corporativo é ir um pouco
longe demais", diz Laura. A segunda instância é a "religião catalítica":
a ética, as práticas de meditação, a oração. É o aprendizado das atitudes
religiosas, dos objetivos da espiritualidade, que "podem levar à transformação
positiva". É nesse nível, porém, que proliferam os gurus de discursos
tão bonitos quanto vazios, o que de certa forma rebaixa a espiritualidade
ao nível de mais um modismo do mercado de soluções de gestão. (E, conforme
indica a pesquisa de Betania Tanure, já citada, pode elevar o estresse, ao
invés de diminuí-lo.) Finalmente, Laura cita o "nível da fundação",
ou seja, a tentativa de compreender a visão de mundo e a sabedoria de religiões
milenares.
O
rabino Nilton Bonder também enxerga um potencial uso da sabedoria religiosa
pelas empresas. "As religiões são formas de conhecimento da natureza
humana, um senso de realidade burilado através dos séculos." Segundo
Bonder, há pelo menos três bons motivos para que as companhias se interessem
pela espiritualidade. O primeiro é fortalecer-se com pedaços dessa sabedoria.
O segundo é um motivo estratégico. A espiritualidade, como a ecologia, faz
parte dos valores da sociedade. Respeitá-la é um investimento em imagem. O
terceiro motivo é a corporação em si, a preocupação com seus funcionários.
"Empresas inteligentes dão ao trabalho uma dimensão emocional (seus funcionários
gostam do que fazem) e existencial (eles não acham que estão perdendo tempo
na companhia)."
É
claro que cada empresa, e cada profissional, aplica a espiritualidade ao trabalho
de modo particular. Veja alguns exemplos:
"Nossa
missão é colaborar com a felicidade do maior número possível de pessoas. Tirei
isso de uma oração da Seicho-no-Ie", diz Rogério Rubini, sócio da empresa
de cosméticos Contém 1g, de São João da Boa Vista, município do interior de
São Paulo. A Seicho-no-Ie, nascida no Japão, tem um caráter ecumênico. Sua
pregação é de atitude proativa, pensamento positivo, gratidão e harmonia.
A própria estratégia da Contém 1g tem a ver com a harmonia. "Não queremos
destruir concorrente nenhum", afirma Rubini. "Por isso apostamos
em nichos não atendidos pelo mercado, como o público de 15 a 25 anos."
Seguir
a religião impõe algumas dificuldades. Justo nesse mercado tão ligado à beleza
e à sensualidade, a empresa se recusa a fazer propaganda que explore a sexualidade
ou a rebeldia do jovem. "Nossa visão é de um jovem alegre, saudável,
que quer progredir na vida", diz Rubini. Mas a postura religiosa também
traz vantagens: "Nós pregamos a alegria de servir. Se você for à nossa
fábrica, verá que os funcionários são espontâneos e naturais, não dão aquele
tratamento decorado, automático, típico dos 0800. Isso faz diferença".
Deve fazer. Em um ano e três meses, a Contém 1g, que fatura 60 milhões de
reais por ano, abriu mais de 200 pontos-de-venda no país por meio de franquias.
"A que eu atribuo isso? A uma equipe extremamente comprometida... orientada
por Deus."
Na
avenida em frente à ATF Estruturas Metálicas, na cidade de Timóteo, no Vale
do Aço mineiro, há sete mangueiras. Elas foram plantadas em 1997, quando a
pequena empresa, que fatura 1 milhão de reais por ano, escreveu seu plano
estratégico. "Quando elas chegarem à idade adulta, com cerca de 5 anos,
nossos objetivos deverão ter sido alcançados", diz Anízio Tavares Filho,
presidente e dono da ATF. O código de ética da empresa também tem sete itens,
assim como o programa de desenvolvimento de pessoal e a política ambiental.
"Sete é o número de Cristo, porque Deus descansou no sétimo dia",
afirma Tavares. Ele pertence à União do Vegetal, uma seita religiosa cercada
de rituais, semelhante ao Santo Daime. Tavares garante não fazer pregação
na empresa, mas todos os 101 funcionários se reúnem, das 7h12 às 7h30, para
um "momento de reflexão". Além dos rituais, a religiosidade de Anízio
também se reflete em ações beneficentes, como a política de contratação de
ex-dependentes químicos, as doações a um projeto de ensino de judô a crianças
carentes e um programa de aulas de circo também para crianças carentes.
O
carioca Manoel Amorim, diretor-geral da Telefônica em São Paulo, é mórmon
e passou dois anos como missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias. Diz ter aprendido a lidar com a diversidade, a ouvir os outros
e a sair do escritório para descobrir a realidade dos clientes. "Eu não
seria o executivo que sou hoje se não tivesse a formação religiosa",
afirma Amorim. É o caso também de Isabel Pedrosa, diretora da área de análise
do BankBoston Asset Management. "Meu dia-a-dia é praticar o budismo a
toda hora", afirma. Isso a ajuda a se concentrar, com técnicas que aprendeu
em retiros espirituais. "O budismo ensina que o que importa é o momento.
É ter foco." Ao mesmo tempo, ela diz conseguir, num mercado tipicamente
nervoso pelos constantes altos e baixos, aceitar os ciclos e se livrar da
angústia.
A
Superbom é uma empresa adventista, como indicam todas as embalagens de seus
produtos (mel, sucos, congelados de carne de soja...). "A vantagem que
nós temos é uma imagem de confiabilidade no mercado", diz José Manoel
Afonso, diretor comercial da companhia. "Os contratos de supermercados,
que costumam ter condições draconianas, em geral são feitos conosco na base
da palavra." Na Superbom, ninguém ganha menos do que 20% do salário do
presidente. Isso quer dizer que os executivos ganham menos do que o mercado
oferece. E como a empresa mantém seus talentos? "Trabalho para a Igreja,
isso me dá satisfação", diz Itamar de Paula Marques, o presidente da
Superbom.
"Sou
católico e, quando assumi a empresa, em 1991, declarei que a administraria
de acordo com os princípios cristãos", diz Elcio Anibal de Lucca, presidente
da Serasa, empresa de gerenciamento de dados bancários. "O que significa
isso: não aceito assédio sexual, corrupção nem comportamentos que possam prejudicar
o próximo." A Serasa faz missa de ação de graças todo fim de ano e costuma
convidar um padre para rezar na abertura de seu encontro nacional de gerentes.
"Pedimos a Deus que nos ajude a realizar nossos planos. Não temos vergonha
de mostrar nossa fé."
Dos 120 funcionários da Construtora Hábil Engenharia, de Recife, cerca de um terço conseguiu casa própria sem recorrer a nenhum agente financeiro da habitação. Um dos quatro sócios da construtora, Félix Cantalício Sampaio de Sá, é que empresta o dinheiro, sem juros, com correção atrelada ao aumento de salário. Cantalício ainda dá orientações sobre a obra e um arquiteto faz o projeto voluntariamente. "Não realizo nada de extraordinário", diz. "Apenas sigo a orientação da Bíblia, de ser solidário e fiel."
Senso ético, responsabilidade social, busca de harmonia, rituais de congraçamento, confiança inabalável. Talvez nenhuma dessas características esteja necessariamente ligada à espiritualidade. Talvez as vantagens competitivas de empresas espiritualizadas não possam nunca ser medidas. É da própria natureza do mundo espiritual não se adequar a medições. No fim das contas, talvez os bons resultados de levar Deus e a espiritualidade ao mundo do trabalho sejam, bem, uma questão de fé. Mas, como diz o rabino Bonder, "a fé e a espiritualidade lidam com estruturas não comprováveis, não científicas, de obscuridade -- mas que são o mundo real. O que eu digo às pessoas é para não descartar o lado da penumbra. A maior contribuição do mundo espiritual é ensinar as pessoas a viver num mundo sem respostas". Nessa era cheia de incertezas, não é pouca coisa.
Colaboraram
Ana Luiza Herzog, Cristiane Correa, Consuelo Dieguez, Fábio Peixoto, Lidia
Rebouças, Marcos Coronato, Suzana Naiditch, Suzana Veríssimo
CONVERSANDO :::: INTRODUÇÃO :::: MUNDO :::: BRASIL :::: LIBERTAÇÃO ::::: CARISMÁTICOS
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