»  »  »  O Labirinto de Ricardo Reis   
Apoio à leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago     
»  »  O Ano da Morte de Ricardo Reis



2




Da Rua do Comércio  » , onde está, ao Terreiro do Paço  »  distam poucos metros, apeteceria escrever, É um passo não fosse a ambiguidade da homofonia, mas Ricardo Reis não se aventurará à travessia da praça  » , fica a olhar de longe, sob o resguardo das arcadas, o rio pardo e encrespado, a maré está cheia, quando as ondas se levantam ao largo parece que vêm alagar o terreiro, submergi-lo  » 


Assim se alheia do mundo um homem, assim se oferece ao desfrute de quem passa e diz, Ó senhor, olhe que aí debaixo não lhe chove, mas este riso é franco, sem maldade, e Ricardo Reis sorri de se ter distraído, sem saber porquê murmura os dois versos de João de Deus  » , célebres na infância das escolas, Debaixo daquela arcada passsava-se a noite bem  » 


Afasta-se Ricardo Reis em direcção à Rua do Crucifixo  » , atura a insistência de um cauteleiro  »  que lhe quer vender um décimo para a próxima extracção da lotaria, É o mil trezentos e quarenta e nove  » 


Entra na Rua Garrett  »  »  » , sobe ao Chiado  »  » , estão quatro moços de fretes encostados ao plinto da estátua  » , nem ligam à pouca chuva, é a ilha dos galegos, e adiante deixou de chover mesmo, chovia, já não chove, há uma claridade branca por trás de Luís de Camões »  »  » 


Ricardo Reis vai aos jornais, ontem tomou nota das direcções  »   »   »   » 


Vai Ricardo Reis aos jornais, vai aonde sempre terá de ir quem das coisas do mundo passado quiser saber, aqui no Bairro Alto  »  »  » 


Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu  »  »  » , espírito admirável que cultivava não só a poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as letras em Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal   » 


outro diz doutra maneira o mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacional, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís  » , no sábado à noite  » 


Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal com os seus olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito anos de idade, mais um que a idade de Fernando Pessoa quando lhe fecharam os olhos  » , esses sim, mortos


aqui está outro jornal que pôs a notícia na página certa, a da necrologia, e extensamente identifica o falecido, Realizou-se ontem o funeral do senhor doutor Fernando António Nogueira Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, quarenta e sete, notem bem, natural de Lisboa, formado em Letras pela Universidade de Inglaterra, escritor e poeta muito conhecido no meio literário, sobre o ataúde foram depostos ramos de flores naturais  » 


encostado a um candeeiro no alto da Calçada do Combro  » , lê a oração fúnebre  » , não do genovês, que a não teve, salvo se lhe fizeram as vezes os doestos da populaça, mas de Fernando Pessoa, poeta, de crimes de morte inocente, Duas palavras sobre o seu trânsito mortal, para ele chegam duas palavras, ou nenhuma, preferível fora o silêncio, o silêncio que já envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito, com ele está bem o que está perto de Deus, mas também, não deviam, nem podiam os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir as linhas definitivas da Eternidade, sem enunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida [...] Vá lá, vá lá, felizmente que ainda se encontram excepções nas regularidades da vida, desde o Hamlet que nós andávamos a dizer, O resto é silêncio  » , afinal, do resto quem se encarrega é o génio, e se este, também outro qualquer  » .


qual destas terá sido a dele, se no leito cristão do Hospital de S. Luís lhe foi permitido escolher  »  »


Quando Ricardo Reis chegou ao cemitério  » , estava a sineta do portão tocando, badalava aos ares um som de bronze rachado, como de quinta rústica, na dormência da besta


O funcionário  »  compreende que está perante pessoa ilustrada e de distinção, explica solícito, dá a rua, o número  »


Passou Ricardo Reis adiante do jazigo  »  que procurava, nenhuma voz o chamou, Pst, é aqui, e ainda há quem insista em afirmar que os mortos falam, ai deles se não tiverem uma matrícula, um nome na pedra, um número como as portas dos vivos  » , só para que saibamos encontrá-los valeu o trabalho e nos ensinarem a ler [...] São títulos de propriedade e ocupação, jazigo de D. Dionísia de Seabra Pessoa  » , inscritos na frontaria, sob os beirais avançados desta guarita onde a sentinela, romântica sugestão, está dormindo, em baixo, à altura do gonzo inferior da porta, outro nome, não mais, Fernando Pessoa, com datas de nascimento e morte  »  » 


Não tem mais que fazer neste sítio, dentro do jazigo está uma velha tresloucada que não pode ser deixada à solta  » , está também, por ela guardado, o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo  » , é essa a grande diferença que há entre os poetas e os doidos, o destino da loucura que os tomou. Sentiu medo ao pensar na avó Dionísia  » , lá dentro, no aflito neto Fernando  »  » , ela de olhos arregalados vigiando, ele desviando os seus  »  » 


À porta da administração do cemitério estava o seu informador  » , era manifesto, pelo luzidio dos beiços, que acabara de almoçar, onde, aqui mesmo, estendido um guardanapo sobre a secretária, a comida que trouxera de casa, ainda morna de vir embrulhada em jornais, acaso aquecida num bico de gás, lá nos fundos do arquivo, por três vezes interrompendo a mastigação para registar entradas, afinal devo ter-me demorado mais tempo do que julgava, Então achou o jazigo que queria, Achei, respondeu Ricardo Reis, e saindo o portão repetiu, Achei, estava lá


Leve-me ao Rossio  » , se faz favor


O táxi desceu a Calçada da Estrela  »  »  , virou nas Cortes  »  , em direcção ao rio, e depois, pelo caminho já conhecido  »  »  »  , ganhou a Baixa  »  »  »  »  , subiu a Rua Augusta  »  »  »  , e, entrando no Rossio, disse Ricardo Reis, subitamente lembrado, Pare nos Irmãos Unidos, assim o restaurante se chamava, logo aí, é só encostar à direita,  »  » tem esta entrada, e outra, atrás, pela Rua dos Correeiros  »


saiu pela porta da Rua dos Correeiros  » , esta que dá para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira  »  » , ainda agitada, porém nada que se possa comparar com as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo.


Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na Rua dos Douradores  », quase não chovia já, por isso pôde fechar o guarda-chuva, olhar para cima, e ver as altas frontarias de cinza parda, as fileiras de janelas à mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias prolongando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas verticais, cada vez mais estreitas, mas não tanto que se escondessem num ponto de fuga, porque lá ao fundo, aparentemente cortando o caminho, levanta-se um prédio da Rua da Conceição  » , igual de cor, de janelas e de grades, feito segundo o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando sombra e humidade


O vento soprava com força, encanado, na Rua do Arsenal  »  »


foi assim que estas coisas se passaram, também Ofélia  »  se deixa ir na corrente, cantando, mas essa terá de morrer antes que se acabe o quarto acto da tragédia  » 


Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na porta, Entre, palavra que foi rogo, não ordem, e quando a criada  »  abriu, mal a olhando, disse, A janela estava aberta  » » , não dei porque que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e calou-se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular  » , por pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica, e a gramática, assim, Agradecia limpasse, porém o entendeu sem mais poesia a criada, que saiu e voltou com um esfregão e balde, e posta de joelhos, serpeando o corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às madeiras enceradas convém


Como se chama, e ela respondeu, Lídia  » , senhor doutor, e acrescentou, Às ordens do senhor doutor


ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, é um jeito de lábios que não engana, quando quem inventou a ironia, teve de inventar o sorriso que lhe declarasse a intenção, alcançamento muito mais trabalhoso, Lídia, diz, e sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados ao passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira  »  , como estando, Tal seja, Lídia, o quadro  »  , Não desejemos, Lídia, nesta hora  »  , Quando, Lídia, vier o nosso outono,   »  , Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio   »  , Lídia, a vida mais vil antes que a morte,   »  , já não resta vestígio de ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os dentes, quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto agora ou doloroso esgar se diria em estilo chumbado.


Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir  » , e tendo escrito não soube que mais dizer, há ocasiões assim


são assim os periódicos, só sabem falar do que aconteceu quase sempre quando já é tarde de mais para emendar os erros, os perigos e as faltas, bom jornal seria aquele que no dia um de Janeiro de mil novecentos e catorze tivesse anunciado o rebentar da guerra para o dia vinte e quatro de Julho, disporíamos então de quase sete meses para conjurar a ameaça, quem sabe se não iríamos a tempo, e melhor seria ainda se aparecesse publicada a lista dos que iriam morrer, milhões de homens e mulheres a ler no jornal da manhã, ao café com leite, a notícia da sua própria morte, destino marcado e a cumprir, dia, hora e lugar, o nome por inteiro, que fariam eles sabendo que os iam matar, que faria Fernando Pessoa se pudesse ler, dois meses antes, O autor da Mensagem morrerá no dia trinta de Novembro próximo, de cólica hepática  » , talvez fosse ao médico e deixasse de beber, talvez desmarcasse a consulta e passasse a beber o dobro, para morrer antes  »  » .


são de Coimbra  » , vivem lá, o pai é o doutor Sampaio, notário, E ela, Ela tem um nome esquisito, chama-se Marcenda  » , imagine, mas são de muito boas famílias, a mãe é que já morreu, Que tem ela na mão, Acho que o braço todo está paralisado  » , por causa disso é que vêm estar todos os meses três dias aqui no hotel, para ela ser observada pelo médico


É Marcenda  »  o nome, É sim, senhor doutor, Estranha palavra, nunca tinha ouvido, Nem eu  »  , Até amanhã, senhor Salvador, Senhor doutor, até amanhã.


Ao entrar no quarto, Ricardo Reis vê a cama aberta, colcha e lençol afastados e dobrados em ângulo nítido, porém discretamente, sem aquele desmanchado impudor da roupa que se lança para trás, aqui há apenas uma sugestão, em querendo deitar-se, este é o lugar. Não será tão cedo. Primeiro irá ler o verso e meio que deixou escrito no papel, olhar para ele com severidade, procurar a porta que esta chave, se o é, possa abrir, imaginar que a encontrou e dar com outras portas por trás daquela, fechadas e sem chave, enfim, tanto persistiu que achou alguma coisa, ou por cansaço, seu ou de alguém, quem, lhe foi subitamente abandonada, desta maneira se concluindo o poema, Não quieto nem inquieto meu ser calmo quero erguer alto acima de onde os homens têm prazer ou dores, o mais que pelo meio ficou obedecia à mesma conformidade, quase se dispensava, A dita é um jogo e o ser feliz oprime porque é um certo estado  » . Depois foi-se deitar e adormeceu logo.



VOLTAR AO TOPO   »









ÍNDICE REMISSIVO

1 pp. 7-28 (C. Leitores)
pp. 11-30 (Caminho)
»
2pp. 29-53 (C. Leitores)
pp. 31-53 (Caminho)
»
3pp. 55-83 (C. Leitores)
pp. 55-80 (Caminho)
»
4pp. 85-100 (C. Leitores)
pp. 81-95 (Caminho)
»
5pp. 101-121 (C. Leitores)
pp. 97-115 (Caminho)
»
6pp. 123-142 (C. Leitores)
pp. 117-135 (Caminho)
»
7pp. 143-169 (C. Leitores)
pp. 137-160 (Caminho)
»
8pp. 171-193 (C. Leitores)
pp. 161-181 (Caminho)
9pp. 195-216 (C. Leitores)
pp. 183-202 (Caminho)
10pp. 217-238 (C. Leitores)
pp. 203-222 (Caminho)
11pp. 239-260 (C. Leitores)
pp. 223-242 (Caminho)
12pp. 261-284 (C. Leitores)
pp. 243-264 (Caminho)
13pp. 285-307 (C. Leitores)
pp. 265-285 (Caminho)
14pp. 309-337 (C. Leitores)
pp. 287-312 (Caminho)
15pp. 339-362 (C. Leitores)
pp. 313-334 (Caminho)
16pp. 363-385 (C. Leitores)
pp. 335-355 (Caminho)
17pp. 387-408 (C. Leitores)
pp. 357-376 (Caminho)
18pp. 409-426 (C. Leitores)
pp. 377-393 (Caminho)
19pp. 427-440 (C. Leitores)
pp. 395-407 (Caminho)





Página Principal »
O Ano... - Índice »
O Ano... - Introdução »
1936 - Breve Cronologia »
O Ano... - Hiperligações externas »
» » » O Labirinto de Ricardo Reis, 2002-11-20