Pós-Modernismo
 

- "Morte e vida severina" -

  Publicada em 1956, é a obra mais conhecida de João Cabral de Melo Neto, revelando uma preocupação social, ao retratar os problemas do homem nordestino ante o seu meio.
  No trecho a seguir o retirante "Severino" solicita informações sobre trabalho a uma mulher:

"Dirige-se à mulher na janela que depois descobre tratar-se de quem se saberá

- Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?

- Trabalho aqui nunca falta
a quem sabne trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?

- Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.

- Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?

 - Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.

- Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por lá?

- Conheço todas as roças
que neste chão podem dar:
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.

- Esses roçados o banco
já não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?

- Melhor do que eu ninguém
sabe combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.

- Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá:
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por lá?

- Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.

- Isso aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá;
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?

- Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear:
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.

- Aqui não é Surubim
Nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?

- Em qualquer das cinco tachas
de um banguê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.

- Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?

- Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.

- Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.

- Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.

- Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?

- Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar;
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.

- Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.

- Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como a senhora, comadre,
pode manter o seu lar?

- Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.

- E ainda se me permite
que lhe volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?

- É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda região
rezadora titular.

- E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?

- De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixer-me ainda de azar.

- E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim neste lugar?

- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear."

(João Cabral de Melo Neto).